Durante três dias, de 8 a 10 de Agosto, as ruas do centro histórico de Santarém transformaram-se num palco silencioso, onde vinte figuras imóveis contaram histórias sem pronunciar uma palavra. A sexta edição do in.Estátuas – Festival de Estátuas Humanas voltou este ano a integrar a programação do Verão in.Santarém, reunindo artistas profissionais, amadores e semi-profissionais, vindos de várias regiões do país — e, este ano, também da Madeira. Entre poses estudadas e gestos minuciosos, o público foi convidado a percorrer um roteiro vivo de imaginação.

O Correio do Ribatejo fez uma viagem aos bastidores do festival, onde se desenrola uma coreografia invisível de logística, preparação e criação artística. Entre camarins improvisados, na Incubadora D´artes de Santarém, pincéis de maquilhagem, figurinos meticulosamente trabalhados e conversas rápidas antes da entrada em cena, encontramos as histórias e os percursos de quem dá vida a esta arte: artistas e técnicos que, longe do pedestal, revelam a disciplina física e mental exigida, as motivações pessoais, a relação com o público e os segredos que permitem, noite após noite,  transformar o centro histórico num espaço de encanto e imobilidade viva.

Ao longo de seis edições, o in.Estátuas consolidou-se como um dos momentos mais marcantes do Verão in.Santarém, distinguindo-se pela forte ligação à comunidade local e pela capacidade de atrair visitantes de várias partes do país. A responsável pela produção, Katarina Ferreira, da Quideia Produções, sublinha que a proximidade ao território é um elemento central desde o início: “Trabalhamos sempre com o pessoal local. Este ano vêm convidados da Madeira, estamos a alargar horizontes, mas continuamos a ter artistas locais que vêm como amadores e representam a nossa zona”.

A cada nova edição, o festival introduz novidades sem perder a essência. Um sinal dessa evolução é o aparecimento de criadores independentes da própria cidade. “Já temos pessoal local com os seus próprios projectos. Este ano é a estreia de um artista da terra com fato e projecto próprios”, destaca Katarina, num tom descontraído, apontando o caminho para uma maior profissionalização do evento.

Para Gabriel Palhais, que participou como estátua viva nos dois primeiros anos e hoje integra a equipa de organização, a identidade do in.Estátuas assenta numa característica rara: “Este evento é muito especial por acontecer na minha terra. Tem características que só existem aqui, como a maioria dos artistas serem da região”. Essa proximidade, defende, contribui para criar um público fiel que regressa anualmente: “Hoje em dia as pessoas já sabem que isto vai acontecer, organizam-se para vir. Diria que 70% a 80% são repetentes e todos os anos ganhamos público novo”, refere.

A combinação de talento local com artistas convidados de outras regiões tem resultado num equilíbrio que confere ao festival um carácter único. As ruas do centro histórico tornam-se palco de um encontro entre diferentes linguagens artísticas, preservando a ligação às raízes ribatejanas e, simultaneamente, abrindo espaço à diversidade de estilos e influências que chegam de fora.

Bastidores e logística

Por detrás das duas horas de actuação diária que o público vê, existe uma engrenagem complexa que mantém o in.Estátuas a funcionar. A preparação começa muito antes da primeira pose e envolve dezenas de pessoas em funções distintas. “Temos equipa para tudo: catering, logística, comunicações, relações públicas, oficina, maquilhagens… O maior desafio é juntar todos os componentes e fazê-los funcionar”, resume Katarina, sublinhando que o sucesso do evento depende de uma coordenação afinada ao minuto.

Entre os responsáveis por essa articulação está Gabriel Palhais, que garante a ponte entre artistas, organização e público. “Organizo a logística para que todos tenham o que precisam e trato da comunicação nas redes sociais”, explica, lembrando que cada detalhe conta — desde o transporte dos figurinos até à montagem dos pedestais.

A azáfama dos bastidores começa cedo. Enquanto a cidade se prepara para receber milhares de visitantes, os artistas vão ocupando o camarim improvisado na Incubadora D´artes de Santarém. Luís Palhais, participante desde a adolescência, descreve o seu próprio ritual: “Cheguei mais cedo para ajudar e já aproveitei para começar a maquilhagem base do personagem”. Cada caracterização é única e exige tempo, precisão e paciência, numa sucessão de pinceladas e ajustes que transformam rostos e corpos em figuras imponentes e imortais.

