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Aurélio Lopes, doutorado em Antropologia Social, tem devotado boa parte da sua actividade académica a mergulhar nas profundezas das questões em torno do sagrado e do religioso, intensificando nas suas mais recentes pesquisas um olhar sobre o papel da mulher, quer nestas dimensões, como, outrossim, na sociedade em geral. Espera-se, assim, que este livro possa constituir mais um firme contributo para o conhecimento antropológico da mulher, rasgando, eventualmente, alguns mitos e outros tantos falsos paradigmas, para colocar a Mulher no seu papel social e cultural, sem tabus nem preconceitos. A Mulher no papel de mulher… Por isso, para antecipar um pouco do que poderá compreender melhor neste próximo livro, fomos à conversa com o Doutor Aurélio Lopes e aqui fica um pouco do muito que nos disse.

Está a publicar o seu estudo “De Atégina à Imaculada: O Sagrado Feminino no território português”. Desde logo, quem é Atégina?
Atégina é uma deusa ibérica com raízes na proto-história, cujo culto se estendeu na época romana por uma área invulgarmente extensa que, em torno do Guadiana, se projectava até às bacias hidrográficas do Tejo e do Guadalquivir. Possuindo indubitáveis caracteres célticos, irá florescer e constituir, entre os séculos I a III D.C., a mais importante divindade do sul da Lusitânia, sendo os seus devotos igualmente célticos e túrdulos bem como populações latinas e latinizadas. A dimensão do seu culto é, deste modo, exemplo cabal da importância do sagrado feminino nesses tempos que antecederam a cristianização nesta zona da Península. Aliás, na natureza tripla das suas acções (fertilizantes, terapêuticas e ctónicas) encontramos ainda hoje, de uma forma ou de outra, as áreas privilegiadas da dominante feminina tradicional.

E porquê um estudo sobre o papel da mulher no sagrado em Portugal?
Desde logo, porque está na sequência das temáticas investigativas que tenho vindo a desenvolver: o sagrado e o religioso e, mais ultimamente, também as problemáticas transcendentais de género. E, também, porque, surgindo entre nós como habitual (por força de séculos de conformidade social e consagração cultural), aquilo que hoje reputamos de condição feminina (encarado num contexto causal e doutrinário) tende a ser visto como algo mais ou menos perpétuo e inevitável. E, de facto, não o é. Teve o seu início, causas e razões. Finalmente, para mostrar a dimensão do transcendental feminino no nosso país. Apesar de condicionada pelos poderes masculinos. Comprovando, assim, o esforço milenar da resiliente afirmação da mulher, especialmente nesta área.

É o homem o responsável pela subserviência tradicional da mulher?
É o poder masculino, que a Igreja (e não só) incorpora e enquadra. Mas, como tudo o que se relaciona com a acção da Igreja, sobre ela tende a cair um véu que se não tapa, escurece; se não olvida, torna diáfano. Podemos dizer, contudo, que pela sua perduração no tempo e por envolver grande parte da sociedade cristã e ocidental (e através dela influenciar muitas outras) o aviltamento e submissão da mulher constitui a mais grave das induções que a cristianização acarretou.
Antes da cristianização o estatuto da mulher, no território português, era mais elevado?
Tudo leva a crer que bem mais, tal como mostra, claramente, este estudo. O único aspeto envolto em alguma dúvida (que novos elementos vão clarificando) é a dimensão precisa de tal, que a escassez de dados no período proto-histórico não permite, ainda, precisar.

E em relação ao sagrado?
Especialmente em relação ao sagrado. O número e as respectivas importâncias cultuais das divindades femininas conhecidas nessa altura, revelam, de acordo com os dados existentes, uma realidade bastante diferente da actual, com aquelas expressando clara dominância. Para lá de Atégina, também Trebarona ou Nabia (divindades indígenas que irão perdurar, igualmente, no período romano), bem ainda como Reva, Banda, Munitie, Iconna, Arentia, Harase e muitas outras (no período proto-histórico) constituem paradigma de tal. Enquanto oficiantes (sacerdotisas e afins) os dados são, de facto, mais raros. Contudo, analogias com situações semelhantes no tempo e no espaço e deduções respeitantes à culturalidade indígena apontam, no entanto, igualmente para aí.

