O Bispo de Santarém, D. José Traquina, desafia os portugueses a serem uma “luz de paz”. Em entrevista concedida ao Correio do Ribatejo, o também presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana fala também do papel dos jovens na vida da Igreja, exortando-os a serem “verdadeiramente livres” e considera o Evangelho de Cristo “uma Boa notícia” porque “doravante não é possível estar voltado para o Céu sem estar voltado para a Terra. Não é possível amar a Deus sem amar o próximo”, reflecte.

Na sua mensagem de Natal, salientou a importância do perdão e da reconciliação num mundo marcado por conflitos. Como podemos, individual e colectivamente, promover esses valores em tempos tão desafiadores como os que vivemos?

O perdão é tema interessante como reflexão e um valor a considerar para haver solução para os problemas humanos. A Justiça tem de considerar a solução do perdão. A justiça pura e dura é impossível. Por isso mesmo a lei portuguesa prevê que um crime prescreve determinados anos depois. Isto é uma medida de perdão, admite que a pessoa não volta a cometer crime semelhante.

O perdão e a reconciliação promovem-se pela boa educação e formação humana. Assim, reconhecemos que não há pessoas perfeitas, somos frágeis, cometemos erros. O espaço onde basicamente o perdão e reconciliação se promovem é em casa, em família.

O tema da paz tem sido recorrente nas suas intervenções. Como vê o papel de Portugal na promoção da paz não só internamente, mas também globalmente?

Apesar dos maus tratos, abusos e violências que são registados, Portugal é considerado dos países mais pacíficos do mundo. Os portugueses, globalmente são pela paz. Um dos aspectos da adesão do povo português na adesão ao 25 de Abril, foi o anúncio do fim da guerra nas ex-províncias ultramarinas. Na sua maioria o povo português não sabia discutir ideias políticas, mas sabia que não queria que os seus filhos morressem na guerra no Ultramar.

Portugal deu um grande testemunho. Promoveu uma revolução, acabou com a guerra no Ultramar, mudou o regime político e não necessitou de matar ninguém. Isto é, controlou o ódio e os desejos de vingança. A estabilidade não foi conseguida de imediato, mas o bom senso prevaleceu e a paz foi um valor considerado para a felicidade de todos.

Importa que na Escola e nos Movimentos juvenis o tema da paz esteja presente e seja debatido. O futuro do mundo depende da reflexão acerca dos valores a considerar para essa edificação.

O Secretário geral das Nações Unidas é um português, o Eng. António Guterres, e penso que tem desempenhado a sua missão verdadeiramente como um construtor da paz. Podemos considerar que através do Eng. António Guterres, Portugal está presente como um apelo de paz para o mundo.

A campanha ’10 milhões de Estrelas’ da Cáritas visa envolver os católicos em acções de solidariedade. De que forma estas iniciativas contribuem para a construção de uma sociedade mais justa e acolhedora? Como podemos manter essa chama viva mesmo no meio aos desafios e crises que enfrentamos?

Com a campanha ’10 milhões de Estrelas’ a Cáritas pretende promover um compromisso social. Cada pessoa que obtém uma vela, é convidada a ser luz de justiça e de paz onde estiver. O resultado das velas compradas será 65% para as Cáritas Diocesanas poderem desenvolver a sua acção de caridade e os restantes 35% serão para as Cáritas de países lusófonos. Assim, a iniciativa pretende promover a solidariedade humana na proximidade com um gesto e um sinal. Em Santarém, a Cáritas Diocesana tem uma nova Direcção e está motivada a dar continuidade e a desenvolver o mais possível a solidariedade. A Cáritas Diocesana, com a rede das Cáritas paroquiais e outros Grupos Sócio caritativos, tem a responsabilidade de ser o rosto da Igreja Diocesana na atenção aos mais pobres.