Nos bastidores, há toda a preparação de adereços, coordenação de entradas e saídas. Tudo é pensado para que, quando o relógio marcar a hora, as ruas do centro histórico se transformem num palco vivo, onde a imobilidade é, paradoxalmente, o motor de um dos espectáculos mais dinâmicos do Verão.

Processos criativos

No in.Estátuas, cada personagem que ocupa o seu pedestal é o resultado de um processo que mistura imaginação, técnica e capacidade de adaptação. Para alguns artistas, a criação começa com uma ideia clara; para outros, é a própria experiência de vestir o figurino que dá forma à personagem.

Cristiana Nunes e Xavier Miguel, do Teatro Bolo do Caco, explicam que a génese do casal madeirense “Gordofredo” e “Maria Sopa” nasceu de um conceito simples — a partilha à mesa —, transformado depois em performance. “As personagens nascem do conceito e da construção do personagem. Muitas vezes só quando vestimos o figurino é que descobrimos a sua essência”, descreve Cristiana. A recriação artística dos trajes tradicionais madeirenses foi adaptada para um formato mais expressivo e teatral: “É uma sopa mágica, infinita, que nunca acaba”, acrescenta Xavier, explicando que a narrativa cresce com cada local visitado e com as histórias que o público acrescenta.

Para João Vasco Peixinho, artista profissional de Santarém, a origem do seu personagem de cowboy remonta a uma encomenda para um bar temático no Algarve. “O Cowboy surgiu por encomenda e foi evoluindo com novas interacções e adereços, consoante a reacção do público”, conta. O processo é contínuo: a cada actuação, surgem ideias para melhorar o figurino ou criar novas “brincadeiras” que aumentem a ligação com quem assiste.

A própria organização também é exemplo de criação artística. Katarina recorda que a sua primeira estátua viva nasceu quase por acaso: “A primeira estátua viva foi criada para uma animação sobre chocolate. O sucesso levou-nos a criar mais personagens”. Desde então, a experimentação tornou-se uma marca da sua abordagem, com figurinos que exploram materiais, ilusão e até efeitos de levitação.

Entre esboços mentais, construção de adereços e longas horas de ensaio, os processos criativos revelam-se tão diversos quanto as figuras que preenchem o festival. É nessa multiplicidade de métodos que reside parte da riqueza do in.Estátuas, onde a imobilidade é apenas o ponto de partida para uma arte em constante reinvenção.

Cristiana Nunes e Xavier Miguel, a dupla madeirense que leva a sua “sopa mágica” a vários pontos do país.

Histórias de vida e percursos pessoais

Por detrás de cada estátua viva há um percurso feito de encontros, escolhas e paixões. No caso de Luís Palhais, tudo começou aos 14 anos, quando o irmão Gabriel — já ligado ao mundo das artes — o convidou a experimentar a performance. “Comecei no in.Estátuas aos 14 anos, influenciado pelo meu irmão Gabriel, que sempre esteve ligado às artes”, recorda. A experiência inicial abriu portas para outros convites, desde a Chamusca a eventos de Natal, tornando-se uma presença regular no festival. Hoje, com 18 anos, divide o tempo entre os estudos em audiovisuais e a paixão por criar personagens.

Gabriel Palhais partilha uma relação dupla com o evento. Nos dois primeiros anos esteve no pedestal, mas cedo passou para a retaguarda, assumindo responsabilidades de produção e comunicação. “Participei nas duas primeiras edições como estátua viva, agora estou na organização”, explica, sublinhando a satisfação de ver o festival crescer na sua própria cidade.

Já João Vasco Peixinho é presença constante desde a primeira edição. “Já participei em todas as edições e até a minha filha já faz parte”, afirma com orgulho. Entre os vários personagens que criou, cada um nasce de um contexto diferente, mas todos carregam algo de pessoal, construído ao longo de anos de experiência em arte urbana e animação.

A história da própria organização também é marcada por longevidade. “Nós, Quideia, fazemos estátuas vivas há 16 anos, em Portugal e no estrangeiro”, assinala Katarina, que juntamente com o parceiro Luigi criou dezenas de personagens e projectos que cruzam teatro de rua, animação e performance.

Estas trajectórias pessoais dão corpo ao espírito do in.Estátuas: um espaço onde talentos emergentes, veteranos e criadores consagrados se cruzam, partilhando não apenas a rua e o público, mas também uma história comum que se renova a cada edição.

