No dia 29 de Julho, pelas 13h00, a freguesia de Alcanede foi alvo de um incêndio violento e de grandes dimensões que consumiu mais de 200 hectares de eucaliptal, afectou uma exploração pecuária e causou danos em várias habitações, em localidades como Vale das Caldas, Vale do Soupo e Aldeia da Ribeira. 

O Correio do Ribatejo visitou as aldeias afectadas pelo fogo, na passada quinta-feira, dia 31 de Julho, para dar voz aos testemunhos de Fernanda Carvalho, João Fonseca, Filipe Regueira, Manuel Joaquim Vieira e Fernando Manuel, alguns dos muitos que fizeram parte desta história de três dias de aflição e perigo. 

Ao circular pelas curvas sinuosas da Estrada Nacional 362, que liga Santarém a Alcanede, deparamo-nos com uma paisagem inóspita. As árvores carbonizadas, o chão cor de cinza e o cheiro intenso a queimado acompanham-nos até às portas da vila, revelando uma ferida recente e bem visível a olho nu, quer na natureza, quer na memória da população. 

Uma das zonas mais afectadas pelo incêndio foi a povoação de Vale do Soupo. Fernanda Carvalho, carinhosamente tratada na povoação por D. Fernanda, relata-nos como deu pelo incêndio: “Estávamos a almoçar. Uma sobrinha minha é que me ligou a perguntar se nós sabíamos. Depois fomos ver, mas vimos que ele ainda estava longe. O vento estava a tocá-lo para o outro lado. Ficámos preocupados, porque era aqui”. O fumo, no entanto, começou a ameaçar a povoação que rapidamente viu uma propriedade e uma pecuária serem consumidas pelas chamas.

“Pensei que morria tudo”

D. Fernanda convida-nos a entrar no seu quintal e mostra-nos o seu aviário. Ao caminharmos pela estrada íngreme de terra batida, surge o negro da vegetação que circunda o pavilhão onde as pequenas aves repousam, após terem sido ameaçadas pelas chamas. “Pensei que morria tudo, porque não é fácil. O calor das aves, o calor de fora, o barulho e aquilo tudo foi complicado”, conta. 

Com a ajuda de amigos, familiares e bombeiros, os 12 mil frangos conseguiram ser salvos. Apesar de ter sido evitado o pior, a habitante de Vale do Soupo não esconde os momentos de aflição vividos.

“Foi fogo de um lado, foi fogo do outro, foi fogo da parte de trás. Quando olhei para a frente, já estava um carro a começar a arder. Fiquei a pensar no pior. Aqui neste vale, estamos rodeados pelas silvas e aquilo metia respeito quando ateou nas silvas e nos eucaliptos. Fiquei preocupada”, recorda.

A entreajuda da população e a interacção com os bombeiros foi fundamental para fazer frente ao incêndio, até mesmo nas curtas horas de descanso: “Estiveram a dormir ali das cinco horas para a frente. Eram sete da manhã eu já estava a servir-lhes o café e fiz o pequeno-almoço para os bombeiros que aqui estavam. À tarde, eles voltavam a pedir café. Ficaram muito contentes”, revela D. Fernanda relata ainda que ofereceu mantas àqueles que ficaram a dormir no local. 

“Era um verdadeiro inferno”

João Fonseca, mecânico, vizinho de D. Fernanda, destaca também o desempenho dos bombeiros no combate às chamas e o apoio prestado à população. 

“Os bombeiros foram incansáveis. Quero agradecer muito a todos eles, especialmente aos de Camarate que desde o primeiro momento em que aqui chegaram, pediram-me para reunir toda a gente aqui em cima. Queriam saber quantas pessoas aqui estavam, para evacuar os idosos e as crianças”, recorda. 

