Nas ruas de Santarém, entre os ecos da história e as vozes do presente, caminha um homem cuja vida se confunde com a própria narrativa da liberdade em Portugal. João Luiz Madeira Lopes carrega nas mãos a guitarra de Coimbra e, no coração, os ideais que ajudaram a construir a democracia portuguesa. Advogado de profissão, músico por paixão e defensor incansável dos valores de Abril por convicção, este scalabitano representa uma das mais autênticas vozes da resistência antifascista e da construção democrática em Portugal.

A sua figura, simultaneamente serena e combativa, evoca a imagem do intelectual comprometido que nunca se deixou intimidar pelas adversidades. Nas suas palavras transparece a lucidez de quem viveu intensamente os momentos mais conturbados da história recente portuguesa e, ainda assim, mantém intacta a capacidade de sonhar com um futuro melhor. “Tenho esperança de que os valores da democracia e da liberdade vão continuar a sobressair”, afirma com a convicção de quem dedicou a vida a defender estes princípios.

Das Origens à Formação de um Espírito Livre

João Luiz Madeira Lopes nasceu em Santarém, na então freguesia de S. Nicolau, a 17 de Novembro de 1943, num Portugal ainda mergulhado nas trevas da ditadura salazarista. A cidade que o viu nascer seria também o palco de grande parte da sua vida e intervenção cívica, estabelecendo uma ligação umbilical entre o homem e a terra que nunca se quebraria.

Os seus estudos secundários foram realizados em Santarém, seguindo depois para Coimbra, onde se licenciou em Direito. A passagem pela cidade do Mondego revelou-se determinante na formação do seu carácter e na definição do seu percurso cívico e político. Foi em Coimbra que Madeira Lopes viveu intensamente a vida académica, tornando-se residente da emblemática Real República Prá-Kis-tão, colectividade estudantil conhecida pelo seu espírito crítico e intervenção política, da qual ainda hoje faz parte.

O período universitário coincidiu com momentos de grande agitação no meio estudantil. Participou activamente na crise estudantil de 1961-1962, um dos primeiros grandes momentos de contestação ao regime ditatorial no meio académico. Este episódio marcou profundamente a sua formação política, como o próprio recorda: “É claro que eu já tinha um percurso de Coimbra…era Marcelo Caetano o reitor e ele nessa altura resolveu assumir a sua independência e o embate contra o Salazar, digamos assim, porque opôs-se a que aquele espaço universitário fosse invadido pela Polícia.”

Este momento revelou-se particularmente significativo na sua memória: “E ele pôs-se ao lado dos estudantes e até os convidou para um almoço e foi, depois, aclamado no dia seguinte na reitoria. Eu era aluno dele e é engraçado que eu estava na primeira fila e ele ao passar por mim deu-me um abraço, porque reconheceu-me como aluno.”

Permaneceu em Coimbra até 1968, acompanhando o desenvolvimento da contestação estudantil que viria a culminar na crise académica de 1969, um dos momentos mais emblemáticos da resistência estudantil ao Estado Novo.

A Resistência Antifascista: Dar a Cara pela Liberdade

Regressado a Santarém, João Luiz Madeira Lopes iniciou o exercício da advocacia em 1970, profissão que conciliou com a docência, leccionando Português e História na Escola de Regentes Agrícolas e num externato da cidade. Contudo, a sua intervenção cívica e política rapidamente se sobrepôs à actividade profissional.

Em 1969, assumiu a presidência da Direcção do Cineclube de Santarém, transformando esta associação cultural num espaço de resistência e contestação ao regime. Como recorda, “quando estava na direcção do Cineclube, eu organizava sessões, não só de cinema, mas também debates políticos”. 

A sua participação no II Congresso Republicano de Aveiro, em 1969, e no III Congresso da Oposição Democrática, também realizado em Aveiro, em 1973, consolidou o seu papel como uma das figuras de proa da oposição democrática no Ribatejo. Destacou-se na oposição ao fascismo como dirigente da CDE (Comissão Democrática Eleitoral), uma das principais organizações da oposição ao regime.

O momento mais desafiante da sua luta contra a ditadura ocorreu durante a campanha eleitoral de 1973, como o próprio recorda: “O mais desafiante eu penso que foi a campanha eleitoral de 1973, que acabou por ser uns meses antes, cerca de seis meses antes do 25 de Abril. Ninguém calculava… Ninguém quer dizer, havia pessoas que estavam já a preparar, mas não sabiam a data em que eclodia o 25 de Abril. Mas, portanto, aí foi o momento em que eu dei a cara a sério.”

As sessões de campanha decorriam sob vigilância apertada das autoridades: “Não podíamos falar em PIDE, em guerra colonial, no regime fascista. Havia palavras que estavam vedadas.” Perante estas restrições, Madeira Lopes desenvolveu estratégias criativas de comunicação: “Eu, depois, por brincadeira, tinha o discurso feito, mas essas palavras eu não as dizia, mas as pessoas percebiam pelo contexto que eram aquelas palavras e as pessoas riam-se”, recorda.

