Entrámos na contagem decrescente da 64.ª edição do Festival Celestino Graça que se realiza na Casa do Campino, em Santarém, de 3 a 7 de Setembro.

O Correio do Ribatejo dedica grande parte desta edição a esta Festa das Artes e das Tradições Populares do Mundo.

Ludgero Mendes, Director do Festival, nesta entrevista, apresenta-nos a edição deste ano, aborda as condicionantes da mesma e as dificuldades sentidas para manter de pé, com a máxima dignidade, o Festival Celestino Graça e a multiplicidade de eventos, de iniciativas, que o valorizam, envolvem e reforçam.

Vem aí a 64.ª edição do Festival Celestino Graça que se realiza na Casa do Campino, em Santarém, de 3 a 7 de Setembro. Quais as iniciativas que destaca este ano paralelas aos diferentes espectáculos e inseridas no programa do Festival?

O Festival Celestino Graça, desde que adoptou a designação de Festa das Artes e das Tradições Populares do Mundo, encontrou, de facto, novos desígnios que, não deixando de ter como alavanca principal o Festival Internacional de Folclore Celestino Graça, tem uma multiplicidade de eventos, de iniciativas, que o valorizam e reforçam, do ponto de vista da sua programação geral e, por outro lado, alargam o âmbito da própria iniciativa. 

Aquilo que, anteriormente, era apenas folclore, agora tem artesanato, tem gastronomia, tem jogos tradicionais, tem fado, tem música popular, tem uma iniciativa que já mantemos há seis anos, que é o ‘Fandangando’, uma mostra de instrumentos musicais tradicionais “Sons Autóctones – Sons da Memória”, que vamos repetir este ano.

Este ano vamos ter também uma outra novidade, que é um projecto que estamos a iniciar: ‘Ribatejo em Pessoa – Identidade e Memória’. No fundo, o que nós pretendemos é registar para memória futura, entrevistas com personalidades populares do Ribatejo que, de alguma forma, nos possam ajudar a construir e a perceber a matriz identitária do Ribatejo e do ribatejano. Informação sobre as vivências populares, profissões que estão em vias de extinção ou que já estão extintas, e vamos transformar isso numa espécie de espectáculo. As pessoas vêm ao palco, são entrevistadas em directo e vão ensinar-nos um pouco daquela que era a sua vivência. 

Vamos também ter uma exposição de pintura, da pintora búlgara Radina Rosenova que nos foi sugerida pelo CIOFF da Bulgária, o que, de alguma forma, vem também reforçar a nossa aposta na diversidade do programa pois tem a ver com o povo, com a sua arte, com a sua tradição. Cabe no nosso festival e essa é a nossa aposta. 

E que grupos é que vão estar presentes este ano?

Este ano, em termos de grupos portugueses, temos o Rancho Folclórico da Casa do Povo de Aveiras de Cima, Grupo Etnográfico de Danças e Cantares do Minho, na sexta-feira, dia de abertura. No sábado, teremos o Grupo Académico de Danças Ribatejanas, o Grupo do Centro Social de Vila Nova de Sande (Guimarães) e teremos o Grupo Folclórico de São Cosme (Gondomar).

No domingo, teremos o nosso Grupo Infantil de Dança Regional, o Grupo Folclórico Centro Beira Mondego, de Santo Varão (Montemor-o-Velho) e teremos ainda o Rancho Regional de Argoncilhe (Douro Litoral Sul), isto em termos de presenças nacionais. 

Em termos de presenças estrangeiras, este ano tem sido muito complicado pela circunstância que o mundo atravessa. Este ambiente bélico e tão complexo torna ainda mais difícil a garantia da presença de alguns grupos e de alguns países. Ainda a menos de uma semana, dois grupos declinaram a sua participação já confirmadíssima há bastante tempo. Um foi o grupo do Quénia, com quem o Grupo Académico esteve num festival na Chéquia, em Junho, e que agora não consegue obter vistos para vir a Portugal… 

Isso faz sentido no século XXI?

Não faz sentido nenhum, mas tem, digamos que uma justificação ilógica, mas que é conhecida, que é o facto de as secções consulares de Portugal, no estrangeiro, estarem reduzidas ao mínimo de pessoas. Marcar uma reunião para a proposta de obtenção de vistos, neste caso, está com uma demora de seis meses. E outra coisa que é completamente estapafúrdia é que Portugal tem uma embaixada em Nairobi, no entanto, é na Embaixada da Grécia que são tratados os vistos para vir para Portugal. É evidente que nós não conseguimos sensibilizar a Embaixada da Grécia para tratar desse assunto. Portanto, esse é um grupo que não vai estar presente.