O mecânico apercebeu-se do incêndio através do telefonema de uma amiga. Durante a conversa, relata, disse-lhe que estava a arder no mesmo local onde há duas semanas já tinha ocorrido um incêndio. João Fonseca conta ainda que foi no seu jipe para ver o fogo com os seus próprios olhos. Este, já estava com proporções muito grandes. A meio da tarde, foi-lhe dado o alerta de que, devido ao vento, o foco do incêndio ia mudar, uma informação que o fez pedir aos vizinhos para o ajudarem a proteger os veículos que tinha ao seu cuidado na oficina.

“Graças a Deus conseguimos que ele passasse sem danificar nada. Conseguimos travá-lo mesmo aqui em cima”, afirma, recordando ainda o reacendimento nas traseiras da sua habitação. “Ainda ontem [30 de Julho], esteve grave. Ele voltou a reacender, na parte de trás da casa, onde não tinha ardido ainda, mas vieram logo os bombeiros de Alcanede e conseguiram dar conta da situação”, lembra. 

Para além do susto e do medo de possíveis reacendimentos, João Fonseca espera que este incêndio sirva de lição para os donos dos terrenos. 

“Há muito terreno que não é limpo, há muitos eucaliptos junto das casas que não estão a respeitar os metros”, denuncia.

Logística afectou uma maior rapidez na resposta 

O calor fazia-se sentir no final da manhã de quinta-feira, 31 de Julho, com a temperatura a ultrapassar os 30 graus. Do solo, emergem pequenas fumarolas que são extintas com os jactos de água provenientes das mangueiras dos bombeiros. São vários os telefonemas da população a alertar para novos reacendimentos.

Na área ardida em Vale do Soupo encontram-se algumas equipas de bombeiros a efectuarem operações de rescaldo que se estenderam pelos dias seguintes. 

“Estamos a rescaldar, estamos a colocar água nos terrenos queimados e não queimados”, explica Filipe Regueira, comandante dos Bombeiros Voluntários de Alcanede. 

Uma acção realizada, também, para prevenir o alarme social. “Está tudo queimado à volta. O que é que pode acontecer se entrar uma chama aqui? Não vai acontecer nada, mas isso causa alarme social”, explica. 

É inevitável não repararmos na área ardida, nos eucaliptos e vegetação carbonizados. O comandante vai-nos pedindo para observarmos o pouco que resta, como um pinheiro-bravo que, devido ao calor, não vai sobreviver. 

Ao todo, a área ardida deverá ser superior a 300 hectares, estipula Filipe Regueira que, pelo meio, vai-nos contando também as dificuldades sentidas no combate às chamas. 

“Houve várias rotações do vento que fez com que a cabeça do incêndio, várias vezes tomasse direcções diferentes, agravadas pelo tamanho do flanco que depois se transformou em cabeça”, refere.  

O mato, a pouca humidade, o vento e o calor foram os principais agentes que contribuíram para a violência do fogo sentido em Alcanede, o qual os bombeiros estiveram a combater desde o primeiro minuto. Para além dos corpos de bombeiros locais e mais próximos, o combate às chamas contou também com meios provenientes da zona de Lisboa, do Oeste e do Médio Tejo.

Questionado sobre se os meios presentes no terreno foram suficientes para fazer frente ao incêndio, Filipe Regueira considera que sim, que foram “suficientes e adequados”, mas admite que a logística afectou uma maior rapidez na resposta. 

“Este fogo precisava de ter aqui logo a combatê-lo 30 ou 40 veículos e cento e tal bombeiros, logo ali nos primeiros 15 minutos. Isso é impossível”, afirma. 

O combate contou também com a colaboração de vários meios aéreos que, à semelhança dos meios terrestres, demoraram a chegar por motivos logísticos, segundo o comandante. “Havia outros incêndios também activos no país, também violentos, e nós não tínhamos o helicóptero que está mais perto, que é o de Alcaria e Porto de Mós, que ganha aqui por uns dois ou três minutos ao helicóptero de Santarém. Não estava ali em Alcaria, estava em Ferreira do Zêzere, tinha ido substituir um outro que tinha saído para um incêndio de maiores dimensões. Os aviões que estão em Santarém, dois Fire Boss, também estavam a operar no incêndio de Nisa e não estavam disponíveis na primeira hora para chegar aqui”, adianta.

