Vários testemunhos da censura que amordaçou o país durante 48 anos de ditadura vão estar patentes em Lisboa a partir de quinta-feira, numa exposição que tem a intenção “pedagógica” de mostrar o que é a liberdade, pela sua negação.

A censura – instaurada logo após o golpe de 28 de maio de 1926 e que se estendeu até 1974 – exerceu-se sobre a imprensa, a literatura, a arte, a publicidade, todos os meios de comunicação e expressão artística, com o objetivo de silenciar críticas e pensamentos discordantes do “bem comum”, criando a imagem de um país ideal, bem diferente do país real, aquele “que não podia vir a público”, segundo os organizadores.

Esse “poderoso instrumento” e “uma das principais armas políticas” do regime autoritário é exposto e explicado numa mostra patente até 27 de abril, no edifício das antigas instalações do Diário de Notícias, intitulada “Proibido por inconveniente – Materiais das Censuras no Arquivo Ephemera”, hoje apresentada à comunicação social pelo historiador José Pacheco Pereira, comissário da exposição e dono do arquivo Ephemera, e pelos curadores Carlos Simões Nuno e Júlia Leitão de Barros.

Resultante de uma parceria entre a Câmara Municipal de Lisboa, a EGEAC e a Ephemera, a exposição está dividida em vários núcleos temáticos, que mostram as várias faces da censura: da prévia à que atuava ‘a posteriori’; da que censurava, mas fazia critica literária, à elitista; da que atuava através de diversos organismos à que se fazia de invisível.

Jornais, livros, revistas, discos, autos, relatórios e publicações clandestinas, oriundos da biblioteca e arquivo de Pacheco Pereira estão dispostos por vários expositores.

O primeiro, “introdutório”, mostra como a censura se exerceu sobre tudo, através de cortes feitos na imprensa, de boletins que cobriam o país de norte a sul, com a censura na imprensa local.

Aqui se mostra também como além do âmbito político, a censura atuava sobre tudo o que fosse entendido contra a Igreja, sobre questões de costumes, de pobreza, das doenças sociais (como a tuberculose ou a lepra, associadas à pobreza).

Num dos boletins lê-se “rapariga desaparece de casa da família”, sem mais nada, ou seja, podia ter fugido, ter-se suicidado, ter-se dedicado à prostituição, não se sabe, porque tudo era censurável, explicou Pacheco Pereira.

A música também não escapava, há letras de fados consideradas “porcas” e, como a “censura não gostava de deixar marca”, apresentam-se dois discos, um original e outro com a alteração na capa, porque a censura exercia-se nas capas e nas músicas.

A exposição mostra também como havia censura nos filmes, na publicidade e nos livros, usando como exemplo “a situação extrema” do livro “História da República Portuguesa”, de Lopes d’Oliveira, acompanhado do auto de queima de livros, que determinava a destruição desta obra.

Este expositor introdutório guarda ainda o primeiro número do jornal República saído em liberdade.

Há todo um núcleo expositivo dedicado à censura dos livros, tanto os de caráter doutrinário, como as obras literárias: os primeiros eram previamente apresentados à censura, os outros podiam ser editados e eram censurados ‘a posteriori’.

Como explicou Carlos Simões Nuno, as obras literárias proibidas eram apresentadas em termos literários, sendo visível as apreciações feitas pelos censores.

Um dos exemplos apontados é Bertold Brecht, de quem os censores diziam ser um dos melhores autores alemães, apesar de serem conhecidas as suas tendências comunistas.

São aqui apresentadas diferentes obras, acompanhadas dos relatórios de censura, de escritores como José Cardoso Pires, Jorge Amado, Mário Cesariny, Alves Redol, Vergílio Ferreira ou Luandino Vieira.

Um outro expositor, que disseca um pouco mais o que é a censura, mostra o “censor elitista”, que olha para o leitor como “alguém que tem de proteger”, tecendo considerações relativamente a certas obras ou autores como “a divulgação da sua obra é perigosa”, “deve ser proibido nas bibliotecas operárias”, ou “pode ser atraente para pessoas impreparadas”.

Um dos exemplos mais significativos desta convicção do papel formativo do censor é o romance “Os irmãos Karamázov”, de Fiódor Dostoievski, considerado apto apenas para as elites.

Há depois um núcleo que mostra que a censura não era sempre igual e que tinha diferentes estratégias de lidar com obras perturbantes: algumas eram autorizadas a sair, mas não podiam ser divulgadas pela imprensa, outras só podiam ser publicadas fora do mercado.

Outras vezes a censura era adequada ao autor: se este era conhecido, era melhor deixar passar, como foi o caso de “A missão”, de Ferreira de Castro, ou se fosse um premiado, a censura determinava que era “melhor não atuar”, explicou Júlia Leitão de Barros.

Outros aspetos focados são a existência de “múltiplos censores em ação”, como o Ministério da Educação, a polícia, a Mocidade Portuguesa ou o Secretariado da Propaganda Nacional, bem como de “alvos censórios”, aqueles autores que eram um alvo privilegiado porque desrespeitavam completamente as normas vigentes.

Um desses casos é José Vilhena, que deliberadamente provocava o regime, desrespeitava todas as figuras da época e fazia caricaturas dos censores: “A censura chegava ao ponto de escrever ‘nem que seja para manter o princípio, deve ser proibido’, ou seja, nem interessava ler”, explicou o curador.

A mulher como autora é outro dos temas da mostra: “a mulher deve ser sempre uma senhora, pelo que as escritoras eram especialmente visadas pela censura à luz de um critério moral”, explicam os curadores.

“Se tinham a veleidade de escrever algo mais erótico, eram censuradas, e consideradas imorais, pornográficas e dissolutas”, afirmou Carlos Simões Nuno.

Maria Archer, Simone de Beauvoir, Nita Clímaco, as “Três Marias” e Natália Correia são algumas das autoras mais visadas.

A censura achava que a sua ação era mais eficaz quanto mais diluída parecesse, por isso era proibido os jornais saírem com espaços em branco, correspondentes ao que tinha sido cortado e “as pessoas deixavam de ter esse instrumento de perceber que alguma coisa havia sido cortada e de perceber o que tinha sido censurado. A censura queria-se invisível”, explicou.

Quase a terminar a exposição há um núcleo dedicado aos mecanismos para enganar a censura, em que se recorria a pseudónimos ou à ocultação de nomes suspeitos, como o de Zeca Afonso, a quem a publicação A Mosca se referia como Acez Osnofa (o nome ao contrário).

As publicações clandestinas são aqui também apresentadas, através de exemplares como o último número do Avante antes do 25 de Abril, publicações maoistas ou “Cadernos de circunstância”, a primeira tentativa de olhar para o país numa perspetiva sociológica”, que era proibida no país, segundo Pacheco Pereira.

Há um núcleo totalmente dedicado à censura nos jornais, que se apresenta como uma “metáfora do que era o aparelho burocrático da censura”, explicou Júlia Leitão de Barros.

Organizado tematicamente e composto por um expositor com várias gavetas, o visitante pode escolher um tema, abrir a gaveta correspondente, e ver os cortes que foram feitos na imprensa sobre esse assunto.

Ações subversivas, instituições, combate ideológico, corrupção, Igreja Católica, moral e costumes, pobreza, questões coloniais, repressão e Salazar são alguns desses temas.

O ano escolhido para este núcleo é 1934, por ter “características interessantes”: ainda não havia a Guerra Civil Espanhola, não havia autocensura enraizada e ainda existia luta entre os jornalistas e a censura.

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