“O canto do vento nos ciprestes” chega-nos da Ucrânia e entra-nos pela casa adentro. Diariamente, vemos na televisão homens, mulheres e crianças que dele fogem com sacos e mochilas às costas. É o horror que eles carregam às costas. O horror cabe em sítios muito pequenos e não é por acaso que entra no coração e no pensamento de alguns. O olhar incerto desta gente que caminha anonimamente e em silêncio, fugindo ao canto da morte, mostra-nos que não é paz o que transportam no seu coração. É medo! É inquietação! É desespero! A paz deveria caber em todos os sítios, mas, infelizmente, o acaso não a deixa entrar no coração frio e gélido de alguns.

As metáforas podem ser ilimitadas, mas o que muitos não sabem é que estas não servem apenas para comparar mundos. Servem para os unir, independentemente da nossa raça, cor, credo, género, condição social ou ideologia política. Nunca deveríamos ser capazes de os separar ou imaginá-los separadamente. Os mundos são únicos e quando os países se formam sob a égide da liberdade e da autodeterminação, a sua soberania confere-lhes o direito a serem respeitados.

A força e o caráter da Humanidade medem-se em função da sua capacidade em criar pontes. Todos sabemos que o Ser Humano e a sua engenharia aguentam-se de pé, mas o que alguns parecem esquecer é que, na sua angústia, o Ser Humano atira-se delas. As pontes, quando cuidadas, aguentam-se e o Ser Humano, por vezes, não. Daí ser tão importante insistir na criação e na manutenção de pontes de entendimento entre os povos e as nações.

Não conheço o nome desta gente que foge com os sacos e as mochilas às costas, a maioria idosos, mulheres e crianças, mas conheço-lhes o essencial. Eles alimentam o mesmo ideal de todos nós, o de quererem ser livres e respeitados. Estas pessoas sem nome, mas de quem conheço o essencial, querem apenas ter uma história enquanto país – infelizmente, lidam agora com a doença da injustiça e com o sofrimento irreparável que lhes é infligido. Estas pessoas sem nome, mas de quem conheço o essencial, sabem agora que a desonra é para sempre e que o inferno é vizinho do paraíso. A estas pessoas sem nome, mas de quem conheço o essencial, cabe-lhes desafiar a morte, inclusive a dos próprios filhos, na esperança de lhes darem uma vida.

Estas pessoas sem nome, mas de quem conheço o essencial, sabem perfeitamente que a miragem da esperança pela liberdade vale muito mais que a própria vida. O país destas pessoas sem nome, mas de quem conheço o essencial tem uma bandeira e um hino que foram completamente desrespeitados e é por isso que o meu pensamento está com cada ucraniano. Apesar de não lhes conhecer o nome, é precisamente por lhes conhecer o essencial que me recuso a olhar para o fantasma das suas almas. Nesta tempestade de ferro e de fogo que varre toda uma Europa adormecida, que tantas vezes tarda em reagir, urge criar e manter pontes e bom senso porque não existem paraísos nas guerras universais. A paz não pode ser uma miríade, antes um veredito porque nas guerras, em todas as guerras, a verdade é a primeira a ser abatida por quem explora o sofrimento, o horror e a miséria de milhares de inocentes, em nome de uma qualquer outra “superioridade moral”. Seja por terrorismo, nepotismo, niilismo, doença, ganância, corrupção ou poder, o nosso planeta azul começa aqui e ali, a dar-nos sinais claros de que está cansado de tanta bipolaridade. A ausência de pontes e de entendimento entre os Homens tem contribuído para que este nosso mundo seja, definitivamente, um lugar (ainda mais) perigoso.

Termino como comecei, com uma metáfora de Maria do Rosário Pedreira – “quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti”. Na madrugada de 24.02.2022 (02H50) ficou provado que o passado não morre e que os sistemas políticos continuam a ser assaltados por aventureiros populistas, sem escrúpulos, capazes de desviarem para os seus objetivos destrutivos os meios disponibilizados pela tecnologia e pela propaganda. Sopro com toda a minha força estas palavras para que cheguem em forma de abraço junto daqueles que resistem e lutam pela sua identidade nacional e merecem a paz. Para que cheguem em forma de esperança junto daqueles que se separam, em lágrimas, acenando, quem sabe, pela última vez. As lágrimas são o espelho dos destroços humanos gerados por quem semeia o ódio e o terror, a violência e a irracionalidade.

Hoje estou triste, profundamente triste. Mas isso não me impede de me posicionar junto daqueles que lutam pela liberdade, tal qual o fez, entre muitos outros, Yelena Osipova, ativista russa com 77 anos de idade que sobreviveu à 2.ª Guerra Mundial, detida pela polícia no passado dia 03 de março por empunhar cartazes que diziam “soldado baixa as armas e aí serás um verdadeiro herói”. Recusando erguer uma lápide às multidões anónimas, também eu “admiro os resistentes, os que fizeram do verbo ‘resistir’ carne, suor, sangue, e demonstraram sem espaventos que é possível viver, mas viver de pé, mesmo nos piores momentos” (Luís Sepúlveda) e dedico esta crónica ao povo ucraniano que luta por um mundo melhor, um mundo Fora da Caixa.

Pedro J. E. Santos – Estudante de Medicina na FMUL

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