Filipe Regueira destaca ainda o papel colaborativo da população na ajuda aos bombeiros para travar a batalha contra o fogo, mesmo que tal ajuda não seja a mais correcta, do ponto de vista técnico. 

“Os bombeiros têm sempre preocupação com o bem-estar e com a segurança das pessoas. Num incêndio destes não é seguro virmos para aqui em calças e t-shirt ajudar com uns ramos. Nós temos vontade de o fazer, mas o risco é grande”, assegura.

Apesar disso, Filipe Regueira revela a ansiedade e o nervosismo vividos pela população, neste tipo de situações: “Está sempre nervosa, sempre com receio e de forma compreensível porque, afinal de contas, está a ver os seus bens, a sua vida, a ficar hipotecados”, nota.

“Foi o maior dos últimos 20 anos”

Não foi somente a população e os bombeiros que viveram e sentiram os dias complicados trazidos pelo incêndio. Manuel Joaquim Vieira, presidente de Junta de Freguesia de Alcanede, recorda como viveu esses dias, em conjunto com a protecção civil da Câmara de Santarém, a fazer o levantamento das necessidades das pessoas mais afectadas. 

“O primeiro dia não foi fácil. Isto foi muito rápido. O fogo apareceu e movimentou-se muito rápido e com diversas mudanças de direcção, conforme os ventos”, relembra. 

É preciso recuar vários anos para o autarca se lembrar de um incêndio de dimensões semelhantes: “Foi realmente o maior, se calhar até dos últimos 20 anos. Mas normalmente os que têm aparecido têm sido controlados logo. Este é que escapou”, menciona o autarca que refere ainda a possibilidade de a origem do incêndio ter sido criminosa. 

“Tudo leva a crer que foi fogo posto, pois 15 dias antes, já tinha havido um mais ou menos no mesmo local,” recorda.

O incêndio resultou na destruição de uma casa habitada, duas desabitadas e uma pecuária, na qual se encontravam 350 leitões, e de uma grande área de floresta, cujos custos ainda não são possíveis de quantificar. “Quem irá fazer o levantamento será a protecção civil da Câmara Municipal de Santarém. Nós iremos acompanhar, com certeza, esse balanço. Para já é um balanço grave, muito grave. Principalmente porque apanhou aqui uma zona também de floresta, que é um dos principais rendimentos de algumas pessoas que vivem do corte dos eucaliptos e dos pinheiros. De tempos a tempos, eles conseguem fazer algum dinheiro extra e essa parte está destruída por mais nove ou dez anos”, observou.

No que diz respeito a medidas futuras para combater os danos causados pelo fogo, o autarca também não revela pormenores. “Não posso responder muito a isso. Não é da competência da Junta pagar indemnizações ou ajudar em termos monetários. Será um assunto que terá de ser transmitido ao Ministério da Agricultura, se calhar, mas ainda não houve tempo para aprofundar isso”, sublinha.

Encontrando-se o fogo já extinto, mas ainda em observação para fazer face rapidamente a possíveis reacendimentos, Manuel Joaquim Vieira deixa uma mensagem de agradecimento aos bombeiros locais e nacionais e a todos os privados que ajudaram no combate às chamas.

“Um obrigado aos bombeiros de Portugal e aos privados. Viam-se muitos veículos, tractores a ajudarem no combate. Só assim é que se conseguiu dar o incêndio por extinto. E também todo o apoio aqui dos nossos bombeiros na parte da comida, dos jantares, dos almoços, toda a distribuição de bens e águas”, salientou o autarca. 

“Vamos ter de enfrentar o medo”

Fernando Manuel encontra-se sentado na esplanada do café da vila, após uma madrugada a trabalhar. O habitante da localidade de Alqueidão do Mato fez ao Correio do Ribatejo o relato dos acontecimentos do incêndio de Alcanede.

