Chamo a atenção que a História, toda a História, é um tecido de interações. É uma história de descobertas, de quebra de barreiras, de isolamentos, de violências e de abusos. A história tem uma relação direta com o homem e o seu tempo. Isto é, estuda o homem e sua ação no tempo, ação essa que vai depender de um certo determinismo e da mentalidade dominante. Porque no texto de hoje falaremos da Expansão Portuguesa a Oriente, é necessário olhar para à época em função das necessidade e valores então prevalecentes.
Vimos anteriormente que a China havia expulsado os mongóis e que surgira uma nova dinastia, a Ming, dita como a “Brilhante”. Dissemos também que esta havia já enviado expedições marítimas por todo o Sudoeste Asiático, tocando cidades importantes, até à costa swaili no litoral da África Oriental. Depois do regresso da Frota do Tesouro, da sua 7ª viagem em 1433, logo seguido da morte do Almirante Zheng He, o imperador a braços com problemas internos, sinalizou a mudança chinesa na política externa: desmantelou e fechou os estaleiros de Nanjing e destruiu os registos que documentavam os seus feitos. A partir daí a China abandonou o enorme império comercial transoceânico criado pela Frota do Tesouro e nunca mais explorou os oceanos. A ciência e a tecnologia chinesa, especialmente no que dizia respeito à expansão, entraram em declínio. Foram implementadas leis navais entre as quais uma que restringia os navios a um pequeno tamanho. O declínio da marinha Ming permitiu o crescimento da pirataria ao longo da costa chinesa iniciando os saques a navios chineses e comunidades costeiras; apesar de grande parte da pirataria ser realizada por chineses nativos e indonésios, chegavam agora, pouco a pouco, os temíveis “wokou”, piratas japoneses senhores da barbárie. Todavia, embora decadente, a China ainda era um Império.
O descobrimento da Rota Marítima da Índia, pelos portugueses em 1498 via Ocidente, a conquista de Goa em 1510 e a conquista de Malaca em 1511, levariam ao lançamento da pedra basilar do Império Português do Oriente. 80 anos separam o fim das expedições marítimas chinesas que se verificou nos anos 30 do século XV, e a chegado dos portugueses ao Oriente no início do séc. XVI. Com a conquista de Malaca, em 1511, estavam criadas as condições para Afonso de Albuquerque se entregar à diplomacia e cumprir o pedido de D. Manuel de “saber dos cinos”, como Marco Pólo havia escrito. Aqui contacta com chineses de alguns juncos que por lá estavam e começa aquilo a que ele designou “a empresa da Cina”. Em 1513 Jorge Álvares foi mandado de Malaca à terra dos “cinos” e chegou à ilha de Tamão, (Lin Tin) próximo de Hong Kong. Logo depois, em 1512, já os portugueses navegavam pelos arquipélagos da actual Indonésia. Em 1515 vem à China Rafael Perestrelo. Regressa a Malaca em 1516. As informações e louvores que tece à China e às mercadorias que daí traz convenceram as autoridades portuguesas das vantagens de se mandar um embaixador à China. Em 1517 a nau de Fernão Peres de Andrade deixa Malaca a caminho de Cantão, pois leva Tomé Pires, o 1º embaixador enviado à China, botânico de profissão, que falava línguas, conhecia o Oriente e era um homem prudente e curioso. Este não é recebido pelo Imperador, pois o conselho imperial não só achou medíocre a carta e os presentes enviados por D. Manuel, como achou que a embaixada era uma farsa.
Em 1520 um breve combate entre alguns barcos portugueses e uma força chinesa na chamada batalha de Xicaowan, termina com a retirada chinesa. Havia agora um permanente navegar de embarcações portuguesas, superiores em manobrabilidade e poder do fogo, pelas águas do Índico e Pacífico, que levaria, segundo o historiador chinês Wu Zhiliang, ao impedimento de tornar a Ásia Marítima ou parte dela, logo no início do sec. XVI, território chinês ultramarino….
