Os olhos de Adília nem queriam acreditar enquanto liam uma carta registada recebida a 20 de Novembro do ano passado, que lhe dava um mês e 11 dias para abandonar o número 61 da Rua Serpa Pinto, que foi seu durante quase seis décadas.
“Faltou-me o chão. Faltou-me vontade para tudo. Só perguntava a mim mesma: o que é que eu vou fazer meu Deus do céu!? Não tenho nem um mês para sair daqui”, recorda.
Na missiva, o senhorio ordenava-lhe a saída, de certo por ter outro destino a dar aquele espaço que a família Martins tornou sagrado ao longo de duas gerações.
Para Adília Martins a loja foi “herança” de seu marido Carlos Martins que já a tinha recebido de seu pai, João Marques Martins.
A ‘Casa Martins’ é um dos estabelecimentos comerciais mais antigos do centro histórico de Santarém e já tinha sido uma casa de ferragens antes de João lhe pegar e a “reconstruir de raiz”.
“Tudo o que está aqui foi ele que mandou fazer, depois montou a loja onde nós vendemos de tudo um pouco, porque antigamente não havia o pronto-a-vestir, só havia tecido a metro. Depois começou a vender-se fatos de homem, artigos de senhora, malas, luvas, vendeu-se de tudo um pouco”, lembra Adília ao ‘Correio do Ribatejo’ no dia em que a visitámos, onde está sempre, sentada atrás do balcão, alinhada com a porta que desde 20 de Novembro é porta de saída.
Agarrada a um contrato de arrendamento que tem em seu poder, Adília conseguiu atrasar o fecho da ‘Casa Martins’ cerca de cinco meses, até 31 de Maio deste ano, data em que se cumpre o contrato com o actual senhorio a quem terá de entregar a casa “toda limpa sem ter nada dentro,” apesar de ter, garante, “as rendas todas pagas e tudo em dia e a escrita organizada por um contabilista”.
“O senhorio disse que quer a casa e não há volta a dar”, lamenta, inconformada. Um ‘balão de oxigénio’ que lhe permite respirar mais uns meses, mas com a mágoa sempre presente pela certeza de que o dia em que a porta não se abrirá terá de chegar.
Com a doença do marido e, posteriormente, a sua morte, Adília pegou no negócio com garra de quem quer que os negócios dêem certo. Foi mulher num território de homens e a tarde que passámos com ela ajudou-a a lembrar histórias antigas que lhe arrancaram sorrisos e lágrimas.
“Eu vim para aqui como empregada e depois casei com o fi lho do patrão”, confidenciou.
Com a morte do marido, Adília decidiu manter a Casa como ela estava, em jeito de homenagem póstuma. “Isto era o orgulho dele e depois passou a ser o meu e quis manter a tradição e a sua ideia”, afirmou.
“Fui eu que agarrei nisto. Tive de o fazer porque não percebia nada do negócio. Eu estava crua, custou-me muito a entrar no esquema, mantive os fornecedores, mas quem fazia as compras e lidava com eles era o meu marido, a mim não me conheciam.
Eu, por exemplo, pedia-lhes 10 camisolas mandavam-me três porque não tinham confiança. Custou-me muito a impor-me neste mercado, um mundo de homens à imagem da sociedade da época em que as mulheres tomavam conta dos fi lhos em casa”, lembra.
“O que é nacional é bom”
A ‘Casa Martins’ já foi uma das casas com maior prestígio no centro histórico de Santarém, procurada pela qualidade dos produtos que vendia e, até Maio, ainda vende.
“É uma característica da Casa comprar apenas produtos nacionais, tenho os barretes de campino, tudo de pescador, cintas, meias ou lenços, coisas que os supermercados hoje não vendem, as pessoas geralmente quando querem ir para os ranchos já sabem e é aqui que procuram os trajes”, esclarece, “afinal, o que é nacional é bom”, garante.
“Era um sítio muito procurado por grupos tradicionais do nosso Ribatejo, como a Orquestra Típica, eles sabiam onde tinham de ir e vinham aqui à minha casa”, revela com orgulho.
“Os estrangeiros quando passavam aqui até pediam para tirar fotos porque na terra deles já não há nenhuma casa como a minha, era uma casa que ao fi m e ao cabo dava lucro e continua a fazer sentido. Faz falta uma casa destas em Santarém”, salienta, emocionada.
Com o fim da ‘Casa Martins’ onde várias gerações de ribatejanos a conheceram, no coração da cidade, quisemos saber se Adília estaria disposta a reabrir noutro local, hipótese que não pôs de lado, mas sem possibilidade de pagar o preço das rendas novas que se praticam na cidade.
“Não tenho hipótese de pagar uma renda dessas”, justificou, apesar de assumir a pena de não poder continuar a investir no negócio de uma vida quase inteira.
“Tenho fornecedores bons, amigos de há anos que me facilitam a vida, muito, se precisar de um artigo que não tenha, telefono hoje, amanhã já cá está”, nota.
Aos 76 anos de idade Adília é uma boa contadora de histórias, muitas delas passadas ao balcão onde conversámos.
“Passou por aqui tanta gente, tanta gente, esta casa sempre foi um ponto de encontro de pessoas”, admite.
Agora, já são poucas as que passam na rua e menos ainda as clientes habituais que ainda param. A comparação entre o ontem e o hoje é para Adília comparar o dia e a noite: “tal e qual, é a mesma coisa, eu vim para aqui no auge. As camionetas de excursão entravam no centro histórico pela rua João Afonso, iam às Portas do Sol, visitavam as igrejas e depois, ao regressar, era por aqui que vinham. Era um movimento, uma loucura! Que saudades tenho desses tempos. As pessoas paravam, vinham, era uma coisa que não tem comparação nenhuma com os dias de hoje”, recorda.
Com os olhos verdes tristes, tristeza que a dignidade obriga a esconder, Adília sempre procurou ser uma “dama de ferro” a gerir com muita força de vontade e dedicação o seu negócio naquela rua Serpa Pinto, fazendo frente a todas as adversidades e partidas que a vida lhe tem pregado, mas foi com a voz embargada e o coração mole que respondeu às últimas duas perguntas:
Já sabe o que vai fazer no próximo dia 1 de Junho? A resposta chegou curta e célere: “Não, não sei”.
Insisti. E como foi o último Natal? A pensar nisso?
“Sim. A rir, a comer e a fingir que estava tudo muito bem…”.
JPN