As decisões, e acções de solidariedade de pessoas e empresas são globalmente discretas, mas são um testemunho notável em Portugal. Em todo o país, muitos milhares de pessoas colaboram voluntariamente em vários movimentos, organismos e serviços a promoverem o apoio a pessoas que dele carecem.

Relativamente à atitude individual, é bom que cada pessoa se conheça a si própria e tome a liberdade de aprender, corrigir e avançar. ‘Ser uma luz de paz’ corresponde também a uma opção sabendo que não há paz sem justiça, nem há justiça sem perdão. ‘Ser uma luz de paz’ é uma pessoa de bem, uma pessoa com quem se pode contar para o que é bem, uma pessoa optimista e com esperança, enfim, uma pessoa que acredita e transporta consigo uma luz interior que a faz vencer a solidão.

O cuidado com os mais frágeis tem sido uma das suas mensagens principais. Como é que a comunidade católica pode expandir esses cuidados, especialmente em relação aos grupos mais vulneráveis da sociedade?

As respostas sociais para pessoas frágeis e vulneráveis, não são fáceis de surgir porque tem encargos sociais difíceis de gerir.

Estamos disponíveis para apoiar iniciativas locais que possam surgir, mas regozijo-me pela existência de várias Instituições que na área geográfica da Diocese apoiam as pessoas mais frágeis com deficiência ou dependentes. Em Santarém existem várias e dão um grande testemunho de dedicação e bondade. Essas Instituições merecem todo o apoio porque o que lhes é assegurado oficialmente não é suficiente.

A mensagem do Papa Francisco para os jovens como semeadores de esperança tem ressoado nas suas palavras. De que forma pode a Igreja incentivar os jovens a tornarem-se protagonistas de mudança e solidariedade? Na celebração do Dia Mundial da Juventude, mencionou o papel dos jovens na vida da Igreja. Como podemos incentivar e capacitar os jovens a assumirem um papel activo na construção de uma sociedade mais inclusiva?

Pede-se que os jovens se interessem não apenas com o seu futuro individual, mas também pelo futuro da sociedade onde querem viver. Neste sentido, deseja-se que na Igreja, especialmente na pastoral juvenil, aconteça uma experiência de vida onde aconteça a corresponsabilidade dos jovens nas iniciativas, processos e realizações que tenham a ver com a qualidade e alargamento da comunidade, nomeadamente na integração dos jovens católicos que não se identificam com nenhuma comunidade ou movimento e integração de jovens com limitações especiais.

Na medida em que na Igreja os jovens exercem protagonismo nas acções a desenvolver, acontece crescimento humano e mais tarde outros protagonismos irão acontecer porque se ganhou o gosto e interesse pelo bem comum da sociedade.

É necessário que os jovens sejam vigilantes e façam discernimento acerca do caminho querem seguir. Andar conforme o vento, não é aconselhável porque o vento tem muitas propostas, mas pode deixar uma pessoa sem rumo. O jovem que quiser ser verdadeiramente livre tem de ser vigilante.

A sua abordagem une os valores cristãos com os desafios sociais contemporâneos. Qual a importância de uma abordagem integrada entre fé e acção social nos tempos actuais?

A acção social resulta de um olhar novo sobre a realidade humana. O Evangelho de Cristo é uma boa notícia porque doravante não é possível estar voltado para o Céu sem estar voltado para a Terra. Não é possível amar a Deus sem amar o próximo. Portanto, é a partir do coração de Deus, presente em Cristo, que os cristãos são chamados a ver e a considerar os seus semelhantes, nomeadamente os mais pobres, sejam eles quem foram, pois a caridade (amor) de Deus não tem fronteiras.

Como vê o impacto das suas mensagens sobre o sentido da civilização humana e o valor de cada pessoa na sociedade actual?

Quando me refiro a civilização tenho presente a evolução da pessoa humana e da sociedade. A humanidade evoluiu em conhecimento, em capacidade, em princípios éticos e morais de modo a considerar o bem comum de todas pessoas: é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 de Dezembro de 1948, que o consagra.