Esta capacidade de contornar a censura e de comunicar com as pessoas, mesmo sob vigilância, revelava já o seu talento para a intervenção pública e para a mobilização cívica, características que se revelariam fundamentais após o 25 de Abril.

O 25 de Abril e a Construção da Democracia

A madrugada de 25 de Abril de 1974 encontrou João Luiz Madeira Lopes pronto para a acção. Como ele próprio relata: “Quando eu, na manhã de 25 de Abril, fui bater à porta da Escola Prática, aparece-me o Coronel Correia Bernardo que me disse que lá em Lisboa está a correr bem e pediu-me que eu e o Manuel Castela dessemos uma ajuda a organizar a parte civil. Eu achei que era uma boa incumbência e assumi isso.”

Imediatamente após a revolução, Madeira Lopes assumiu um papel fundamental na organização das estruturas civis que dariam suporte ao processo revolucionário em Santarém e na região: “Portanto, criámos logo a estrutura da CDE oficialmente, ao lado do escritório onde eu estava com o Dr. Humberto Lopes e a partir dali começámos a organizar as comissões administrativas.”

Este trabalho de organização das estruturas democráticas locais absorveu-o completamente nos primeiros meses após a revolução. Nas primeiras eleições autárquicas democráticas, realizadas em 1976, foi eleito vereador da Câmara Municipal de Santarém, cargo que viria a ocupar em vários mandatos, embora nunca os tenha cumprido integralmente. “Eu não estou vocacionado para a política, eu nunca fui político “, confessa Madeira Lopes, explicando: “Para mim, a política é cultura, uma atitude de liberdade”.

Um Homem de Múltiplos Talentos e Paixões

A personalidade multifacetada de João Luiz Madeira Lopes não se esgota na sua intervenção política e cívica. Músico talentoso, é fundador, desde 1985, do Grupo de Guitarra e Canto de Coimbra do Centro Cultural Regional de Santarém (CCRS), um dos grupos mais antigos e empenhados na divulgação da canção de Coimbra, no qual ainda hoje participa como guitarrista.

Além da música, João Luiz Madeira Lopes desenvolveu nos últimos anos uma inesperada paixão pela panificação artesanal. Como relata: “Há muitos anos, há 50 anos ou mais, comecei a praticar, a fazer pão e, depois deixei. Agora, nos últimos 10 anos é que realmente recomecei e comecei a tirar cursos.”

Esta paixão levou-o a uma busca incessante de conhecimento e aperfeiçoamento: “Eu costumo dizer com algum orgulho que devo ser das pessoas em Portugal que tiram mais cursos de padaria. Tirei todos os cursos em Portugal, aqueles que consegui ir, os mais importantes. Fui também a Madrid e Barcelona aprender com os com mestres”.

A Advocacia: Uma Missão de Serviço aos Outros

A advocacia representou para João Luiz Madeira Lopes uma forma de serviço aos outros e de defesa dos mais vulneráveis. Em 2018, foi distinguido pela Ordem.

A sua visão da advocacia transcende a mera prática jurídica, assumindo uma dimensão humana e social: “A advocacia é uma coisa complicada, muito trabalhosa. Eu sentia-me honrado e feliz por ajudar as pessoas, porque estavam preocupadas com o seu problema e às vezes os advogados, eu pelo menos, tinha essa função também de psicólogo e às vezes de ‘psiquiatra’”, diz, com um sorriso.

A Seara Nova: Um Farol de Pensamento Crítico

Um dos projectos culturais mais significativos na vida de João Luiz Madeira Lopes é a sua ligação à revista Seara Nova, da qual é director. Esta publicação centenária, com o lema “acção e pensamento crítico”, representa um importante espaço de reflexão e debate na cultura portuguesa.

Como explica: “Eu tento fazer o espaço da Seara Nova também um espaço muito aberto, democrático, em que a liberdade e a democracia prevalecem. E tento convidar pessoas de todos os partidos, e tenho conseguido isso. As pessoas, quase a 100%, têm o orgulho de colaborar na Seara Nova, porque a ‘nata’ da cultura passou por lá, não há dúvida nenhuma.”

João Luiz Madeira Lopes mantém um olhar lúcido e crítico sobre a realidade contemporânea. Preocupa-o particularmente o avanço de forças políticas que ameaçam os valores democráticos: “Há grande preocupação, não é só em Portugal, mas a nível até internacional, de ver uma subida das forças de direita, digamos assim. E alguns países estão a ter algum predomínio. Isto são fases, são modas, em meu entender.”

Apesar destas preocupações, mantém a esperança no futuro: “Tenho esperança de que os valores da democracia e da liberdade vão continuar a sobressair e, cá em Portugal, nós temos uma das constituições mais avançadas, temos o Serviço Nacional de Saúde Público que convém preservar e valores que não podemos perder. E temos que lutar por os manter e transmitir às gerações mais novas a importância desses mesmos valores.”

O seu conselho às novas gerações é claro e directo: “É seguir o exemplo de quem lutou por Abril e de quem continua a defender os valores de Abril, que é importantíssimo. A coisa pior que nós podemos ter é cortarem-nos a liberdade e a democracia”.

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