Não estará presente também um grupo do Kosovo, que era uma novidade no nosso festival. O Kosovo está a viver uma situação económica e política muito conturbada e o grupo não conseguiu apoio financeiro para vir a Portugal e declinou a sua participação agora há dias. 

Temos confirmados a Eslováquia, os Estados Unidos da América e a possibilidade de um Grupo da Sérvia. Depois temos representações estrangeiras, mas sediadas em Portugal, como As Batucadeiras de Cabo Verde, que já cá estiveram; um grupo do Brasil, “Tira-me da Rua”, e um grupo do Equador, que está sediado em Vila Nova de Gaia. Portanto, os espectáculos têm, estou certo, muito interesse, porque estes grupos, todos eles, têm, efectivamente, muita qualidade. Até vamos ter, ao cabo e ao resto, mais países representados do que normalmente temos, mas alguns são grupos que estão residentes no país.

Aquilo que nos anima, efectivamente, é que o público não sairá defraudado, porque os espectáculos têm, todos eles, garantidamente, muita qualidade.

E que vão decorrer na Casa do Campino. Foi uma aposta ganha, a escolha deste local? 

Completamente. Se não tivéssemos tomado esta decisão, o Festival Internacional de Folclore Celestino Graça, como então se designava, já não existia. Porque o Festival, apenas com os espectáculos de folclore realizados no CNEMA, era muito redutor. O aluguer do CNEMA saía muito caro e, em contrapartida, não tínhamos receita.

Aqui, na Casa do Campino, a entrada de público é metade do que metíamos no CNEMA, mas temos toda a envolvência festiva e, por isso, nos permite dizer que é a Festa das Artes e das Tradições Populares do Mundo, porque o nosso objectivo é que o Festival Celestino Graça seja uma festa em permanência, em que as pessoas não venham apenas à Casa do Campino no horário em que se realiza a Gala Internacional.

Haverá sempre atractivos para virem ao Festival. Temos a Orquestra de Guitarras do Conservatório, temos a APPACDM com as suas dimensões da arte, da cantiga e da dança, temos o “Ribatejo em Pessoa”, vamos ter fado, com fadistas regionais e outros já de âmbito nacional. A vedeta deste ano é o José Geadas, que é um guitarrista e fadista, que agora está na berra. E temos a Beatriz Felizardo e Sofia Ferreira, que já têm presenças garantidas em Casas de Fado em Lisboa e também em alguns espectáculos relevantes. Temos depois o João Chora, que toca e canta, e o escalabitano Nani a tocar viola baixo. Vai ser, estou certo, uma boa noite de fado, sem termos a presença de fadistas de maior notoriedade, porque não temos condições para lhes pagar os cachês que eles cobram. Mas vai ser, seguramente, um bom espectáculo. 

Já li algures que este festival é testemunhar o triunfo da resiliência e da paixão pela cultura. Assina por baixo esta frase? 

Assino por baixo. Nós temos sido sujeitos a muitas contrariedades. Aliás, o próprio formato do festival, que agora está consolidado no formato possível, é o desejável, embora se tivéssemos condições financeiras e logísticas para o fazer com maior grandeza, fá-lo-íamos certamente. E este é o formato que nós encontrámos para garantir a sobrevivência do festival.

Qual é o orçamento anual do Festival? Como se financia e que ajudas tem, oficiais e de particulares?

O Festival tem um orçamento na ordem dos 65 mil euros. Nós recebemos cerca de 30 mil euros da Câmara Municipal de Santarém e temos de garantir os restantes 30 a 35 mil euros.

O Grupo Académico é uma associação sem fins lucrativos, pelo que não tem receitas próprias. Iniciámos há alguns anos a cobrança de bilhetes para assistir aos espectáculos, o que nos dá alguma receita. Não é muita, porque os bilhetes são baratos, são populares, para termos presença do público. O público do Festival de Santarém compreendeu que para a sobrevivência do festival era preciso pagar qualquer coisa. E têm pagado e ajudado, porque pouco é pouco e nada é nada, como se costuma dizer e, portanto, essa é uma receita também significativa.

Depois temos também a componente da gastronomia e o bar que exploramos na Casa do Campino, que também nos ajuda a minimizar os custos. Temos algumas ajudas de membros da Liga dos Amigos, de associados do Grupo, pessoas que, enfim, nos vão apoiando, e a disponibilidade dos voluntários que trabalham graciosamente, durante um mês, para montarmos tudo o que vai estar na Casa do Campino, à excepção das bancadas que alugamos por 4.200 euros para acomodar o público.

