Os encenadores e actores Carlos Avilez, Fernanda Lapa e Rui Mendes e o jornalista e escritor Fernando Dacosta participaram, na noite do passado sábado, na conferência digital “À mesa da ‘Paraíso’, com Bernardo Santareno”, promovida por associações de Santarém.

A iniciativa, que se insere na celebração dos 100 anos do nascimento de Bernardo Santareno, foi moderada pelo coordenador do projecto ‘Cultura para Todos’ da Comunidade Intermunicipal da Lezíria do Tejo, Nuno Domingos, e inspirou-se nas “imensas conversas” realizadas na antiga Confeitaria Paraíso, na rua Alexandre Herculano, em Lisboa, que o dramaturgo, natural de Santarém, considerava a sua “segunda casa”, tão perto estava da editora Ática, que então o publicava (a par de autores como Fernando Pessoa, Mário Sá Carneiro e Sebastião da Gama).

Nesta conferência, na qual os participantes foram convidados a “evocar a pessoa, a obra e o trabalho multifacetado deste escalabitano”, que marcou “fortemente o teatro em Portugal no século XX”, Fernanda Lapa revelou o grande cariz “humanista” de Bernardo Santareno – pseudónimo do médico António Martinho do Rosário, que conheceu em 1961, “num desses acasos da vida”.

Fernanda Lapa

Fernanda Lapa era, na altura, uma jovem estudante do antigo 7.º ano com vontade de ser actriz, e colocada, entre dúvidas sobre o seu futuro académico e profissional, perante um psiquiatra no Instituto de Orientação Profissional.

“Fui ao instituto porque não sabia o que queria fazer da vida. Fiz os testes todos e no final apareceu-me um homem alto, quarentão, muito feio, com muitos dentes, muito charmoso, que eu reconheci imediatamente. É claro que ele me disse logo que o teatro é que era. Até à morte dele, nunca mais nos separámos”, contou a actriz e encenadora nesta conferência, numa viagem por esses anos em que, com a ajuda dele, se meteu mesmo pelos palcos adentro, num país a começar um conflito militar, e a lidar mal com as greves estudantis de 62.

“Bernardo Santareno era um homem extraordinário, de uma profunda humanidade e com contradições profundas”, contou a directora artística da Escola de Mulheres, recordando a passagem de Bernardo Santareno pela Fundação Chaine, no apoio a estropiados da Guerra Colonial, e aos cegos – esses “a quem Santareno ensinou a ver teatro”.

Para Fernanda Lapa, que coordena as Comemorações do Centenário de Santareno, o dramaturgo é um dos injustiçados do teatro em Portugal.
“Santareno é um dos mais originais dramaturgos portugueses, mas continua insuficientemente representado”, assumiu Fernanda Lapa. Opinião partilhada também pelo encenador Carlos Avilez para quem Bernardo Santareno revelou “uma ousadia brutal”.

Carlos Avilez conheceu Bernardo Santareno nos anos 50/60 e, além de o considerar “um grande dramaturgo”, apontou a sua vertente de apoio aos mais jovens no teatro.

“O país todo devia homenageá-lo pela sua coerência e sensibilidade”, afirmou Avilez que, em 2008 viu peça a “O Inferno”, de Bernardo Santareno, que dirigiu no Teatro Experimental de Cascais, ser distinguida como “Melhor Espectáculo do Ano”.

Fernando Dacosta, outro dos participantes neste encontro, não tem dúvidas que Santareno “é o mais importante dramaturgo português da segunda metade do Século XX”.

“Ele era um génio, um homem desconcertante”, afirmou o escritor, referindo: “Homem generoso, vertical, transparente e secreto, Santareno manteve ao longo da vigência do Estado Novo uma postura de luta que tinha por base uma certa ideia de Cristo e uma aproximação à teoria marxista”.

Dacosta lamentou, nesta conferência, o “preconceito que existe em relação à dramaturgia” portuguesa e o “desprezo sistemático” na representação de autores nacionais nos teatros, com as companhias a preferirem representar autores estrangeiros, mesmo quando vão representar fora do país.

