Por ocasião do centenário do nascimento de Leocádio do Vale, que se assinalou a 25 de Outubro último, a Biblioteca Municipal de Alpiarça está a acolher uma exposição evocativa da sua vida, que estará patente até 17 de Novembro.

A Biblioteca Municipal foi uma das casas de Leocádio, um dos seus portos de abrigo na recolha do conhecimento. Leocádio foi um autodidacta, pensador e filósofo. Foi um questionador permanente, um sonhador e um inconformista. Foi um Homem do Teatro e da política: um homem do campo em busca do conhecimento.

Como era habitual nesses tempos, a entrada no mundo do trabalho fazia-se logo acabada a escola. No seu caso tinha 12 anos. Ao contrário de tantos, a escola não lhe deu grandes ferramentas de e para o saber.

Por isso, entregou-se a uma permanentemente busca de conhecimentos. Com a criação da biblioteca da “Música”, uma colectividade alpiarcense, aquele local passou a ser avidamente frequentado por si. Anos mais tarde faria parte de órgãos directivos e da comissão cultural.

Conforme escreveu na sua autobiografia (na terceira pessoa do singular), “na escola começou com os trabalhos a serem avaliados por um aluno da quarta classe (…). Deste modo chegara à terceira classe sem saber fazer uma conta de dividir (…). Acabada a quarta classe [1936] tivera de engrenar na máquina do trabalho rural, onde fora encontrado a tirar areia do Tejo com uma gamela de madeira à cabeça”.

Os seus pais eram pouco sociáveis e o relacionamento entre eles assentava numa permanente conflitualidade. Além disso, o pai era um homem de poucas falas.

Esse ambiente reflectiu-se até na forma de viver. Leocádio, apesar de no corpo principal da residência familiar existir um quarto, dormia na adega. Em miúdo teve graves problemas de saúde, fisicamente enfezado, particularmente por deficiente regime alimentar.

Leocádio transformou-se num rapaz, mais tarde, homem fechado em si que, a maior parte das vezes observava mais do que falava. Para o comum dos alpiarcenses era conhecido por ser um Homem do Teatro (fez parte de cinco grupos, como actor e ou encenador: grupo cénico da Sociedade Filarmónica Alpiarcense 1º de Dezembro, Grupo Amador de Teatro de Alpiarça, da colectividade do Casalinho (Alpiarça), As Papoilas e Meia Laranja), pelo comunista que passou muitos anos na cadeia, pelo limpador de árvores e pelo tractorista do Grémio. Muitos viam-no ainda como aquele ser que desafiava o tempo ou desafiava os outros, quiçá exibicionista por, em qualquer altura do ano, andar em tronco nu.

Mas foi muito mais que isso. Foi um Homem polifacetado. Estudioso, pensador, criador e que, em diversas áreas, foi um autodidacta.

Desde adolescente que manifesta atenção ao mundo que o rodeia. Junta-se a gente mais velha e ouve-os. Chegava a dizer que “abençoados foram estas pessoas idosas, através dos seus sábios dizeres a puxarem-me assim, do beco sem saída em que parecia encontrar-me”.

Com o regime republicano na vizinha Espanha e a sangrenta Guerra Civil que aí eclode, começa a preparar-se para a acção directa (guerrilha).

“E fora assim que (…), com mais dois companheiros foram principiantes de endurecimento em treinos de guerrilha (g.a.c.), de cujos estudos teóricos sobre explosivos e locais vulneráveis ou estratégicos, ser a eficiência de treinos que nunca passaram de instrução teórica para recrutas que tinham de estar preparados, depois da Espanha e com a ajuda desta, passar a ser a península da libertação”.

Ideologicamente, perfilha os princípios propagados pelos marxistas e, particularmente, pela Revolução de Outubro na Rússia. Filia-se no Partido Comunista Português na década de 40 vindo para, já no final desta, a pertencer ao comité local. 

A sua primeira prisão ocorre a 19 de Março de 1950, pelas seis e meia da madrugada, acusado de pertencer ao PCP.

Em 23 de Novembro de 1950, no Tribunal Plenário de Lisboa, é condenado a 20 meses de prisão correcional, mais medidas de segurança e multa. É libertado a 15 de Novembro de 1952. Na realidade, em vez de 20 meses na cadeia cumprirá 32.

Em 15 de Novembro de 1961 Leocádio volta a ser preso pela PIDE, por exercício de actividades subversivas. Leocádio terminou a pena de prisão em 14 de Abril de 1964, mas devido às arbitrárias medidas de internamento indeterminado, só seria solto, condicionalmente em 10 de Abril de 1967, cumprindo 5 anos, 4 meses e 28 dias.

Totalizará, assim, 8 anos, 1 mês e 23 dias nas prisões do regime de Salazar, sendo o antifascista alpiarcense com maior tempo de encarceramento.

A prisão foi para ele, assim como para tantos outros, uma universidade. “A actividade cultural era constante, desde o aprender a ler (havia muita gente analfabeta) até matemática, línguas … fiz trabalhos de cordel e bonecos que pintei. Em Caxias estive com pessoas de Coimbra, versados em Belas Artes e eles meteram-me o bichinho da pintura. Depois até passei a pintar pessoas. Fazia-lhes o retrato em meia filha de papel almaço. Mesmo lá, quando estava preso, nunca sonhava com a prisão. Eu andava sempre cá fora, quando sonhava”.

Para além de ter trabalhado no campo, como assalariado, e nas suas courelas, na década de 50, frequenta um curso geral de agricultura geral e jardinagem, com especialização em pomicultura, na Estação Nacional de Fruticultura Vieira Natividade, em Alcobaça. O regente agrícola Celestino Graça referiria que os apontamentos de Leocádio eram um autêntico compêndio técnico.

Como pensador, a filosofia era o seu grande porto de abrigo, ao ponto de se autointitular como criador de uma corrente filosófica.

Escrevia imensamente. No seu espólio existem muitas centenas de páginas manuscritas. Desses escritos, foi editada a obra “Princípios filosóficos de superstições e crenças”. Entre outras não editadas, figura a sua autobiografia que intitulou “Uma biografia como outras”, escrita por volta dos seus 70 anos, “Alpiacôilos, alpiarceiros e alpiarcenses”, sobre a Alpiarça e as suas gentes, “O comunismo e a falta dele”, ensaio político, “Envelhecimento e gerontologia”, “Um parageólogo em apuros” ou “Economia política”.

Logo a seguir a Abril de 1974 é nomeado regedor da freguesia de Alpiarça. Foi também membro da direcção da Cooperativa FactorAgro (ex-Grémio da Lavoura) e da Casa do Povo de Alpiarça.

Em Maio ou Junho de 1974 filia-se no Movimento Democrático Português/CDE, fazendo parte da concelhia local, assim como da Comissão Central nacional. Nas primeiras eleições democráticas em Portugal, realizadas em 25.04.1975, é candidato do MDP/CDE pelo Círculo de Santarém. Em finais da década de 70 volta a militar no PCP, onde se manterá até à morte.

Ainda na década de 80, foi monitor dos Pioneiros de Portugal (organização infantil do PCP). Nesse âmbito, fez “teatro com crianças, num então culminar maravilhoso que só as crianças podem oferecer”.

Leocádio Teodoro do Vale faleceu em 19 de Novembro de 2013, com 90 anos. Teve como lema da sua vida “antes quebrar que torcer”.

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