Em termos da gastronomia, este ano teremos a edição zero do Festival do Petisco Ribatejano, com a colaboração do cozinheiro César Piedade, que nos vai ajudar a liderar este processo, enfim, ele tem experiência a esse nível e estou convencido que é também um atractivo, este Festival do Petisco Ribatejano, que queremos desenvolver integrado no Festival Celestino Graça. 

Ao longo dos anos tem vindo a lamentar que algumas entidades não têm olhado para o festival como deveriam. Essa crítica mantém-se este ano? 

Sim, ela manter-se-á sempre. Embora relativizada em alguns anos, por uma razão ou outra, e menos relativizada noutros anos. Em relação à Câmara, nós não somos críticos, porque convém dizer-se que talvez não com a expressão que deveria ser, mas a Câmara sempre nos garantiu o seu apoio.

Só durante o mandato do Dr. Moita Flores é que houve três ou quatro anos em que não houve subsídio nenhum e em que nós mantivemos o festival, apesar de tudo, enfim, criando endividamento, mas mantivemos o festival porque o público de Santarém merecia esse esforço. Nos últimos anos temos tido apoio do Município. O ano passado a Câmara reforçou o subsídio que era de 25 mil euros, passou para 30 mil, como apoio suplementar. Fizemos um investimento grande na nossa Sede, a cobertura deixava entrar água por todo lado e gastámos cerca de 25 mil euros num telhado novo, para hoje ter condições muito satisfatórias e, portanto, a Câmara Municipal até nos tem ajudado.

Só que nós às vezes vemos a Câmara Municipal atribuir subsídios de 10 ou 15 mil euros a eventos que decorrem um dia ou dois e que têm muito menos projecção enquanto o nosso festival, que dura uma semana, que traz cerca de 130 a 150 estrangeiros, que traz uma representação do CIOFF, que vai para todo o mundo e o apoio não é assim tão diferenciado dos outros. Mas, apesar de tudo, registamos que a Câmara tem estado sempre connosco e creio que continuará a estar, seja qual for o resultado das próximas eleições. A Fundação Inatel também nos tem ajudado, na medida do possível.

O ano passado tivemos um projecto apoiado pela CCDR-LVT, mas o que apresentámos este ano não foi apoiado, mas nós vamos realizá-lo. O projecto que candidatámos é o ‘Ribatejo em Pessoa – Identidade e Memória’. Enfim, a CCDR-LVT, no seu alto critério, terá entendido que não era iniciativa merecedora de apoio, mas nós acreditamos no projecto e vamos levá-lo por diante.

É evidente que, quando se faz uma crítica à falta de apoio a este tipo de iniciativas, não podemos ou não devemos deixar de fora o Estado, porque o grande problema é que o Estado se demite de apoiar a cultura popular, nomeadamente o folclore. Descentraliza para as autarquias.

As autarquias farão aquilo que os seus dirigentes quiserem, de acordo com a sensibilidade que têm. E há autarquias em que há um grande apoio para estas actividades. Por exemplo, o Concelho da Maia pagou cerca de 40 mil euros para o Grupo Regional Moreira da Maia, que fez 75 anos, fazer uma digressão ao estrangeiro. Ora, isso é completamente impensável em Santarém. Depois, a União de Freguesias de Santarém é uma entidade que nos apoia, mas do nosso ponto de vista, de uma forma muito residual. Adoptou uma estratégia que nós respeitamos, porque é aquilo que deliberaram, embora não concordemos, que é atribuir um subsídio de 10% daquele que seja o subsídio da Câmara Municipal de Santarém. Quando, praticamente, quase todas as nossas iniciativas decorrem no espaço da União de Freguesias de Santarém.

E, portanto, penso que a projecção que damos a Santarém merecia da parte da União de Freguesias outro apoio. Não o temos conseguido, enfim, vamos ver se no futuro, sim ou não, conseguiremos.

O festival é encarado, actualmente, como um produto turístico. A Entidade Regional de Turismo apoia o Festival?

A Entidade Regional de Turismo é um autêntico flop. Só houve um ano que prometeu um apoio de cerca de 2.200 euros, que era para a internacionalização do público do festival. Aspecto que nós, naturalmente, queríamos potenciar. Acontece que esse foi o ano da pandemia e esse apoio foi cancelado. 

Seria para aproveitar o fluxo turístico de Lisboa, por exemplo? 