No seu entender já foi este clima de “desprezo” que levou à morte de Bernardo Santareno, lamentando que “O Judeu” só tenha sido levado à cena no Teatro Nacional D. Maria II depois da morte do dramaturgo.

“Foi muito maltratado e incompreendido”, afirmou Dacosta, para quem Santareno foi vítima de múltiplas censuras: “antes do 25 de Abril, proibiram-lhe as peças. Depois do 25 de Abri, ignoraram-no”, disse.

Rui Mendes, o actor que em 1981 interpretou o personagem principal da peça “O Judeu”, logo após a morte de Bernardo Santareno, também recordou o carácter “único” do dramaturgo.

Na sua óptica, Santareno “é o grande talento do Teatro Português do século XX, um ser fascinante de uma inteligência, cultura e fraternidade inigualável”.

A sua obra é “uma das grandes obras de todo o nosso teatro. Quem quiser reduzir a história do teatro português a quatro ou cinco nomes, necessariamente terá de incluir o nome do Bernardo”, disse o actor.

Apesar da infância atribulada pelas convicções políticas de seu pai — Joaquim Martinho do Rosário, um republicano, grande oposicionista do regime e visceralmente anticlerical –, desde muito cedo, manifestou uma grande inclinação para o teatro — por volta dos doze anos escrevia embriões de peças que representava junto com seus primos. Por toda a vida, Santareno viu-se dividido entre a revolucionária figura paterna e a doce figura materna — uma mulher simples e de formação católica –, num conflito permanente entre o masculino e o feminino, entre o anticlerical e a religião.

Bernardo Santareno é, indiscutivelmente, o autor que de forma mais profunda marcou o teatro português da segunda metade do século XX. Nas suas peças, o dramaturgo articula a voz trágica de forma veemente e sofrida ao mesmo tempo que revela uma compaixão pelos excluídos, vítimas de arreigados preconceitos sociais e de fanatismos vários.
A forte componente psicológica no desenho das personagens e a localização da acção em pequenas comunidades fechadas (rurais, piscatórias ou citadinas) são elementos usados no que parece ser a sua procura sistemática de psicanalisar a alma lusa.

Bernardo Santareno nasceu em Santarém a 19 de Novembro de 1920, onde concluiu a instrução primária. Partiu para Coimbra de onde saiu licenciado em medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1950, onde fez também a especialização em psiquiatria, mas foi a escrita que lhe deu maior relevo, tendo iniciado o seu percurso literário associado ao teatro com a publicação de várias peças nas décadas de 50, 60 e 70, como são os casos do “Bailarino”, “A Promessa”, “O Crime da Aldeia Velha”, “António Marinheiro”, “O Judeu” ou “A Traição do Padre Martinho”.

Como médico embarcou nos navios pesqueiros para a pesca do bacalhau nos mares da Groenlândia. Embarcou também no navio-médico “Gil Eanes”. Esta passagem pelas embarcações marcou a sua escrita e a sua produção literária visto ter sido a bordo de algumas embarcações que escreveu parte de muitas das suas obras. O mar, a pesca e os pescadores são referências na sua obra: Bernardo Santareno é ainda hoje reconhecido como um dos maiores dramaturgos portugueses de todos os tempos, morreu e 1980 em Lisboa depois de lutar contra o regime salazarista e depois de deixar um legado cultural ímpar.

Facetas que ficaram bem expressas nesta conferência, organizada pela associação FITIJ – Festival Internacional de Teatro e Artes para a Infância e Juventude, em parceria com a associação Mais Santarém Intervenção Cívica (AMSIC), e que decorreu numa “sala virtual”, devido à pandemia da covid-19, com acesso pela plataforma digital Zoom, contando com os apoios da Fundação Inatel, Câmara Municipal de Santarém, Comemorações Nacionais do Centenário de Bernardo Santareno e Grupo Coordenador de Santarém das Comemorações Nacionais do Centenário de Bernardo Santareno.
Filipe Mendes

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