O antropólogo Aurélio Lopes prossegue a sua investigação em torno da figura de Maria no seio da Igreja Cristã, a partir da qual reflecte com bases científicas em questões de natureza social e cultural que permitem a compreensão do papel feminino na nossa sociedade ao longo dos tempos. A Mulher tem assumido distintos estatutos e representa díspares simbologias, o que acresce o interesse no aprofundamento desta tão aliciante problemática, não apenas no âmbito da religiosidade mas, igualmente, no plano social e cultual. 

Porquê um estudo sobre Maria?

Maria é hoje, em termos cultuais, a figura maior do cristianismo. Por todo o mundo cristão e, naturalmente em Portugal, onde a sua tutorização vem logo dos primeiros tempos da nacionalidade e é, afinal, o país onde se localiza Fátima, hoje por hoje, o Grande Altar do Mundo Cristão.

Não obstante, mais do que as promoções pastorais e fomentos doutrinários, a importância de Maria decorre da dimensão da sua cultualidade. E aí, da dimensão da crença e devoção das populações euro-mediterrâneas, que viram nela a substituta das antigas divindades femininas cultuadas durante milénios.

O mesmo inclui os aspectos da respectiva história evangélica?

O estudo que se denominará: “Maria; O Ressurgir da Deusa-mãe”, aborda as temáticas – evangélicas ou não – que têm a ver, mais directamente, com tal entidade. As incongruências territoriais e temporais do Natal, o interminável processo virginal e, o mais tardio acrescento mítico do nascimento prodigioso, a questão dos “irmãos do Senhor”, bem assim como temáticas crísticas associadas: virgindade de Jesus, infância, Madalena, Barrabás, etc. …

E a que é que se deve a actual importância mariana?

Nos primeiros séculos do cristianismo Maria terá sido, em grande parte, ignorada pelos evangelistas. Afinal, era apenas Mãe de Jesus, personagem, nesse tempo, ainda não consagrado como Deus. Contudo, dois factores doutrinários hão-de surgir (nos séculos III/IV) e, face a um universo de lacunas devocionais que a implantação cristã gerara em muitas sociedades euro-mediterrâneas (habituadas a cultualidades femininas que, a partir daí, passaram a estar interditas), criará condições para incrementar um desenvolvimento cultual popular que acabará por vir a ser dominante.

Falou de dois factores doutrinários…

Sim! Um deles, será precisamente a sua assumpção como “Mãe de Deus”, que se desenvolverá quando, em Niceia, em 325, Jesus foi consagrado Deus. Se quisermos, deixará de ser Filho de Deus (como afinal, de alguma forma, somos todos) e passará a ser Deus-Filho. Tal há-de, naturalmente, impulsionar o estatuto e a importância de Maria, com reflexos imediatos na devoção popular.

E o outro factor?

O outro, foi ainda mais determinante e resiliente – a transformação de Maria, de Mãe de Deus em Virgem Mãe de Deus. O factor virgindade (que resulta, ao que parece, de um equívoco de tradução) vai, no entanto, impregnar a mitologia mariana de uma noção de pureza e integridade que irá crescer até aos nossos dias. Virá, aliás, a impregnar todas as figuras que com ela estão relacionadas. Inclusive o próprio Jesus, cujas evidências maritais são, contudo, inequívocas.

Então Jesus foi casado? Com Madalena?

Tudo leva a crer que sim. As hipóteses de um judeu com trinta ou quarenta anos não ser casado, nem nunca ter sido, são muito pouco prováveis. Ora, apesar das rectificações a que os textos canónicos foram sujeitos – onde Jesus nunca poderia surgir como casado se se queria apresentá-Lo como virgem – a importância implícita de Madalena é, ainda, evidente. Bem mais do que seria se se tratasse apenas de uma mulher que “acompanhava o grupo de Jesus”.

Já os apócrifos, exteriores em grande parte ao controlo clerical, são perfeitamente claros e explícitos sobre isso. Entre outras coisas, e tendo em conta os dados existentes, mesmo que nos resumamos, apenas, aos canónicos, é, afinal, Madalena que, primeiro que todos, vê Jesus após a ressurreição. Isto, que é algo que tem sido desvalorizado, tanto em termos textuais como interpretativos mas corresponde a uma relevância que ultrapassa, em muito, meras conjunturas. Afinal, de acordo com os evangelhos, a ressurreição, e deste modo a sua comprovação, constitui o corolário do trajecto de divinização que se inicia com a “encarnação”. Ser o primeiro a ver Jesus corresponde, portanto, a uma especial importância que não pode ser menorizada.

Pode, assim, dizer-se que Maria e Madalena – Mãe e Esposa – constituem as únicas duas mulheres que surgem como minimamente relevantes (embora não podendo ser apóstolas) enquanto discípulas e apoiantes de Jesus?

