As intensas chuvas caídas nas últimas semanas vieram trazer à memória dos ribatejanos mais velhos as inundações que tão frequentemente assolavam o vale do Tejo.

Cheia da lezíria vista das Portas do Sol (foto: Vítor Lopes)

Para quem vive longe da lezíria, muitas vezes as notícias sobre as cíclicas cheias do maior rio da Península Ibérica (assim como dos seus afluentes) vinham envoltas com a narrativa dos grandes benefícios que tal fenómeno trazia em benefício da fertilidade dos campos. 

Não era só a nível das notícias mas também em artigos ou publicações técnicas versando a temática da agricultura.

Já os efeitos causados sobre grande parte da população que vivia da agricultura, particularmente as camadas mais pobres, como os operários agrícolas, não faziam parte dessa dita narrativa. Os que viviam nos concelhos mais afetados ou lesse jornais locais ou regionais, como o «Correio da Estremadura / Correio do Ribatejo» percebia os dramas vividos, mesmo que a censura (às vezes mais a autocensura) não permitisse tratar o assunto com a realidade nua e crua.

“Foi um tristíssimo Natal para os povos inundados”, assim noticiava o «Correio da Estremadura» do dia de ano novo de 1909, para acrescentar que a 25 de Dezembro tinha chegado à Ribeira de Santarém o hiate Sado e, logo depois, o rebocador Guiné, para socorro das populações.

Segundo o semanário santareno, a essa data, já se reparava a ruptura na canalização de gás na Ribeira de Santarém que, por esse facto, tinha ficado parcialmente sem iluminação e que “á vigilância e trabalho dos empregados da secção dos serviços fluviais” se deveu o não arrombamento do dique dos Gagos, na freguesia de Alpiarça. Melhor sorte não teve o dique da Torrinha, também na mesma freguesia, entre as vinhas dos alpiarcenses Álvaro Simões e Ricardo Durão, que não suportou as forças das águas, rebentando na extensão de 60 metros.

A duas colunas, o «Correio do Ribatejo» titulava a 1 de março de 1947: “O Ribatejo mártir”, acrescentando “mais uma vez devastado pela cheia, pede que se realizem as indispensáveis obras de defeza”. Neste relato também se focava, para além dos danos materiais, o aumento das dificuldades dos trabalhadores, que ficavam longas semanas de braços caídos, sem rendimentos do trabalho, numa época em que os apoios à doença e a situações de desemprego eram miragens.

Também em Março mas, desta vez, de 1951 (ainda nos espantamos da chuva caída recentemente como se de um fenómeno anormal se tratasse) a bacia do Tejo estava submersa, com danos um pouco por todo o lado. Era a ponte de madeira na Vala Nova, em Benavente, que tinha sido destruída, o Rossio ao Sul do Tejo (Abrantes) com casas alagadas, onde nem o Cineteatro escapou à entrada das águas, assim como em Salvaterra as primeiras casas da vila se viram cheias de água ou próximo de Vale de Cavalos, a destruição do valado de protecção no sítio denominado por «Os Doze». E claro, hectares e hectares de campos agrícolas impedidos de serem cultivados, localidades isoladas e as estradas cortadas. Assim nos informava o «Correio» de 17 de Março.

Na última edição de 1960 do «Correio do Ribatejo», saída a 31 de Dezembro, o redactor escrevia que “desde a noite de quarta-feira que Alpiarça se encontra isolada pelas estradas, sem acesso à cidade de Santarém, devido às águas do Tejo que chegou às ruas desta vila (junto à casa do sr. Manuel Paciência Gaspar, Hdºs) e do Matadouro (que ficou cercado e, assim, se conserva) terem interceptado a passagem de peões e veículos pela chamada estrada do Campo como pela EN114, entre Almeirim e Tapada e, ainda, de acesso às localidades do Norte, por as águas também terem submerso o “Dique dos Vinte”, que liga a Chamusca à Golegã”. 

A pena do articulista não deixava por mãos alheias uma pitada de crítica aos que se aproveitavam das circunstâncias, ao abordar a passagem entre Almeirim e a Tapada, só possível por meio de barco “feito do nascer ao pôr-do-sol”, pela quantia de 5$00 ou até mesmo 7$50.

Pescadores com os seus barcos na saída de Almeirim para a Tapada (foto da edição do «CR» de 1 de Março de 1947)

A juntar aqueles preços, referia, os passageiros de Alpiarça tinham ainda de pagar o transporte nas camionetas da carreira até ao local de embarque e do desembarque até Santarém (4$80 e 1$20, respectivamente), o que totalizava entre os 22 e os 27 escudos, quando em tempo normal (e seco) se despendia apenas 9$60, concluindo que assim não compensa ir trabalhar quando se ganha 25$00 diários.

O correio também era afectado, uma vez que costumava sair de Alpiarça pelas 21 horas e com a cheia, acabava por sair às 16H30, cobrando os barqueiros a módica quantia de 30 escudos por viagem da mala de correio o que, para o redactor, era exagerado.   

Mas naquele tempo, mesmo com estradas cortadas, o correio era distribuído. Hoje em dia, uma correspondência em correio normal chega a demorar mais de uma semana a percorrer 30 quilómetros (ou menos).

A importância dos diques na protecção de campos adjacentes em cheias de pequena ou média dimensões é aqui bem evidente (Dique dos Gagos, próximo do Mouchão do Inglês, em Alpiarça, Fevereiro de 1979 / foto: Ricardo Hipólito)

Com a construção de barragens quer no Tejo, quer em afluentes, as cheias, apesar de já não ser nada do que acontecia há décadas, quando ocorriam continuavam a deixar prejuízos de monta. Em Dezembro de 1989, segundo o correspondente em Alpiarça do «Correio do Ribatejo», António Flor, as estimativas enviadas pela Câmara de Alpiarça ao Governo, em áreas da responsabilidade da referida autarquia, JAE e Hidráulica, apontam para 5.000 contos os prejuízos causados pelas recentes inundações.

PS – Quando se comemora mais um aniversário do «Correio do Ribatejo» votos de parabéns a todos os que mantêm este centenário projecto jornalístico em tempos bastante adversos. E neste momento de festejo, como noutros, não posso esquecer a amiga Teresa Lopes Moreira, sempre presente mesmo que fisicamente já não o esteja. 

Ricardo Hipólito

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