Os mandarins do Imperador Cheng Teh desconheciam a existência de Portugal, e estes portugueses que agora chegavam eram vítimas de intrigas por parte de muçulmanos. Estes haviam já perdido para Portugal reinos então tributários da China, como Ormuz e Malaca e viam os portugueses espalharem-se por feitorias como Ayutthaya em 1515 na Tailândia, Pacém em 1520 na Indonésia, Faifo em 1535 no Vietname, Nagasaki em 1540 no Japão, etc. Perguntava-se agora na corte imperial em Pequim: – Quem são estes bárbaros?
Comerciantes portugueses atraídos por fabulosos lucros vão chegando, cada vez mais, para o Sul do Mar da China; daqui sobem as costas mais a Norte para comércio clandestino. Vêm armados e vêm muitos. Inicialmente fixam-se em Liampó (1542-45), que Fernão Mendes Pinto tão bem descreve no seu livro “Peregrinação”, de onde saem porque derrotados em terra na batalha de Zoumaxi. Mas insistem. Entretanto o contacto dos portugueses com o Japão, eterno inimigo dos chineses, será vantajoso para a China, pois irão servir de intermediários no comércio, principalmente do da prata. Consentidos, vão-se fixando, embora periodicamente, em outros locais: em Lampacau (1542-1549), Sanchoam (1550-54) onde morre S. Francisco Xavier em 1552, etc. e por último, no local de preferência próximo de Cantão, embora não permanentemente, em Ama Gao, construindo construções temporárias. Nestes últimos espaços ou com o consentimento da autoridade Marítima de Cantão, ou a troco de pagamentos de direitos, ou a base de subornos, fazem comércio com um certo à vontade e chegam mesmo a ir negociar àquela cidade. Contudo nada é permanente.
A China sentia que se tornava urgente resolver o problema da presença dos portugueses no litoral Sul. Em simultâneo, outros problemas também iniciados ao tempo do imperador Cheng Teh inquietavam o Império e o actual imperador Jiajing: a invasão da capital chinesa em 1550 por Altan Kan, líder mongol, e que tanto abalou a Corte Imperial; a revolta a Sul em 1557, liderada por Zhe Lin; rebeliões de minorias nacionais que nasciam por todo o lado, como a desestabilização iniciada pelo bando de He Yaba; naquele imenso mundo de ilhas reinavam piratas como Wang Zhi, Lin Jian, Chang Si Lau, etc. Incapazes de reprimir, as autoridades chinesas, bem informadas, questionam entre si se pediriam ou não o apoio dos barcos portugueses. Que notícias tinham eles dos feitos dos portugueses? Tinham muitas:
– já sabiam que os “Kwai-lo” (termo cantonês para pessoas brancas) haviam contactado grandes portos seus, ou ainda conquistado outros portos tributários como Melinde em 1500, Colombo em Ceilão em 1505, Cochim em 1506, Malaca em 1511, Calecute em 1513, Ormuz e Mascate em 1515;
– sabiam que as armadas portuguesas controlavam vários mares como a “Armada do Capitão do Mar de Melinde”, a “Armada da Costa do Malabar”, a “Armada do Mar de Ormuz da Costa da Pérsia e Arábia”;
– sabiam das grandes derrotas infligidas pelos portugueses à armada do Samorim de Calicute na batalha de Cananor; à armada conjunta dos Otomanos de Miracém e sultão de Guzarate, na batalha de Diu; e do que se dizia por todo o lado, referindo-se à coragem que os portugueses demonstravam, pois pelos seus inimigos era dito em voz baixa: “a fortuna do mundo é serem eles (os portugueses) tão poucos porque a natureza, como aos leões felizmente os fez raros”.
Passavam os portugueses, antes tidos pelos chineses como “gente bárbara”, considerados agora gente do “da-ssi-yang- kuo”, isto é, do “Grande Reino do Mar de Oeste”. E sabiam não só pelas notícias chegadas de outros pontos da Ásia, mas também porque haviam “sentido os efeitos das grandes peças de artilharia dos seus barcos que soavam como trovões”; tinham admirado a tenacidade, coragem e o à vontade com que os portugueses se “passeavam” entre os piratas que infestavam aquelas águas, a todos enfrentando e derrotando.
Começam então os chineses a avaliar as drásticas consequências para a sua nação, impreparada para lidar com forças alheias à sua tradicional esfera geopolítica. Questionavam: – pedir o apoio de barcos portugueses? Porque não? Façamo-lo, mas com cautela! (continua).
