Foi uma das referências da minha vida, desde a mais tenra idade, aquela idade em que um gesto de carinho ou uma palavra divertida deixam marcas duradoiras. Amigo de sempre de meu pai, o historiador e professor universitário Joaquim Veríssimo Serrão (1925-2020), era visita assídua da casa do Bairro de São Bento, onde morávamos nesses finais de anos 60, com o Tejo a correr quase a nossos pés. Chamava-se João Gomes Moreira (1922-2017). Desde logo, nesses anos da minha mocidade, o João se revelou um homem que passou a vida inteira a dar afecto aos outros, e assim continuou a ser, quando meu pai se mudou em serviço de causa pública para Lisboa, depois para Paris, e de novo para Lisboa, com o João sempre presente.
Era um grande ribatejano, mas também e sobretudo um fino estudioso da Etnografia, do Folclore e dos Patrimónios culturais, que tornou coisas percebíveis e, como tal, dignas da atenção de todos. Se a erudição e a singeleza souberam dar-se as mãos num só corpo, esse foi o caso de João Moreira: talvez porque a inata simpatia, a sensibilidade a jorros, o talento de fazer amigos em todas as línguas inimagináveis e em todos os círculos sociais, o fizessem o verdadeiro embaixador de Santarém no mundo.
O dia 22 de Agosto de 1922, em que nasceu – o mesmo ano em que, em Tomar e na Azinhaga, respectivamente, nasciam o Prof. José-Augusto França, o maior e o mais internacionalizado dos historiadores e críticos de arte portugueses, e o escritor José Saramago, nosso Prémio Nobel da Literatura, ambos bem conhecidos do João – merece ser recordado, ainda mais que o 7 de Dezembro de 2017, dia tristíssimo, ligado para sempre a um grande sentido de perda, que foi e continua a ser imenso.
Que saudades temos de ti, João, o “mano velho”, o amigo de sempre, o ribatejano de alma e coração, o “homem bom” de Santarém!
Recordo os passeios e a palavra amiga de sempre: por exemplo, a verdadeira aula de etnografia que lhe ouvimos, em 2017, quando abriu o Museu de Escaroupim, ou as viagens nos últimos anos por terras de Manique e Azambuja, sempre cheio de projectos e sonhos, como um menino que quase esquecera a sua condição de nonagenário…
Atenção, amigos e admiradores do João Moreira: era preciso reunir o muito que ele deixou escrito, publicado na imprensa ou ainda inédito. Por exemplo, os textos sobre Vila Nova de S. Pedro (sobre o velho moinho, o castro pré-histórico, a igreja derribada, os soldados idos para a Flandres na I Grande Guerra, ou as práticas de namoro nas festividades aldeãs), a sua aldeia, sempre presente nos seus passos, e cujo nome levou aos quatro cantos do mundo.
Enfim, porque não dar a palavra ao próprio, num momento em que, com tanta saudade, o evocamos? O João, por insistência de vários amigos, escreveu em 2015 um perfil autobiográfico, inédito, destinado a ser lido numa das últimas homenagens que lhe foram feitas. Fui dos que, enlevado, o ouvi na ocasião, com a sua voz tão bonita, com a sua postura tão simpática quanto humilde, que não deixava ninguém indiferente!Ouçamo-lo, pois…
Vítor Serrão