A azulejaria dos séculos XVII e XVIII em Santarém é mais do que um elemento decorativo – é um registo vivo da identidade e evolução artística da cidade. Em entrevista ao Correio do Ribatejo, António Francisco Baptista Valente, autor do livro Azulejaria de Santarém nos séculos XVII e XVIII / Revisitar um património “in situ”, destaca a importância deste legado, alerta para o risco de descontextualização e sublinha a necessidade de preservação. A obra, que foi apresentada sábado, 18 de Janeiro, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Santarém, resulta de uma investigação aprofundada e reúne documentos históricos e imagens inéditas sobre este património.

O que o motivou a escrever este livro e a focar-se na azulejaria de Santarém dos séculos XVII e XVIII?

A motivação para escrever este livro surgiu pelo profundo interesse em explorar e valorizar um património cultural singular que, muitas vezes, permanece subestimado. A azulejaria de Santarém, especialmente dos séculos XVII e XVIII, representa um testemunho riquíssimo da história artística e cultural da região. Este trabalho surge na sequência da minha dissertação de mestrado em História – Estudos Avançados do Património, onde aprofundei o estudo deste tema. Durante a investigação, percebi a necessidade de reunir e divulgar informações sobre este património, não só pela sua beleza estética, mas também pelo seu valor enquanto documento histórico. O objectivo foi, assim, dar voz a uma parte significativa da identidade de Santarém, sublinhando a sua importância no contexto nacional da azulejaria portuguesa e contribuindo para a sua preservação e reconhecimento. Este livro é, acima de tudo, um tributo ao património cultural que merece ser apreciado e estudado. Encheu-me de orgulho a proposta para a edição deste livro partindo do Centro de Investigação Joaquim Veríssimo Serrão, através do seu Director, o Professor Martinho Vicente Rodrigues.

Que descobertas mais relevantes fez durante a pesquisa para esta obra? Houve algum facto que o surpreendeu particularmente?

Durante a pesquisa para esta obra, uma das descobertas mais marcantes foi o triste destino de muitos painéis de azulejos de Santarém, especialmente dos séculos XVII e XVIII. Constatei que grande parte deste património foi alvo de roubo ao longo dos tempos, com peças valiosas sendo desmontadas e desviadas para outros locais, muitas vezes de forma clandestina. Um exemplo particularmente chocante foi o caso da Igreja da Graça, onde painéis de inestimável valor foram retirados do seu contexto original. Como se isso não bastasse, muitos painéis foram posteriormente aplicados em novos espaços de forma descuidada e com critérios estéticos e históricos, no mínimo, duvidosos. Esta falta de respeito pela integridade dos conjuntos originais surpreendeu-me profundamente, revelando não apenas o impacto da negligência, mas também a urgência de sensibilizar para a preservação deste património. Estas revelações reforçaram a importância do livro como uma ferramenta de memória e alerta.

O conceito de revisitar o património in situ é central ao livro. De que forma é que esta abordagem contribui para uma melhor compreensão e valorização da azulejaria da cidade?

O conceito de revisitar o património in situ é essencial porque o património, sobretudo a azulejaria, só faz pleno sentido no seu contexto original. Os painéis de azulejos foram concebidos para dialogar com os espaços arquitectónicos onde foram aplicados, integrando-se na sua função, simbologia e estética. Estudar a azulejaria in situ permite compreender essa relação intrínseca entre os azulejos e o espaço que os acolhe, seja uma igreja, um convento ou um palácio. No caso de Santarém, esta abordagem revelou-se indispensável para perceber como os painéis dialogavam com a arquitectura e como reflectiam as dinâmicas sociais, culturais e religiosas da época. Além disso, ao revisitar os locais originais, torna-se possível identificar intervenções posteriores, perdas e alterações que afectam a integridade do património. Esta perspectiva reforça a necessidade de preservar e valorizar os azulejos no seu local de origem, evitando descontextualizações que comprometem a sua história e significado.

A azulejaria de Santarém tem características que a distinguem do restante panorama nacional? Quais são os principais traços que definem esta identidade?

A azulejaria de Santarém possui características que a distinguem no panorama nacional, reflectindo a riqueza artística e cultural da região. Um dos traços mais emblemáticos é o chamado “Padrão de Marvila”, identificado por Santos Simões, que se destaca pela sua complexidade e sofisticação. Este padrão, concebido num esquema de 12 x 12 azulejos, combina 14 elementos diferentes obtidos de 11 matrizes, evidenciando o virtuosismo técnico e artístico do mestre azulejador Gaspar Gomes. Este trabalho revela uma enorme sensibilidade, não apenas na execução, mas também na composição, resultando num desenho de grande dinamismo e elegância. A singularidade do “Padrão de Marvila” exemplifica a capacidade da azulejaria de Santarém em unir funcionalidade e estética, integrando-se harmoniosamente nos espaços religiosos e civis da cidade. Além disso, a presença de esquemas decorativos tão inovadores reforça a importância de Santarém enquanto importante centro para a difusão da azulejaria nos séculos XVII e XVIII.

O livro combina investigação académica com ilustrações e fotografias. Como foi o processo de recolha e selecção das imagens que integram a obra?

A selecção das imagens resultou de um processo meticuloso, combinando trabalho de campo, visitas a monumentos e análise documental. Aproveito para agradecer mais uma vez ao Dr. José João Gomes pela ajuda que me proporcionou. Priorizei fotografias que destacassem detalhes técnicos e artísticos, bem como o estado de conservação dos azulejos. O objectivo foi complementar a investigação académica com um suporte visual enriquecedor e elucidativo.

Quais os principais desafios na preservação deste património azulejar e que medidas considera essenciais para a sua salvaguarda?

A retirada de azulejos do seu contexto original compromete a sua integridade histórica e artística, uma vez que este património só faz pleno sentido in situ. É essencial promover acções de sensibilização para a importância da conservação, investir em intervenções de restauro especializadas e reforçar a fiscalização contra o tráfico de peças. Além disso, medidas como a documentação rigorosa, o registo digital e a valorização deste património junto das comunidades locais são cruciais para a sua salvaguarda.

O lançamento do livro acontece num espaço emblemático como o Salão Nobre da Câmara Municipal de Santarém. Qual a importância deste evento na divulgação do seu trabalho?

O Salão Nobre da Câmara Municipal de Santarém é um local simbólico e estratégico para a divulgação deste trabalho. Este espaço emblemático sublinha a relevância do tema, reforçando o compromisso das instituições na valorização do património local. Ao reunir a comunidade e autoridades locais, o evento promove a sensibilização para a importância da azulejaria como parte integrante da identidade cultural de Santarém. É crucial que as instituições reconheçam e apoiem iniciativas como esta, pois só através de uma acção conjunta e contínua será possível proteger, estudar e divulgar este valioso legado histórico e artístico.

De que forma espera que este livro contribua para a valorização da azulejaria de Santarém e inspire novas investigações sobre o tema?

Espero que este livro contribua para a valorização da azulejaria de Santarém ao destacar a sua relevância histórica, artística e cultural, sensibilizando a comunidade e as instituições para a necessidade de preservação deste património único. Ao documentar e analisar a azulejaria in situ, procuro oferecer uma visão abrangente que evidencie a sua importância no contexto nacional. Além disso, desejo que esta obra inspire novas investigações, incentivando outros investigadores a aprofundarem o estudo de temas como a produção, os mestres azulejadores ou a circulação de padrões. Assim, o livro pretende ser um ponto de partida para um maior reconhecimento deste legado.

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