As injustiças, violência e guerras que existem actualmente contradizem a evolução da civilização humana, contradizem o que está na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Parece que estamos a regredir para os tempos mais antigos em que impera a lei do mais forte e a ausência do direito à vida.

É necessário conciliar a identidade de cada povo e nação com a dimensão de

uma só família humana.

Quais são os maiores obstáculos que observa na promoção do perdão, reconciliação e paz, tanto a nível individual como comunitário?

Admitindo que a pessoa humana é uma evolução da natureza animal, é necessário que a consciência funcione bem sob pena de a pessoa regredir e agir como o animal que está na sua origem. O perdão não é uma atitude de pessoas inferiores, pelo contrário corresponde a uma consciência de grande elevação que sabe considerar os problemas numa escala de valores onde o perdão é a solução.

O problema reside sempre na comparação do vencedor e do vencido. Pretender sempre a vitória custe o que custar, pode levar à maior das injustiças e não é critério para a edificação do bem comum.

Como vê o equilíbrio entre promover valores cristãos e respeitar a diversidade de crenças e perspectivas na sociedade contemporânea?

Em perspectiva católica existe abertura e vontade para o diálogo. Penso que as pessoas que assumem livremente um culto e evocam o nome de Deus em quem confiam, têm em comum algo de muito importante: o valor da vida e da paz. Só isto já é suficiente para justificar a proximidade, mas admito que existam dificuldades por falta de iniciativa e de tradição.

Obviamente, todas as diversas crenças devem ser respeitadas na medida em que também elas respeitam a ordem pública e as leis do país. Todos são beneficiários da Lei da liberdade religiosa que existe em Portugal.

A Igreja Católica (Santa Sé) tem um tratado (Concordata) com Estado Português sobre o funcionamento da Igreja em Portugal. Obviamente, o Estado Português tem a liberdade de estabelecer tratados (concordatas) com outras expressões religiosas se houver esse entendimento.

A sua mensagem destaca a fragilidade e dependência do Menino no presépio como um símbolo poderoso. Como podemos aplicar essa ideia na nossa própria vida e nas relações com os outros?

Direi à luz da Fé que foi uma opção de Deus. Jesus que era de condição divina, nasceu pobre, viveu pobre e morreu pobre e desse modo assumiu a realidade humana entregando-se para a resgatar da vida sem valor e sem sentido.

Confiadamente, penso que toda a pessoa humana se inscreve num mistério e desígnio de bem. Penso isto também das pessoas com deficiência. O que acontece é que os nossos modelos ou parâmetros de felicidade deixam-nos na tristeza por não corresponder à nossa realidade. É necessário aprender a viver na elevação da sobriedade, mas sempre atentos e interessados em acompanhar e participar no meio social em que vivemos.

Que conselho daria aos indivíduos e comunidades que desejam envolver-se activamente na construção de um mundo mais pacífico e justo?

O conselho é que sejam exatamente isso: justos e pacíficos, e não é nada pouco. Penso que a maioria das pessoas têm esse propósito. Entre todas, referencio o testemunho de muitos grupos jovens (Missão País e outros) que em dias de missão em muitas freguesias de Portugal, têm deixado um rasto de interesse pelo bem comum que constituiu um testemunho relevante.

É necessário reflectir a vida em contexto. Nascemos para viver uns com os outros e uns para os outros mas a sociedade evoluiu para um ambiente de competição e concorrência que choca com o valor da solidariedade. Não nos livramos do ambiente da competição e concorrência, mas, como se verifica, esse ambiente não favorece a paz e o bem comum. E não serve para se viver na mesma casa ou comunidade.

Assim, é necessário discernimento e cuidar de não perder outros valores e princípios que asseguram o sentido de uma sociedade evoluída que se preocupa em não deixar ninguém para trás.

Há sempre muito bem a promover e a realizar. Que o novo ano de 2024 seja um tempo marcado pela promoção da paz que o mundo tanto necessita.

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