No que ao feminino diz respeito, quais as interdições mais graves acarretadas pela cristianização?
Desde logo, se quisermos, deixaram de constituir divindades. Foram apeadas e diabolizadas. Substituídas por um panteão cristão, nessa altura, praticamente masculino.
Num contexto de género que, afinal, assim se podia exprimir: “O Filho de Deus tornou-se Homem para que os Homens se possam tornar Filhos de Deus”; isto se quisermos usar as palavras de Santo Agostinho. Como oficiantes, foram proibidas de participar no sagrado institucional. “Sacerdotisas caídas” (digamos assim), restou-lhes o sagrado popular: contudo, marginal e estigmatizado. Por isso, a mulher é a “bruxa” e a feiticeira, a “amarradeira” e a “mezinheira”, a “carpideira” e a curandeira, a “moura encantada” e a “fada”, a “depenadeira” e a parteira, a “beata” e a “virtuosa”, a “adivinhadora” a “má hora”, a “nigromante” e a “benzideira”. Tudo epítetos dotados de contornos de negatividade, ocultos e misteriosos, associais e inquietantes, suspeitos e tenebrosos.

Resta-lhe, portanto, a religiosidade popular?
Não só! Afinal, o sagrado é muito mais abrangente que o religioso. Se quisermos, podemos entender o religioso como um sagrado organizado e dirigido para um determinado fim. A administração e gestão do sagrado, afinal, enquanto o sagrado pode ser visto, como a concepção base do religioso. Para lá das áreas transcendentais do ciclo de vida, com a fertilidade relacionadas (gravidez e parto), a medicina popular e até a morte, a mulher tem vindo, apesar de tudo, a reivindicar, igualmente, maior importância e influência no que respeita à própria religião oficial. E não só nos tempos modernos.

Que a mulher prepondere no parto, é natural; E, de facto, os curandeiros tradicionais são quase sempre mulheres. Mas, porquê na morte?
Porque a mulher é a criadora da vida. Não admira, portanto, que seja vista como alguém que possui relações privilegiadas com a dimensão do Além. Com o mundo dos espíritos. Com o plano do invisível de onde, se acredita, vêm as crianças. E para onde vão os mortos. Que o poder de curar exige e, com o qual, a morte se relaciona. Algo que o homem tem temido, através dos tempos. E, portanto, estigmatizado e diabolizado. Não admira, assim, a sua relevância, também, no ciclo da morte. Desde logo no desenvolver e gestão do velório e nas suas diversas vertentes organizacionais e alimentares. Mas, não só aí. No tratamento do corpo e nas mais diversas funções operativas. São elas que pranteiam, enquanto “carpideiras”. Bem como são elas, enquanto “depenadeiras” ou “abafadoras”, as protagonistas de funções, pouco conhecidas, de eutanásia tradicional.

Podemos dizer, então, que o estudo aborda a percepção e demonstração das diversas áreas do transcendental popular que as mulheres têm dominado?
Essencialmente num contexto diacrónico de causas e consequências. Mas, igualmente, mostrando a dimensão da influência feminina directa e indirecta na religião oficial. Num percurso milenar em que as massas cristãs europeias (e naturalmente as oeste-peninsulares), participantes de religiões pré-cristãs dotadas habitualmente de deusas e cultos femininos – de que, poder-se-á dizer, ficarão órfãos -, concentraram nas escassas santas cristãs, e principalmente em Maria, os seus desígnios devocionais. Com as consequências que se conhecem.

Quer dizer que o marianismo é uma consequência das devoções femininas?
Em grande parte. E não só por as mulheres serem, quantitativamente, o corpo de devotos mais numeroso e, qualitativamente, o mais ativo. Também pela necessidade de preencher as lacunas de género, entre as tais populações europeias e, naturalmente, peninsulares, que o Cristianismo tinha originado, como ainda pelo facto de tais lacunas incidirem, em grande parte, em áreas como a gravidez e o parto, a fertilidade humana e da natureza, as curas e instrumentalizações mágicas e naturais e as diversas valências funerárias; todas elas, afinal, competências tradicionais femininas. É, assim, que se compreende a “Ascensão de Maria” no Cristianismo; que a importância do marianismo hoje comprova e que dá corpo àquilo a que podemos chamar o “Paradoxo cristão”, conseguindo, pese embora com restrições várias (algumas particularmente violentas) transformar uma das mais misóginas religiões universais, numa organização em que, senão a mulher pelo menos o arquétipo feminino da Mãe, se tornará dominante em termos cultuais e devocionais. Afinal, aqueles que marcam a importância das divindades, hoje como ontem e sejam elas quais forem.

E porquê Maria?
Bom, para lá do secular impulso canónico e doutrinário, Maria é a “Mãe de Deus”: logo arquétipo de todas as mães. E se em termos canónicos ela é Virgem apesar de Mãe, em termos populares é vista como Mãe apesar de Virgem. Resume, assim, os potenciais simbióticos das duas naturezas.

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