Por aí. Nós estamos vocacionados também para sensibilizar o público estrangeiro para vir ao festival, como também os residentes estrangeiros que vivem em Santarém e que esses não têm da parte da Entidade de Turismo o mesmo olhar. Porque se olha para o turismo estrangeiro de passagem e não para o estrangeiro que reside em Portugal. Nós temos, efectivamente, essa preocupação, mas quando pedimos apoio a única coisa que nos garantem é a eventual divulgação dos nossos programas no site da Entidade. Enfim, parece-nos que é coisa pouca. Apesar de haver, dizem que há, quase não se nota, uma representação da ERTAR em Santarém, na própria Casa do Campino. Mas nós não vemos ninguém, ninguém aparece, para nós não existe. 

Desde que acabou a Região de Turismo do Ribatejo e que deu aso à Entidade Regional de Turismo do Alentejo, e que muito modestamente fala no Ribatejo, porque há até promoção no estrangeiro em que se esconde o Ribatejo, nós não temos essa relação. Já o escrevi, já o manifestei directamente, portanto posso dizer isto assim de peito aberto, porque já o disse na cara das pessoas, nós não sentimos a existência nem a actividade da Entidade Regional de Turismo do Alentejo e do Ribatejo.

Ainda no capítulo dos apoios. Houve algo que o próprio Grupo Académico criou, que foi a Liga dos Amigos do Festival. Tem funcionado? A população tem aderido? 

A Liga tem cerca de 200 membros. É uma ajuda, naturalmente, até porque temos amigos que nos apoiam com 20 euros, mas temos um outro amigo que nos apoia com 750, temos um outro que nos apoia com 300 e no fundo também nos ajuda a pagar as despesas do Festival. O que é verdade é que quando nós implementámos a Liga dos Amigos do Festival Celestino Graça os espectáculos decorriam à porta livre. E, portanto, as pessoas colaboravam com essa quota, como se fosse um bilhete para o Festival.

Quando começámos a cobrar os ingressos para os espectáculos, muitas pessoas deixaram de apoiar a Liga e começaram a pagar os bilhetes. É uma opção, apesar de que para nós a Liga é muito mais do que a garantia de pagamento de bilhetes para os espectáculos, tem um outro envolvimento que nós queremos optimizar, nomeadamente as pessoas fazerem críticas e darem comentários e sugestões à organização do Festival. Queremos que os Amigos do Festival Celestino Graça não sejam só entidades pagantes, mas sejam também entidades que possam dar a sua opinião e fazer a sua crítica, em espaço e tempo próprios.

O Festival Celestino Graça continua com a chancela do CIOFF. Que vantagens reais tem essa fidelização?

Reais não há nenhuma. Mas há o estatuto. É que no mundo só há cerca de 300 Festivais CIOFF. E um dos mais antigos e fundadores do CIOFF é o de Santarém. E aí há, naturalmente, um estatuto grande. Nós temos o nosso Festival publicitado no calendário de festivais CIOFF de todo o mundo e isso, naturalmente, dá-lhe importância.

Por outro lado, oferece garantias aos grupos que aceitam vir participar. Nós temos um regulamento para a organização dos festivais que temos de cumprir com dignidade, até pela forma como acolhemos os grupos.

Há também um outro aspecto ainda a considerar, que é o facto de Celestino Graça e João Moreira terem sido fundadores do CIOFF. E, portanto, queremos manter essa ligação, embora, claro, do ponto de vista financeiro não haja retorno. Temos de pagar uma quota anual e não há contributo do CIOFF, mas integramos uma rede a nível mundial que funciona e que projecta o Festival de Santarém em todo o mundo. 

Estamos aqui no Centro Etnográfico Celestino Graça no qual, o passado dia 30 de Novembro marcou o início de uma nova etapa na história do Grupo Académico. Que balanço faz deste ano que está quase a passar e como poderá afirmar-se cada vez mais como guardião das memórias do Ribatejo? 

Foi importante, porque nós tivemos a oportunidade de enriquecer o nosso plano de actividades com algumas iniciativas. Desde logo, as primeiras Jornadas de Etnografia e Folclore do Ribatejo, que de facto foram um sucesso. Tivemos cerca de 70 participantes de 20 grupos da nossa região; foi um momento de reflexão sobre o folclore regional muito importante. E iniciámos também as tertúlias ribatejanas, tendo tido uma primeira com uma abordagem sobre o Ribatejo histórico, geográfico, político, económico e cultural, com o Dr. António Matias Coelho, que foi muito interessante.

Teremos agora, no final de Setembro, mais uma tertúlia ribatejana, para a apresentação do livro sobre a vida de Manuel dos Santos. Teremos também uma homenagem a Celestino Graça, na circunstância da comemoração dos 50 anos do seu falecimento, e, eventualmente, a apresentação de um livro das actas do último Congresso do Ribatejo e das homenagens prestadas a Celestino Graça no centenário do seu nascimento. 

