Em tempo de pandemia, cuidar das pessoas em fim de vida e realizar funerais passaram a ter regras especificas. Estas circunstâncias, associadas à dor da perda, tornam o luto particularmente difícil: o abraço e a proximidade física dos outros não podem existir, potenciando maior solidão e vulnerabilidade. O processo de luto pode tornar-se mais penoso, mais prolongado e complicado.
Viver uma crise (perder alguém querido) dentro de outra crise (a pandemia) pode acentuar a ansiedade e o risco de depressão: “parece haver um luto adiado, provocado pela falta da visibilidade daqueles que partem e pela solidão e angústia interior que tudo isso provoca”, refere o padre Joaquim Ganhão, Capelão do Santuário de Fátima nesta entrevista ao Correio do Ribatejo.
Como é que, nestes tempos, se faz o luto? Que consequências futuras terá isso e que sequelas trará a proibição de visitas às campas de entes queridos e de acompanhamento à última morada?
A perda dos que nos são queridos é sempre um momento difícil e doloroso de aceitar e integrar. Há todo um ritual em torno da morte que passa pelo acompanhamento dos que partem e da sua família. A presença de familiares e amigos é, muitas vezes, ocasião de conforto e consolo que ajuda a vencer a dor e a solidão. Passamos agora por tempos em que nem sequer é possível dar um abraço, um aperto de mão e olharmos o rosto sofredor uns dos outros. Compreendemos que esta é a atitude responsável que devemos ter, mas o coração, às vezes, diz-nos coisas diferentes. E se esta é a situação de todos, a mesma agrava-se quando se morre infectado com o Covid 19, muitas vezes depois de muitos dias de internamento hospitalar ou de isolamento nos lares e instituições de acolhimento. Parece haver um luto adiado, provocado pela falta da visibilidade daqueles que partem e pela solidão e angústia interior que tudo isso provoca. Fiz, há dias, a experiência de um funeral de um colega meu, com quem vivi nos últimos dezasseis anos, o padre Fernando Campos. Nem foi possível celebrar a missa de corpo presente, nem fazer o habitual velório. Estávamos à porta do cemitério cerca de 15 pessoas; ali fizemos uma breve celebração, entrámos apenas os cinco padres presentes e alguns familiares, não mais de dez. Não deixámos de rezar e de celebrar a fé naquele momento, mas sentimos todos o peso da hora que vivemos. Para muitos o luto acaba por se prolongar, parece que ficou alguma coisa por fazer. Aqueles que têm a graça da fé, encontrarão aí uma ajuda decisiva para vencerem a dor da separação e a ausência dos ritos que confortam e consolam. Penso que a situação nos leva a estarmos mais presentes uns aos outros das maneiras e modos possíveis.
Sente que o confinamento, com as celebrações religiosas suspensas fisicamente, provoca algum estremecimento nos católicos que viam nas missas e noutras cerimónias religiosas uma certeza ao longo de toda a sua vida?
A atual pandemia trouxe-nos circunstâncias e desafios a que não estávamos habituados e nem sequer poderíamos prever. Talvez pudéssemos usar a palavra estremecimento para o estado geral do mundo. De facto, estremecemos todos diante desta realidade que ainda não conseguimos controlar e que nos toca a todos, direta ou indiretamente. Em tudo isto, as comunidades cristãs estão implicadas, vivem neste mundo e caminham nele, participando das vicissitudes por que todos passam. É, sem dúvida, doloroso para os cristãos não poderem reunir-se para celebrar a Eucaristia, participar nas celebrações comunitárias e nos funerais. Esta situação levou as comunidades a reinventarem-se para que todos se possam sentir incluídos e próximos. Houve um investimento nos meios digitais para que as celebrações possam chegar a casa das pessoas, os diversos grupos possam continuar a reunir-se de modo digital, algumas experiências também com a catequese, etc. Não será a mesma coisa, e não faltaram, num primeiro momento, os que tiveram muita dificuldade em aceitar as medidas apresentadas pelos nossos bispos. Penso que, a gravidade da situação por que estamos a passar, levou a uma compreensão mais responsável e assumida da parte de todos.
