Com a superação das necessidades mais básicas para a sobrevivência humana e conquistado algum tempo de lazer para os trabalhadores, a sociedade começou a estruturar-se ao nível de actividades que pudessem responder à dimensão lúdica que caracteriza a essência humana. O jogo e a brincadeira são as actividades mais primitivas dos seres humanos, que, contudo, não são exclusivas do homem, ao que poderemos acrescentar a manifestação de habilidades artísticas, no que estabelecem as primitivas expressões de arte.

O movimento associativo surgiu para facilitar aos membros de uma comunidade o exercício de práticas culturais ou desportivas, tendentes a ocupar alguns tempos de ócio dos seus membros, o que lhes poderia proporcionar um certo bem-estar individual, ao mesmo tempo que estimulava o relacionamento entre si.

Como se compreenderá, as primeiras associações funcionariam muito informalmente, apesar de corresponderem ao que delas se esperava no sentido de que a sua existência era o bastante para motivar o desempenho de diversas actividades e de provocar a interacção entre todos, não nos devendo esquecer de que a maioria das associações que estão activas nos nossos dias apenas adquiriram personalidade jurídica há algumas décadas. Anteriormente, guiar-se-iam por um rudimentar regulamento interno, onde estavam vertidos os direitos e os deveres dos respectivos membros.

A par da dignificação do trabalho, devidamente regulamentado e com horários estabelecidos, e com a melhoria das condições laborais, ao nível dos salários e do gozo de alguns direitos que progressivamente foram sendo conquistados, o tempo livre foi sendo uma realidade. O ponto desejado em certo momento histórico era que se pudesse repartir o dia em três períodos de oito horas cada: oito horas para trabalhar, oito horas para dormir e oito horas para “viver”.

Esta meta só foi alcançada muito tardiamente em algumas regiões do nosso país, sobretudo, no país rural onde a sazonalidade laboral era muito acentuada, mas nos centros urbanos, onde predominavam as actividades económicas terciárias ou, em alguns casos, a indústria que dava os primeiros passos, as populações começaram a dispor de algum tempo para as suas iniciativas lúdicas, o que poderá ter estado na base da criação das primeiras colectividades recreativas.

Na segunda metade do século XIX começaram a surgir as primeiras instituições de vocação musical, nomeadamente as bandas e as tunas, os grupos de arte dramática, os centros de instrução e as sociedades de recreio, o que correspondia à necessidade humana de satisfazer algumas preocupações estéticas e sociais. Muitas destas instituições revestiam-se também de objectivos filantrópicos, na medida em que o Estado não assegurava condições sociais à população mais pobre e, por isso, eram estas instituições cívicas que supriam, na medida das suas possibilidades, esta carência. Tal ocorria, por exemplo, com as misericórdias e com as associações humanitárias.
Na vigência do Estado Novo surgiram muitas colectividades estimuladas pelo próprio regime, que numa lógica corporativa permitia a constituição de colectividades, umas sob tutela da Junta Central das Casas do Povo, outras sob a égide da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, para, assim, poder interferir directamente na definição dos seus objectivos e no controlo das suas actividades. O mecanismo de legalização destas colectividades era muito apertado e tinha de colher as bênçãos do poder autocrático. Então, fazia-se a apologia da alegria no trabalho e estimulava-se a participação em manifestações cívicas de âmbito regional e nacional, mas, claro, sempre com as rédeas muito controladas. Ai de quem pisasse o risco…

Após o 25 de Abril de 1974 assistiu-se a uma grande expansão do movimento associativo, pois, as palavras de ordem do novo regime constituíam o mote para a participação cívica, a solidariedade baseada na igualdade democrática, a cooperação e partilha entre todos, o que alimentava a vontade de aprender mais e mais. Muitas destas associações não sobreviveram, por falta de estruturas e de preparação dos dirigentes que se digladiavam em torno de motivações político-partidárias, mas, no entanto, datam deste período algumas das mais dinâmicas associações que ainda hoje estão no terreno a desenvolver um trabalho de inegável valia.

Passado o fervor colectivista da alvorada democrática, o movimento associativo de raiz popular começou a conhecer as principais dificuldades com que ainda hoje se debate, assentes, por um lado, na dificuldade de encontrar dirigentes disponíveis e empenhados em dedicarem muito do seu esforço à causa pública, e, por outro, às maiores exigências e responsabilidades que recaem sobre os ombros dos corpos sociais das associações sem fins lucrativos. Nos tempos que correm é precisa muita coragem e ousadia para se ser dirigente de uma colectividade!

A nossa sociedade tornou-se cada vez mais individualista e ninguém prescinde do seu conforto e bem-estar para se sujeitar a incómodos e canseiras para levar por diante um qualquer projecto associativo. Para além de não se conquistarem os apoios necessários, também os próprios associados são mais ágeis a criticar e a desdizer no trabalho que é desenvolvido pelas direcções, do que a disponibilizar-se para colaborar.

A situação pandémica que ainda atravessamos contribuiu imenso para agravar este estado de coisas. Receia-se que muitas associações já não abram portas nesta fase do desconfinamento sanitário, pois quer a massa associativa quer os próprios dirigentes não têm ânimo para enfrentar tantas dificuldades e, sobretudo, tanta incompreensão.
O Estado falhou rotundamente ao movimento associativo, pois em todo este período não se conhece uma única medida para apoiar directamente as associações sem fins lucrativos, que, apesar de estarem obrigatoriamente de portas encerradas, têm que solver os seus compromissos, muitos dos quais com o próprio Estado, que não teve a mínima atenção com as cerca de dezoito mil associações existentes em Portugal. As despesas com electricidade, água, comunicações, seguros, alarmes e impostos batem à porta todos os meses, porém, as colectividades estão impedidas de promover qualquer actividade que possa gerar alguma receita. As quotizações dos associados também caíram a pique, e muitos associados tendem a deixar de manter o seu vínculo. As casas estão vazias e as expectativas são as piores, pelo que o mais fácil é abandonar o barco.
O Estado, ingratamente, não valoriza o trabalho desenvolvido pelas associações que se lhe substituem, pois, a responsabilidade constitucional de proporcionar aos cidadãos o acesso à cultura, ao recreio e ao desporto incumbe em primeira linha ao Estado, que se tem demitido desta obrigação, e se tem esquecido de apoiar quem o faz generosamente em seu lugar.

Se o associativismo de raiz popular já estava em crise, pior se encontra agora, e antes que toque a silêncio por alma das nossas colectividades, queremos agradecer penhoradamente aos abnegados dirigentes e associados que têm mantido de pé este grande edifício que é o Movimento Associativo, esperando que muitos ainda guardem uma pequena reserva de resiliência e de altruísmo para evitar que a sua associação feche a porta. Uma a uma teremos de as recuperar a Todas!

Ludgero Mendes

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