Portanto, o programa está a ser cumprido, o plano de actividades está a ser enriquecido e esta casa tem mais vida e tem mais alma.

O que é que diria hoje, se estivesse entre nós, Celestino Graça? Se chegasse, visse, o que é que diria hoje? 

Eu penso que Celestino Graça ficaria satisfeito com o que visse, porque as circunstâncias são completamente diferentes daquelas que eram as do seu tempo. No tempo de Celestino Graça o Grupo não existia do ponto de vista jurídico. Hoje tem personalidade jurídica, é uma associação com órgãos eleitos, com os seus instrumentos de gestão devidamente actualizados, com as assembleias para aprovação de plano de actividades e orçamento e relatório de actividades e contas, portanto, do ponto de vista associativo, nós funcionamos na plenitude. 

No tempo de Celestino Graça não tínhamos uma sede, ensaiávamos na sua garagem. Hoje temos uma sede, enfim, que ainda não é o suprassumo, mas tem dignidade, tem condições e permite-nos fazer um bom trabalho.

Por outro lado, o Festival Celestino Graça, hoje, é muito mais festival do que era no tempo de Celestino Graça, porque tem toda esta multiplicidade de eventos associados que antigamente não tinha. Os grupos vinham, dançavam na Feira, iam dançar a Turquel, a Alcobaça, a Lisboa e acabou-se, não havia mais nada. Hoje há muitas coisas em torno do Festival.

Agora, é evidente que nos falta o público da Feira, porque nessa altura o Festival Internacional de Folclore era um dos poucos espectáculos pagos do programa da Feira e tinha sempre as bancadas cheias, com milhares de pessoas. O desfile etnográfico, que nós deixámos de fazer por falta de comparência de público, levava às ruas da cidade milhares de pessoas. É evidente que as pessoas hoje não moram na cidade e não vão assistir ao desfile, e por isso nós acabámos com ele. Esse tempo acabou. Esse Festival é memória que nós queremos preservar, respeitar e homenagear. Isto não diminui em nada, antes pelo contrário, o trabalho e a acção de Celestino Graça, porque ele foi o estruturador de tudo, desde o Festival, aos Grupos Infantil e Académico de Santarém. Portanto, tudo quanto nós fazemos é assumindo que Celestino Graça se reveria naquilo que nós estamos a fazer e também com a convicção de que, se ele fosse vivo, teria dado estes passos e, naturalmente, teria feito muito melhor do que nós conseguimos fazer. Tudo quanto fazemos é em assumida homenagem a Celestino Graça. 

Santarém tem sabido retribuir tudo isto ao Grupo Académico? 

Nós não nos podemos queixar da população de Santarém, que comparece nos espectáculos, agora, é evidente, também temos de fazer a leitura social do nosso tempo. As pessoas hoje vivem nos seus casulos, têm a sua cadência de vida muito própria e comparecem pouco nas coisas. O que é verdade é que o nosso público tem sido fiel ao longo dos tempos e nós respeitamos e agradecemos muito essa presença e esse apoio.

Tem sido fácil captar os mais novos para o seio do Grupo? 

Ao nível do Grupo Académico nós temos muitos jovens, mas temos, igualmente, componentes na casa dos 80 anos. Ao nível do Grupo Infantil, nesta fase, temos menos, porque eles transitam para o Grupo Académico deixando o Infantil numa fase mais débil. No entanto, temos aí uma fornada de miúdos para entrarem, porque uma das características dos nossos Grupos é a relação familiar entre os seus elementos, e a maioria dos elementos do nosso Grupo são filhos, sobrinhos, primos, netos, ou bisnetos de pessoas do nosso Grupo.

Mas o nosso futuro, efectivamente, é garantido pela presença de crianças no Grupo Infantil. Vêm por amizades, vêm por serem colegas de escola. E, portanto, temos já aí uma fornada de miúdos, que agora têm os seus três, quatro, cinco anos…

Acredita que um dia vai ser possível vermos o folclore ser leccionado nas escolas, claro, como uma actividade extracurricular, como acontece noutros países? 

Deveria ser. As AEC têm teatro, jogos tradicionais, poderiam ter também o folclore, como uma forma de valorizar a identidade das regiões. 