A Igreja tem por missão anunciar o Evangelho em todas as circunstâncias, levar a salvação de Cristo a todas as pessoas. E a palavra salvação, na sua raiz, significa saúde – saúde do corpo e do espírito. Na impossibilidade de nos reunirmos nas nossas igrejas, podemos crescer na fé e celebrá-la no aconchego das nossas casas, em família – o Papa S. João Paulo II chamou à família a Igreja doméstica. Muitos cristãos têm descoberto a importância da oração em família, da leitura da Bíblia e do diálogo familiar. Por outro lado, há uma dimensão da vida das nossas comunidades que não pode confinar-se: a assistência aos mais pobres e necessitados. Mesmo em confinamento, continuamos a garantir, através do grupo Mais Coração, algumas refeições quentes e a fazer chegar a casa das famílias mais carenciadas um cabaz de ajuda. Com tudo isto, penso que a certeza a que alude a pergunta que me fez, é uma certeza que continua firme, porque vivemos na esperança de melhores dias e na confiança de que nos voltaremos a reunir em comunidade para celebrar a fé e nos alimentarmos da Eucaristia. Agora é o tempo de contribuirmos, de modo responsável, para pôr termo a este flagelo que nos atinge.
Como é, então, vivida a fé no meio dessa crise?
Os tempos de crise também são momentos em que muitos despertam para questionamentos sadios acerca do sentido da vida e do sentido da fé. A fé não é uma realidade abstrata ou um analgésico para tempos difíceis. É antes uma luz interior que conduz e ilumina todas as dimensões e circunstâncias da vida, abrindo-nos para uma relação nova com Aquele em quem acreditamos e no qual fundamos toda a nossa vida, aprendendo um estilo e um modo novo de ser e viver. No meio desta crise, a fé continua a viver-se de modo responsável e a crescer na confiança de que haveremos de vencer este momento, porque sabemos que não estamos sozinhos.
Tem-me chegado ecos muito interessantes do modo como muitos vivem estes momentos de prova. Há pessoas de mais idade que estão confinadas desde o mês de março do ano passado e vão testemunhando o modo como continuam a viver a sua fé, reinventando formas e ritmos que antes eram preenchidos pela presença na comunidade, ajudando e apoiando as atividades dos netos, tendo um ritmo de oração diário, participando na Eucaristia pela televisão ou pela internet e usando também o telefone para fazerem companhia uns aos outros. Há jovens em muitos dos nossos grupos que se têm organizado em voluntariado, nas mais diversas frentes, iniciativas de resposta a esta crise pandémica feitas com muita criatividade, dedicação e até algum risco. Há famílias a garantir a catequese dos filhos, catequistas que vão mantendo relação com as crianças, jovens e suas famílias. Tudo isto manifesta uma fé responsável e concreta, bem longe do espírito daqueles que pensam numa Igreja encolhida diante da realidade humana e das dificuldades.
A humanidade ficará diferente após esta crise mundial ou retiraremos poucos ensinamentos?
É muito comum ouvirmos, diante das crises por que passamos, que o mundo não será o mesmo depois disto. Tenho dificuldade em responder à pergunta, mas gostaria que muitas coisas ficassem diferentes. Gostaria que as pessoas entendessem, como nos dizia o Papa Francisco, que “estamos todos no mesmo barco”, e que muitas causas imperiosas pelas quais corremos nada são diante do valor da vida humana, da paz entre os povos, da justiça social, do respeito pelo outro (a) que é diferente, da educação, do cuidado dos mais pobres e dos idosos, da defesa da família e tantos outros desafios. Os cristãos deste tempo têm de assumir serem bons navegadores de um barco que tem necessariamente de atracar em todos os portos, para que ninguém fique de fora. A história da humanidade mostra-nos uma tremenda dificuldade em aprendermos com as crises por que passamos. Há, sem dúvida, sinais muito positivos do melhor que há no coração humano, desde logo no esforço comum de combate à pandemia por parte dos médicos, enfermeiros, auxiliares, bombeiros, famílias, voluntários e tantas instituições. A mobilização para que a vacina possa chegar a todos os países, sem distinção, seria um sinal extraordinário de uma primeira lição aprendida. Apesar de tudo, gosto sempre de pensar que a humanidade ficará diferente, se eu ficar diferente.
Que frutos os católicos poderão colher quando tudo isso passar?
Os católicos não são um clã que vive à parte. Neste sentido, os frutos ou serão comuns ou ficaremos todos mais pobres. No entanto, há aspetos importantes da vida das comunidades cristãs que podem sair reforçadas deste tempo que estamos a viver: a importância da dimensão espiritual da vida como relação com Deus e a descoberta da beleza da fé na Vida Eterna; a redescoberta do valor da comunidade como lugar imprescindível de encontro, de celebração, de crescimento e de partilha; a descoberta do que é verdadeiramente essencial à vida dos cristãos e aquilo que pode tornar-se secundário; um compromisso mais assumido com o cuidado da casa comum e com os mais pobres… Se com tudo isto conseguíssemos perceber que muitos dos nossos combates “paroquiais” não valem nada, e que o barco é o mesmo e não há outro, seria um grande bem para todos.