Uma das questões interessantes na área do folclore e da etnografia em Portugal prende-se com os instrumentos musicais que os grupos folclóricos utilizam nas suas representações.

Num princípio de coerência temporal os ranchos folclóricos deveriam utilizar apenas os instrumentos musicais contemporâneos da época representada – finais de século XIX e primeiro quartel do século passado – emprestando, assim, maior fidedignidade à sua representação cultural, posto que o recurso a este tipo de instrumentos não é algo tão irrelevante quanto possa parecer aos mais desatentos.

A maioria dos ranchos folclóricos portugueses integra nos seus conjuntos de tocadores o acordeão, violas ou violões, cavaquinhos e diversos instrumentos rítmicos, muitas vezes de características locais ou regionais, como são os casos das canas rachadas, das bilhas ou cântaros, dos reco-recos, dos sapos e das pinhas, entre outros. Como é natural, e fácil de compreender, o recurso a instrumentos com uma morfologia mais evoluída proporciona uma execução mais fácil e, sobretudo, mais ágil.

Tomemos por exemplo o acordeão, que é um sucedâneo do harmónio e da concertina: o acordeão é um instrumento da família dos aerofones, cujo elemento vibratório é o ar impulsionado pela abertura ou pelo fecho de um fole, o qual agita umas palhetas, que, assim, provocam o som das diferentes notas musicais. O acordeão é um instrumento cromático, em que a cada botão ou tecla corresponde uma mesma nota, independentemente do movimento de abertura ou de fecho do fole, permitindo todas as tonalidades e todos os modos, pelo que a sua execução é mais fácil e rápida, e, sobretudo, mais completa.

Pelo contrário, os harmónios ou as concertinas, na linha dos realejos que os precederam, são instrumentos diatónicos, o que quer dizer que um mesmo botão toca uma nota quando se abre o fole e outra nota quando se fecha, para além de ter a limitação, no máximo, a três tonalidades e de não ter recursos morfológicos senão para o modo maior.

Como se pode depreender, a utilização destes instrumentos menos evoluídos acarreta alguns constrangimentos de ordem técnica para os seus tocadores, e especialmente para os cantadores que sejam acompanhados por eles, no entanto, permite uma sonoridade única, muito harmoniosa e doce, e impõe um maior repouso na interpretação das danças e das cantigas, o que, indirectamente, corrige o abuso do andamento que se constata em muitos ranchos folclóricos na interpretação do seu reportório.

Assim, o recurso a estes instrumentos – para além de valorizar culturalmente a representação – tem o efeito directo de contribuir para a moderação do ritmo, o que é um factor muito importante para repor a fidedignidade que se impõe numa manifestação sócio-cultural desta natureza.

A par dos harmónios e das concertinas, já muito frequentes no norte e centro do país, que bom seria que os ranchos folclóricos, de acordo com as tradições musicais da sua região, pudessem integrar nos seus conjuntos de tocadores, instrumentos de corda, como as rabecas, as violas toeiras, amarantinas, braguesas e campaniças, as guitarras, os bandolins e outros instrumentos que proporcionam uma melodia tão harmoniosa e tão bela.

O bandolim é um instrumento sucedâneo dos alaúdes, da família dos cordofones, posto que o seu som resulta da fricção de cordas duplas – de arame, de aço ou de nylon – e em regra é muito utilizado para acompanhamento, quer de outros instrumentos, quer igualmente da voz de algum cantador, pois, ainda que mal pareça, a voz é também um instrumento musical, como o é o assobio, o estalar dos dedos ou o bater dos pés. A estes instrumentos é corrente chamar-se-lhes anatómicos.

Mas, voltemos ao bandolim que é um instrumento com uma sonoridade muito doce e harmoniosa, o qual foi ofuscado pelo banjo, igualmente sucedâneo dos alaúdes, e de origem americana – pelo menos os que mais penetraram na nossa música popular – mas que têm uma grande diferença entre si, quer pela natureza dos materiais usados na caixa de ressonância, madeira no bandolim enquanto os banjos primitivos usavam uma pele esticada sobre um aro metálico, à imagem de um tambor, e com encordoamento simples, embora ambos tenham uma estrutura musical semelhante.

Nos antigos bailaricos, animados apenas por instrumentos de cordas, nomeadamente o bandolim, o violão ou a guitarra, era difícil ouvir a música que se tocava, pois, os bailadores, animados pela alegria de um tempo de lazer, coisa tão pouco habitual nas suas difíceis vivências, e às vezes com algum copito a mais, sempre faziam uma certa algazarra, o que dificultava a vida ao pobre do tocador.

Quando surgiu o banjo, instrumento com maior volume de som, ainda que a sua sonoridade não fosse tão maviosa, o bandolim entrou em declínio, bem assim como a maioria dos instrumentos de corda. Veja-se o esforço de alguns músicos para recuperar alguns desses instrumentos, como foi o caso de Júlio Pereira em relação ao cavaquinho.

Outro tanto se poderá dizer ainda em relação aos rústicos instrumentos de sopro, membros da família dos aerofones, mas cujo som não resulta da fricção de nenhuma palheta, mas apenas da abertura dos furos feitos numa cana, matéria-prima geralmente usada para fazer os pífaros ou as flautas “travessas” (transversas) a uma certa distância para permitir afinar por uma escala.

Soprava-se para um furo maior numa das extremidades e tapavam-se ou destapavam-se os restantes furos que se encontravam ao longo da cana, conforme a melodia o exigisse.

As dificuldades de execução deste tipo de instrumentos decorrem da natureza heterogénea dos registos, tanto em timbre, quanto em volume de som. O agudo é potente e brilhante, e o grave, aveludado e de difícil emissão. O controle da embocadura, por se tratar de um instrumento de embocadura livre, deve ser minucioso, já que pequenas alterações no ângulo do sopro interferem bastante no equilíbrio da afinação. Eis como um instrumento que parece tão rudimentar tem as suas complexidades.

Na actualidade a sonorização dos espectáculos onde são apresentados estes diversos tipos de instrumentos antigos e rudimentares anula por completo a razão por que a sua grande maioria caiu em desuso – não se ouviam em salas maiores – algo que hoje é facilmente resolvido com o recurso à amplificação sonora, pelo que seria muito bom que os responsáveis técnicos dos ranchos folclóricos olhassem para estes instrumentos com outro interesse.

De modo a estimular o uso destes instrumentos nos conjuntos de tocadores dos grupos e ranchos de folclore, o Festival Celestino Graça – A Festa das Artes e das Tradições Populares do Mundo promove na próxima sexta-feira, dia 7 de Setembro, na Casa do Campino, os “Sons da Memória”, tempo e espaço dedicados à divulgação de alguns destes instrumentos musicais populares.

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