Interacção e reacção do público

No in.Estátuas, a presença do público não é apenas expectadora — é parte integrante da performance. A simples passagem pelas ruas transforma-se num jogo de olhares, gestos subtis e interacções inesperadas. Katarina, responsável pela produção, realça o magnetismo do evento: “Não há nenhum evento como este no centro histórico. As pessoas vêm para passear e ficam facilmente duas horas a ver todas as estátuas”.

Para Luís Palhais, essa proximidade é a maior recompensa: “O que me dá mais gozo é a interação social e ver a reacção das crianças”. Entre a curiosidade e o espanto, há quem observe em silêncio e quem se atreva a provocar a estátua para testar-lhe a imobilidade. Com os mais novos, o encanto é imediato, muitas vezes traduzido em sorrisos largos ou em pequenos sustos que rapidamente se desfazem em gargalhadas.

Algumas performances rompem a barreira do imobilismo para envolver activamente o público. É o caso do casal madeirense “Gordofredo” e “Maria Sopa”, que convida os transeuntes a provar uma sopa imaginária. “Primeiro há estranheza, depois entram no jogo”, explica Xavier Miguel. A encenação transforma a rua num cenário vivo, onde a partilha de um gesto simbólico desencadeia cumplicidade entre artista e espectador.

João Vasco Peixinho, com a sua personagem de cowboy, também aposta nessa ligação directa: “O Cowboy provoca no público vontade de participar, interagir e até fingir duelos”. Cada gesto ou brincadeira é adaptado à personalidade de quem passa, criando momentos únicos e irrepetíveis, deixando marcas na memória de quem participa — em cima ou fora do pedestal.

João Vasco Peixinho interpreta a personagem ‘Cowboy’, alvo de muitas brincadeiras e interações, por parte do público mais novo.

Novidades e aposta na infância

A sexta edição do in.Estátuas trouxe consigo um investimento especial no público mais jovem. Pela primeira vez, as ruas do centro histórico acolheram o “Mini Estátuas” — um espaço onde as crianças puderm experimentar a arte de se tornarem estátuas vivas — e um peddy paper infantil que conduziu as famílias por enigmas e desafios ao longo do percurso do festival.

Para Katarina, estas actividades representam um desejo antigo: “O Mini Estátuas e o peddy paper infantil eram ideias que queríamos desde o primeiro ano, mas só agora conseguimos concretizar”. O objectivo foi claro: tornar o evento mais inclusivo e despertar nas novas gerações a curiosidade pela arte performativa.

A aposta, no entanto, não se limitou aos mais pequenos. Gabriel Palhais sublinha que a experiência foi pensada para todos: “Além das crianças, os adultos também podem fazer de estátua na rua, experimentando o pedestal”. A interacção directa com a performance, explica, cria uma ligação emocional diferente, “permitindo que o público compreenda de forma prática a disciplina e o rigor exigidos a um artista de rua”.

Estas novidades acrescentaram uma nova camada ao in.Estátuas, transformando-o num festival que não se limitou a mostrar arte, mas que também a ensinou, partilhou e multiplicou. Ao abrir espaço para a experimentação, a organização garante que o espírito do evento se renova e que, no futuro, talvez algumas destas “mini estátuas” regressem como artistas a tempo inteiro.

Desafios e conselhos para quem começa

Ser estátua viva exige muito mais do que a aparência imutável possa sugerir. Para Katarina, o segredo está na resistência psicológica: “É mais força mental do que física: a mente controla o corpo”. O desafio, acrescenta Luís Palhais, é conseguir manter a concentração durante longos períodos: “O maior desafio é a inquietação mental durante horas de imobilidade”.

A preparação inclui cuidados práticos — desde a alimentação e hidratação adequadas até ao descanso nos dias que antecedem a actuação. João Vasco Peixinho lembra que a confiança é tão importante quanto a forma física. O seu conselho é claro: “Criar algo novo e original. A melhor parte é provocar emoções sem usar palavras”.

Para o casal madeirense do Teatro Bolo do Caco, a chave está na curiosidade e na ousadia: “Ver muito, estudar, experimentar e não ter medo de tentar coisas novas”, defende Cristiana Nunes. A experiência, explicam, é construída pelo contacto directo com diferentes públicos, horários e locais. A experimentação permite descobrir a linguagem própria de cada artista e de cada personagem.

Em comum, todos sublinham que a arte da estátua viva é um diálogo silencioso com o espectador — um diálogo que, apesar da ausência de palavras, pode provocar sorrisos, memórias e até lágrimas. É essa capacidade de tocar o outro que, para os protagonistas do in.Estátuas, justifica cada hora de treino e cada segundo de imobilidade.

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