Agora, há algumas vertentes do folclore nos currículos das disciplinas do secundário. Por exemplo, na educação física, há a possibilidade de fazer actividades relacionadas com dança. Na língua portuguesa há a possibilidade de fazer coisas relacionadas com o cancioneiro. Portanto, se houvesse vontade para isso, seria possível. O problema é que os professores não se sentem competentes para leccionar essas matérias, até porque andam de mochila às costas e não conseguem falar do folclore de uma região que não conhecem. Poder-se-ia fazer mais nesse aspecto, mesmo em termos locais, se porventura os conselhos directivos dos estabelecimentos, dos agrupamentos escolares, tivessem essa sensibilidade e convocassem para complementar o ensino académico com os grupos folclóricos que poderiam coadjuvar nessa função. Enfim, veremos o que é que o tempo nos reserva, mas não são futuros auspiciados.

O Grupo Académico tem declinado convites para participar em festivais no estrangeiro por trazerem custos acrescidos. Há diferenças na forma como se olha o folclore no estrangeiro? 

Não há comparação. Agora, por altura do 15 de Agosto, realizou-se o Festival de Confolens, em França, que é um dos principais festivais de folclore do mundo. É uma versão muito ampliada do nosso festival, porque eles também têm esta diversidade de aspectos no seu programa, só que em grande.

O festival decorre durante uma semana e um passe para assistir aos espectáculos todos custava, há cinco anos, quando lá estivemos, 128 euros. Mas, se quisesse ir, por exemplo, só a uma gala, pagaria 25. E nós aqui cobramos por três galas 12 euros. Portanto, é uma realidade completamente diferente. Depois há o aspecto da regionalização em França que, neste caso, dá força e poderio económico às regiões para apoiar as iniciativas que decorrem no seu território.

Nós fazemos aqui uma gala solidária, dedicada aos utentes das instituições particulares de solidariedade social, crianças e veteranos. E fazemos isto sem levar um tostão a ninguém e sem o apoio de ninguém. O Festival Confolens quando faz essas iniciativas é o próprio governo regional, na área social, que apoia a realização deste espectáculo. Enquanto nós, aos preços que praticamos, metemos 600 pessoas na Casa do Campino, no Festival Confolens cada espectáculo tinha entre 2.500 a 2.800 espectadores. Portanto, são realidades completamente diferentes.

O orçamento do Festival Confolens é na ordem dos 700 mil euros, nós estamos a léguas dessa realidade.

Por outro lado, em termos de apoio às digressões, o Grupo Académico tem uma particularidade, que é representar o folclore do Ribatejo, o que só por si é muito aliciante. A diversidade das danças do Bairro e dos trajes de Lezíria em cima do palco, faz um espectáculo. E nós temos partilhado palcos, no estrangeiro, com grupos com mais qualidade técnica do que nós, mas, quase, por paradoxo, nós temos mais sucesso do que eles, pelo afecto e o sentimento que as nossas danças transmitem.

Recentemente fomos à Chéquia, as passagens aéreas custaram-nos mais de 10 mil euros. É muito difícil manter estas representações de Portugal no estrangeiro. Os nossos próprios componentes, cada um deles pagou 100 euros para comparticipar o seu bilhete. E alguns de nós pagámos integralmente os nossos próprios bilhetes. Ora, isto é insustentável, por, para além de financeiramente ser muito penalizante, digamos que é inclusivamente indigno que nós, que nos sacrificamos a ir para o estrangeiro para representar Santarém e o país, tenhamos de estar ainda a suportar os encargos com essa digressão, por falta de sensibilidade de quem tem a obrigação de nos apoiar. 

Mas, enfim, é uma situação já antiga com a qual nós convivemos, por isso não podemos ir todos os anos ao estrangeiro. Temos um convite, por exemplo, para ir aos Estados Unidos da América, ao Tennessee, a convite do grupo que vai participar este ano no Festival Celestino Graça. Certamente não conseguiremos ir porque não arranjamos dinheiro para pagar os bilhetes. É a realidade que temos.

O Ludgero Mendes começou no dirigismo associativo em Outubro de 1975. São 50 anos de dedicação a muitas causas, muitas delas ligadas à etnografia e ao folclore. Que balanço faz desse meio século e se valeu a pena?

Pessoalmente valeu a pena. Eu sou hoje melhor pessoa do que era antes. E o facto de ter crescido e me ter feito homem neste tipo de relacionamento associativo abriu-me perspectivas diferentes em termos da visão do mundo, da visão de Santarém. Eu fui dirigente de quase todas as associações de Santarém. Agora, naturalmente que resulta daí um certo prejuízo para a família. Muitas noites fora, muitos fins-de-semana fora e tudo isso. Eventualmente poderia ter evoluído mais até do ponto de vista profissional, posto que em certa altura tive desafios estimulantes e não aceitei sair de Santarém para continuar ligado a todas estas actividades.

Feito o balanço, acho que valeu a pena, com muito sacrifício pessoal, mas é um sacrifício que foi sempre compensado pela gratificação de participar naquilo de que gosto e de estar presente.

