Com o conjunto de crónicas que aqui quinzenalmente coloco e que chamei de “memórias não notórias”, procuro abordar pequenos factos, memórias ou curiosidades, algo insólitos, que se sucediam no nosso antigo e largo Império.

Na crónica de hoje e nas duas próximas que trarei para estas páginas, respectivamente da então Índia Portuguesa, Timor e Macau, os temas serão os diferentes mitos e seus rituais que os portugueses observaram na sua chegada ao Oriente e que despertaram curiosidade e sentimentos. Fernando Pessoa referir-se-á ao mito como “o nada que é tudo”, dando assim a ideia da sua complexidade, dificuldade e até obscuridade, admitindo-o como a primeira fonte de ensinamento sobre o porquê do mundo e da história humana. Bronislaw Malinowski, referirá que “tais rituais, nada mais são que os mitos em acção” (1). Abordemos hoje alguns destes rituais, nomeadamente os de sofrimento, encontrados na antiga Índia Portuguesa, onde os nativos martirizavam os seus corpos em honra dos deuses e onde a exuberância, o êxtase e a exaltação suscitavam um estado de efervescência, mesmo de delírio, próprias de um estado religioso que incita as pessoas a abandonarem-se aos mais diferentes sacrifícios corporais, conforme apelam os 1.028 hinos do “Rigveda”, tido como a obra mais antiga da literatura hindu e de toda a humanidade, composto entre o século XII e o século VIII a.C.. Destes rituais, os que causavam a morte foram paulatinamente proibidos pela administração colonial portuguesa.

1. Goa, era um porto que vivia o apogeu da sua imponência e riqueza. Afonso de Albuquerque conquista-a em Maio de 1510, a Ismail Adil Shah, o sultão muçulmano de Bijapur, anterior conquistador de Goa. Dotou-a de arsenais, estaleiros, hospital, escolas e igrejas.

Manteve os usos e costumes do povo local, os hindus, banindo, contudo, o ritual do “sati”. Este era o ritual funerário da cremação, onde entre cantos, danças e flores, esposas e concubinas se imolavam inocentemente na pira em chamas, do defunto esposo ou amante. Consideravam- no uma festa, pois os mortos continuariam a viver com a comunidade, apesar de instalados no paraíso de Indra (2).

2. Foram vários os territórios recebidos dos maratas pelo Tratado de Baçaim de 1534, e que integraram o Império Português sendo designados de Província do Norte, e que teve uma presença portuguesa significativa entre 1534 e 1739.

Num deles, Salcete, extensa ilha, existia a Noroeste a povoação de Maem, onde, sobre uma gruta, foi construída a igreja da Nossa Senhora da Piedade. Esta gruta era um abrigo de várias comunidades de ascetas, nomeadamente dos “sadhus”, monges andarilhos praticantes de ioga e dos “faquires” homens que compreendem as leis da natureza e o funcionamento do seu corpo. Todos eles viviam

da caridade, renunciando ao mundo para obterem a perfeição da alma, levando uma vida de oração e sacrifícios. Os primeiros, amarrando as mãos fechadas para que as unhas cresçam, enterrando-se nas palmas das mãos, ou, olhando fixamente o Sol por longos períodos até ficarem cegos. Os faquires sujeitando os seus corpos ao limite, o que os levava a que, conscientemente, se deitassem em camas de pregos, atravessassem o corpo com longas agulhas, ou se encerrassem durante anos e anos em pequenas gaiolas.

Outros como os “mahars”, em êxtase e imaginando terem o deus no corpo, e como tal insensíveis à dor, na Festa da Adoração (“Xima Ulanghan”), que se realizava no segundo dia do quarto crescente do mês de Arvina (Setembro/Outubro). feriam-se na testa com a espada.

3. Em Pondá, nas Velhas Conquistas de Goa, a festa de Holli, que visava esconjurar o espírito maligno que causa males às crianças, entre as diversas actividades a que povo se dedicava, realizava- se a “procissão dos enganchados”.

Nesta representação, participantes havia que, em histeria colectiva, deixavam-se suspender por cordas em altas traves, por meios de ganchos que lhes perfuravam a pele ou o corpo, qual exorcização de um maligno espírito. Tal histeria, como em outros rituais, era fruto de uma concepção do mundo onde se valorizavam determinados acontecimentos em função de uma crença pessoal, sem interesse pela realidade do “mundo normal” que os circunda. É que o funcionamento histérico cria acontecimentos cuja realidade só existe na imaginação e que só em última análise têm alguma relação com o real. Esta representação foi proibida pela Portaria Provincial, de 6 de Dezembro de 1841 (4).

4. Em várias localidades de Goa, como Sirigão, Chandor ou Betulem, a “zatra”, a festa da purificação pelo fogo, é um ritual levado a efeito pelos “dondos” (penitentes).

Segundo o Jornal O Heraldo, nos finais do século XIX eram já centenas os participantes que, envolvidos numa forte algazarra musical de “chanca”, “xinga”, “cornom”, “xemela” e “pipri” (respectivamente búzio, trompete, pífaro, tamborim e clarinete), qual encorajamento necessário aos penitentes para o sofrimento a que se vão sujeitar, corriam descalços por cima de um longo tapete de brasas vivas. Dado não haver grande perigo de morte, senão um forte odor a carne queimada, as autoridades fechavam os olhos às consequências do ritual (5).

[Conf. J. Ferreira, J. Leite (1), G. Bouchon (2), A. B. Pereira (3, 4), Conf. O Heraldo, 1900 (5). Por decisão pessoal, o autor não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico].

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