“Acabei de almoçar já um bocadinho tarde e deu-me a sensação de ver fumo. Quando realmente vi já estava tudo praticamente a arder num sítio onde já tinha ardido, faz amanhã 15 dias”, afirmou. 

Com o filho a morar em Vale do Soupo, Fernando viveu o fogo com grande preocupação: “Aquilo foi um caos. Toda a gente corria para um lado e para o outro, a ver se cuidava dos seus bens. Também me arderam eucaliptos e pinhal. Lá ao lado havia um armazém. Na altura, estava lá um carro dos sapadores e lá conseguimos com que o fogo não chegasse perto do pavilhão”, lembra. 

As ligações de Fernando Manuel a Vale do Soupo não se ficam por aqui. Com apenas 12 anos, ajudou na construção da pecuária que ardeu no incêndio, levando tijolos e telhas num tractor. “O meu pai tinha uma cerâmica e foi ele que forneceu o tijolo e a telha para aquela pecuária. Foi o que ardeu agora, foi o madeiramento que tinha essa telha em cima”, relembra, indo em busca das memórias que se transformam em sentimentos ao ver o rasto de destruição deixado pelo fogo. 

“Chorei a ver aquilo a arder e não é meu. Mas é de família ainda, os donos são primos afastados. Custa, tudo custa. É a vida”, lamenta, emocionado.

Relativamente à origem do incêndio, Fernando Manuel acredita que foi fogo posto. 

“O que parece um bocadinho estranho é passado uma semana e três dias ter ardido de um lado e agora ter aparecido a arder do outro que não tinha ardido ainda. As coisas não ardem sozinhas. Não se sabe, não se pode dizer mais nada porque não se vê, mas, para mim, há mão criminosa no meio”, advoga. 

Fernando considera também que deveria haver mais cuidado na limpeza e manutenção dos terrenos, principalmente nos que pertencem ao Estado. 

“Estamos no meio de uma zona que é a Serra de Aire e Candeeiros. São terrenos baldios que pertencem ao Estado. É o que está mais por limpar. Por exemplo, ali na serra, se houver ali um fogo, em determinados locais, se não forem os meios aéreos, não se consegue lá chegar e pode tornar-se tão ou mais perigoso do que aquilo que foi agora. Todos os anos, as aldeias ficam em perigo”, alerta.

É preciso recuar 15 anos na memória de Fernando Manuel para que se lembre de um incêndio de dimensões idênticas e que na altura passou pela localidade onde vive. 

“Passou mesmo pelo meio das casas. Graças a Deus não houve problemas com casas nenhumas, porque eu também lá tenho uma habitação. Passou de um lado, passou do outro. Veio logo uma máquina pesada abrir arruamentos, nessa altura. Foi o que salvou as casas”, recorda. 

Apesar da extinção do fogo, o habitante ainda sente receio de possíveis reacendimentos, devido ao calor e ao vento. 

“Vamos ter de enfrentar e esperar com medo. Não sou só eu, nós todos temos medo. Estou sempre com o coração nas mãos, com alguma coisa que possa acontecer. Onde eu moro tem um bocadinho de eucaliptos ao longe, tem pinheiros, tem muitas árvores em volta”, confessa. 

As altas temperaturas continuam a fazer-se sentir na região e a vila de Alcanede não escapa a este tempo quente. Quando o Correio do Ribatejo se deslocou lá eram raras as pessoas que se encontravam na rua, com a maioria protegida do sol, no interior e ao fresco das suas habitações. Ondas de calor surgem nas curvas sinuosas da Estrada Nacional 362. Ao abandonarmos a vila, vimos atrás de nós um rasto de destruição. Feridas que vão demorar a sarar, quer na própria natureza, quer na memória colectiva de uma população habituada a conviver com o perigo.

Ricardo Pereira

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