E olho para trás com saudade, porque a idade vai passando, não é? Mas com muita gratidão à vida por me ter permitido fazer também todo este percurso que eu gostei de fazer e que quero continuar por mais algum tempo. 

Já equacionou a passagem de testemunho na direcção do Grupo Académico?

Desejo que num próximo futuro possa fazer a transmissão do testemunho, porque acho que as pessoas não se devem eternizar nos cargos, devem garantir a sua sucessão e o futuro das instituições onde estão. É o caso, por exemplo, do Grupo Académico e do Festival Celestino Graça. Este ano é um ano de eleições e desejo que no próximo acto eleitoral possa aparecer uma lista renovada, apesar de termos na lista muita gente nova já com experiência e capacidade que eventualmente poderá garantir o futuro do Grupo. Eu gostaria que isso acontecesse num tempo em que eu ainda estivesse capaz de poder ajudar nalguma dificuldade, até porque eu, desejando sair da direcção do Grupo, nomeadamente da sua presidência, não pretendo deixar de ser membro do Grupo, portanto continuo dentro da família e por cá estarei até que a saúde permita. 

Nestes 50 anos ficaram mágoas que não consegue ultrapassar?

Não, ultrapasso-as todas. Nós temos sempre mágoas de coisas menos felizes. Nem sempre acertámos, nem sempre fomos felizes, nem sempre fomos justos na apreciação dos comentários que fazemos e eu convivo com essa realidade, enfim, de uma forma autêntica e não mascaro de bem aquilo que não esteve bem.

Houve atitudes que eu tomei, enfim, algumas palavras ou comentários que hoje, à distância, não faria, mas as palavras são como as pedras, quando a gente as joga já não voltam para a mão, seguem em frente. Agora, a felicidade que tenho por aquilo que fiz, comparado com as mágoas que sinto, compensam completamente o esforço e, portanto, estou mais feliz do que magoado. 

A Federação do Folclore Português tem sido também uma segunda casa. Que importância tem para os grupos o trabalho da Federação? 

Muita e cada vez mais. Numa primeira fase, eu fui presidente do Conselho Fiscal durante 27 anos e a Federação, nessa altura, tinha os seus objectivos, que eram melhorar a representatividade técnica dos grupos ao nível folclórico e etnográfico, mas num tempo em que havia ainda pouca sensibilidade e consciência para a necessidade dessa mudança. 

O caminho foi-se fazendo, as mentalidades foram-se alterando e só ao fim de muitos anos é que começaram a verificar-se resultados positivos. Fruto dessa sensibilização, do trabalho dos Conselhos Técnicos, que também coordenei e integrei, foi-se melhorando. A seguir ao Conselho Fiscal, estive como Vice-Presidente da Direcção, um mandato, depois fiz uma interrupção de 10 anos e voltei para mais dois mandatos como Vice-Presidente da Direcção. Agora sou Presidente da Assembleia Geral. Também este ano teremos eleições e penso que vou continuar mais um mandato, pelo menos. 

Continuar a acompanhar a evolução dos tempos, também ao nível do folclore…

O Folclore de hoje, comparado com o de antigamente, não tem nada a ver. Basta vermos as fotografias dos grupos do passado, para ver os erros que lá estão e verificarmos como grande parte dos grupos melhoraram o seu quadro etnográfico, fizeram pesquisas, conseguem justificar muitas coisas que têm na sua indumentária ou no seu repertório e, desse ponto de vista, há uma consciencialização muito importante.

A Federação foi determinante para essa valorização do nosso património etnográfico e folclórico. Agora, claro, há muitos refractários à mudança. Há muitos grupos folclóricos que continuam a cultivar os erros que sempre tiveram e não se nota que tenham vontade de mudar, até porque não são penalizados por isso e deveriam ser.

Infelizmente, a maioria das autarquias dá os mesmos apoios aos grupos representativos que dá aos outros. E porquê? Porque eles não olham para premiar a qualidade dos grupos. Eles olham pela quantidade dos votos que deixariam de ter se penalizassem os grupos por não serem representativos. E, enquanto este critério subsistir em relação à avaliação do desempenho dos grupos, as coisas não mudam com facilidade. 

O Festival Celestino Graça também vai ter um delegado da Federação e do CIOFF a analisá-lo e a pontuá-lo?

Sim. Aliás, uma coisa que nos tem alegrado muito é que a pontuação do CIOFF é de 0 a 5. E nós, nos dois últimos anos, tivemos 4,75. Portanto, estamos praticamente na excelência.