Bom poder…  pode. Mas, provavelmente, não se deve! De facto, segundo os dados existentes, tanto canónicos como apócrifos, se Madalena parece ter constituído alguém que sempre o apoiou e acompanhou no seu percurso de pregação, já de Maria não se pode, de todo, dizer o mesmo. E embora as razões de tal não sejam evidentes, o que é facto é que tanto Maria como os diversos irmãos de Jesus, surgem, literalmente, tentando afastá-Lo das pregações e assumpções proféticas e desvalorizando o seu conhecimento. E são, aliás, por parte do mesmo, alvo, algumas vezes, de reacções de evidente desagrado e, poder-se-á dizer até, irritação.

E porquê a importância da virgindade em Maria?

Digamos que na mitologia mediterrânea (e não só) às grandes figuras eram, muitas vezes, atribuídos nascimentos prodigiosos. Desde Alexandre Magno a Hércules, de Teseu a Pitágoras, de Augusto a Helena de Troia, os exemplos são imensos. Ora, tal condição, quando atribuída a Maria, cairá como sopa no mel num cristianismo emergente, essencialmente misógino e patriarcal. Misoginia que resultava, aliás, essencialmente de duas causas concomitantes: a sociedade judaica, em que a mulher era essencialmente vista como reprodutora e, a gnose oriental que, digamos assim, estigmatizava a matéria e tudo aquilo que com ela se relacionava.

A crença na virgindade de Maria veio, assim, a impor-se numa dupla valência: como Mãe, preenchendo uma orfandade cultual existente em muitas populações europeias, e como Virgem, permitindo à igreja valorizar os seu aspectos não relacionados com a reprodução material. Se quisermos, com a abominável atracção carnal, apresentando-se, deste modo, como um arquétipo maternal místico e imaculado.

Mas, porque é que, sendo o cristianismo uma religião masculina assente num Deus Filho que se fez matar pelos Homens para os salvar, é sua Mãe, cuja contribuição para tal é apenas parcial e indirecta, que possui o culto mais popular?

Muitas das culturas europeias e da Ásia Menor eram, nesses tempos, compostas por sociedades predominantemente agrícolas, em que as divindades femininas eram, muitas vezes, dominantes. Inclusivamente no território português.

A introdução do cristianismo, de uma divindade única e masculina, gerou, aí, um conjunto de carências e lacunas devocionais, cujos crentes se viraram, então, para as santas femininas existentes no cristianismo, mesmo que escassas e menos relevantes. E, aí, Maria virá a constituir um foco devocional privilegiado. Para lá disso, poderemos dizer que, apesar do fomento e suporte doutrinário e eclesiástico, o culto de Maria possui operativamente condições de maior eficácia cultual que o sacrificial culto de Cristo. Apesar de isso criar engulhos no interior da Igreja.

Engulhos?

Sim, o paradoxo de um culto doutrinário especialmente misógino, cuja entidade de referência actual é feminina é algo, convenhamos, difícil de aceitar. Digamos que a Igreja tem tido, neste caso, uma atitude ambivalente. Por um lado, congratulando-se com a importância do culto mariano para o cristianismo, por outro, forçando a resignar-se a que a divindade principal – em rigor canónico a única divindade – seja cultualmente secundária e, em muitos casos, quase irrelevante.

Existe, assim, um incómodo que, aliás, já vem de tempos remotos. Afinal, temos conhecimento que já no século IV (nos primeiros dados que possuímos sobre o culto de Maria) tal acontecia. Algo que o período reformista tornará candente, o Concílio Vaticano II se debruçará, com propósitos de controle cultual e, chegará, afinal, até aos nossos dias.

Qual podemos, então, considerar o objectivo principal do estudo?

Demonstrar como as configurações cultuais de género, afastadas e diabolizadas pelo novo culto cristão em grande parte da Europa e Mediterrâneo, mantiveram vivas, de alguma maneira, as suas funcionalidades e, especialmente, as suas necessidades cultuais, nunca cabalmente satisfeitas pela acção doutrinária e operativa cristã, e acabarão por fazer da Mãe de Deus – que apesar de Virgem é Mãe – o foco congregador de persistentes e ancestrais motivações devocionais que a tornarão, de algum modo, numa nova Grande Deusa.

Expressa-se, assim, como um retorno das antigas deusas-mães que, pela Europa (e, entre nós, numa Ibéria oeste peninsular) predominaram em tempos proto-históricos e cujas valências, panteístas, sobrevivendo no imaginário popular rural, têm encontrado, de novo, de uma forma ou de outra, plenas funcionalidades. Numa Maria, “Rainha do Céu” e foco devocional privilegiado, assente em atributos cultuais milenares, em especial numa matricial identificação com a Terra Mãe, e num carácter marcadamente panteísta.

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