E esta avaliação é feita também em conjugação com a avaliação dos grupos que participam. Portanto, os grupos que nós alojamos, que nós alimentamos, que nós transportamos e a quem nós oferecemos condições para os espectáculos, avaliam também a qualidade do Festival. E, portanto, desse ponto de vista, estamos muito gratificados porque fazemos um bom trabalho.

O facto de haver grupos filiados na Federação, outros filiados no INATEL, é bom ou mau para o folclore? Há uma ideia de que são diferentes “divisões”. Isso realmente verifica-se na prática? 

Não é tanto assim. De facto, para serem membros efectivos da Federação do Folclore Português, os grupos sujeitam-se a uma avaliação técnica e só os grupos que tenham uma avaliação positiva, satisfatória, é que podem ser membros efectivos da Federação.

E, desde logo, há um critério de qualidade. Apesar de que, na Federação, há um outro estatuto de grupos, que são os aderentes, que são os que, ou iniciaram o seu processo de adesão e ainda não foram considerados suficientemente bons para transitar para efectivos, ou então são grupos que, de alguma forma, foram despromovidos, não mantiveram a qualidade necessária para ser efectivos e regrediram para sócios aderentes. 

O conceito da Fundação INATEL é diferente. Os grupos não têm avaliação técnica, têm apenas um estatuto que é o de CCD, portanto são associados na Fundação INATEL, que não tem esse critério nem essa obrigação da avaliação técnica dos grupos. A Fundação tem colaborado em parceria com a Federação do Folclore Português, viabilizando a realização de algumas iniciativas. E hoje podemos dizer que a Federação do Folclore Português e a Fundação INATEL estão de braços dados para valorizar o folclore português e em muitos aspectos têm-no conseguido. 

Acha que o Estado tem feito jus à importância do Folclore em Portugal? O que é que era necessário fazer para dignificar as culturas tradicional e popular portuguesas?

O próprio Estado, a nível do Governo, devia criar um instituto ou afectar uma nova valência no Instituto Português de Património Cultural para acompanhar o património imaterial. E, nessa perspectiva, enquadraria os próprios grupos folclóricos a quem, naturalmente, imporia regras. 

Da mesma forma que o IPPC qualifica o património edificado, também deveria qualificar as representações dos agentes que no terreno cuidam do património imaterial e isso não é feito.

Agora, naturalmente, que isso exigiria uma estrutura para acompanhamento do Movimento Associativo do Folclore Português, que custaria algum dinheiro. Não temos dúvidas nenhumas.

Mas, à falta dessa capacidade de investimento, o que o Governo poderia fazer era celebrar contractos programa com entidades que no terreno estão a fazer esse trabalho, nomeadamente com a própria Federação de Folclore Português, em quem descentralizaria algumas atribuições, algumas incumbências, ao nível da disciplina do Movimento Associativo. Porque, actualmente, está tudo dentro do mesmo saco. E não pode estar. Tem de haver o saco dos melhores, o saco dos bons, o saco daqueles que ainda não estão bons e têm capacidade de lá chegar e o saco daqueles que não têm qualidade nem a querem ter.

Portanto, para cada situação tem de haver uma forma distinta de avaliação, de acompanhamento e de apoio. 

Hoje, o Estado não concede apoio directo, nem logístico, nem financeiro, a nenhum grupo ou rancho folclórico. Aquilo que existe e que, em bom rigor, quase não é utilizável, é a isenção do pagamento do IVA para a aquisição, por exemplo, de instrumentos musicais. O que tem um grande sucesso e efeito, no caso das bandas filarmónicas, mas não tem ao nível do folclore, porque o tocador é que é o dono da sua guitarra, da sua concertina, ou do seu acordeão e, portanto, o grupo não vai comprar um acordeão para ir buscar um acordeonista sem instrumento. As coisas não funcionam assim. Há, teoricamente, um apoio, mas, na prática, não funciona. E, portanto, é uma forma encapotada de dizer que apoia.

Depois, o facto de fazer delegação de competências para as autarquias, como já referi, há autarquias que estão muito sensíveis a esta problemática e apoiam de forma substancial, correcta e justa os grupos do seu concelho, enquanto há outras que, de facto, não gastam um cêntimo a apoiar a cultura tradicional e popular. Isto até coloca os próprios grupos num plano de desigualdade dentro do mesmo país. Parece que, num caso, são portugueses de primeira e, noutros casos, são portugueses de quarta ou de quinta.

É a realidade que temos e, se o Estado não se preocupa com coisas tão mais importantes para a vida das pessoas, não temos muita esperança que se vá incomodar também com o relacionamento com os agentes culturais amadores e populares.

João Paulo Narciso

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