A resposta aos desafios do envelhecimento da população e a defesa de um modelo de cuidados mais próximo, humano e coordenado foram os temas que marcaram as II Jornadas de Saúde promovidas pela Santa Casa da Misericórdia de Santarém, que decorreram na manhã de quinta-feira, 22 de Maio, no Convento de São Francisco. A iniciativa reuniu representantes do sector social, da saúde e do poder local, num apelo convergente à valorização do papel das Misericórdias enquanto parceiras privilegiadas do Estado na execução de políticas públicas.
José Miguel Noras, provedor da Misericórdia anfitriã, evocou o longo histórico da instituição na gestão hospitalar — durante mais de quatro séculos — para sublinhar a legitimidade e a capacidade das Santas Casas em assumir responsabilidades no presente. “Temos doze enfermeiros. Dizem-nos que é o máximo. Nós dizemos que é o mínimo dos mínimos — e talvez ainda não chegue”, afirmou, criticando a insuficiência estrutural de meios nas respostas sociais. Lembrou ainda que “a saúde deixou de ser religião — passou a ser ciência. Implica diagnóstico, observação e conhecimento.”
Na mesma linha, o presidente da Câmara Municipal de Santarém, João Teixeira Leite, defendeu uma política pública de saúde que envolva activamente o sector social. Com experiência prévia na administração de uma Misericórdia, a de Leiria, o autarca referiu que “libertar recursos da área da saúde para garantir resposta social foi sempre um esforço necessário”, considerando essa articulação como a verdadeira essência da missão das IPSS. “A política pública deve mobilizar todos: hospitais públicos, sector social e também o privado”, frisou, reafirmando a disponibilidade da autarquia para colaborar em todos os projectos que visem o bem-estar da população.
Da parte da Segurança Social, Paula Carloto de Castro alertou para a urgência de intervenções estruturadas em duas áreas que, no seu entender, exigem resposta imediata: o apoio domiciliário e a saúde mental. No distrito de Santarém, há cerca de 5 mil utentes com acesso a apoio domiciliário, dos quais 4 mil estão abrangidos por acordos de cooperação. Mas a procura está a crescer. “Cada vez mais pessoas precisam — ou preferem — ser cuidadas em casa”, explicou, sublinhando a necessidade de equipas multidisciplinares, com enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e assistentes sociais, bem como de cuidadores formais e informais devidamente preparados. Defendeu ainda uma aposta clara na saúde mental comunitária e na personalização dos cuidados: “Temos de olhar para a solidão, a depressão e a ansiedade como realidades urgentes, sobretudo entre os mais vulneráveis.”
Com um discurso ancorado na filosofia da economia social e nos fundamentos constitucionais do Serviço Nacional de Saúde, o presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel de Lemos, defendeu que, sempre que o Estado não tenha capacidade de resposta directa, deve recorrer em primeiro lugar às instituições do sector social, e só depois ao sector privado. “Se a Constituição consagra o direito à protecção da saúde, não especifica quem a deve prestar. E é aqui que o papel das Misericórdias se torna fundamental, como entidades de interesse público reconhecido.”
Ao caracterizar o momento demográfico actual como uma “revolução grisalha”, lembrou que a esperança média de vida em Portugal, que em 1920 era inferior a 40 anos, ultrapassa hoje os 80 anos. “Em 100 anos, demos 50 anos à vida — agora temos de dar vida aos anos”, afirmou. Sublinhou ainda que os lares e os serviços de apoio domiciliário já são, na prática, respostas de saúde e não apenas de acção social, e que essa realidade deve ser assumida no planeamento e no financiamento público.
Com um olhar crítico, mas construtivo, Manuel de Lemos apontou a incapacidade histórica de articulação entre saúde e segurança social como uma das grandes fragilidades do sistema português, reforçando que as Misericórdias têm sido, muitas vezes, a última linha de resposta para os mais frágeis. “São as Misericórdias que asseguram cuidados continuados, apoio domiciliário, respostas para idosos da classe média e para os mais pobres, muitas vezes onde mais ninguém chega”, concluiu, citando o Papa Francisco: “Um Estado que não cuida dos seus idosos, das suas memórias, não tem destino.”
Apoio domiciliário precisa de nova ambição para se tornar verdadeira alternativa ao lar
A ideia de que o Serviço de Apoio Domiciliário (SAD) é a resposta ideal ao envelhecimento demográfico não resiste à realidade do terreno. Apesar de amplamente reconhecido como desejável, o SAD continua a ser uma resposta subvalorizada, fragmentada e, frequentemente, desadequada às necessidades concretas da população idosa. Esta foi a principal mensagem deixada por Carlos Andrade, da União das Misericórdias Portuguesas, no painel “Apoio domiciliário e o futuro”, integrado nas II Jornadas de Saúde da Santa Casa da Misericórdia de Santarém.
“O Estado fatia a realidade em ministérios — cada um trata da sua parte e ignora as restantes”, criticou, referindo-se à ausência de articulação entre saúde e segurança social. Ao contrário do Estado, as Misericórdias encaram cada pessoa com uma visão holística, reconhecendo a sobreposição das dimensões física, social, emocional e relacional do cuidado. “As instituições vivem este desfasamento todos os dias”, afirmou.
O vice-presidente da UMP desmontou a ideia de que o lar é sempre uma escolha — “é, muitas vezes, uma necessidade gerada pela ausência de uma alternativa real”. E exemplificou com a crescente dependência das pessoas que entram hoje nos lares. “Quem viveu os últimos 20 anos sozinho, na sua casa, e é subitamente colocado num quarto com estranhos até ao fim da vida, dificilmente encara isso como um cenário desejável.”
Na sua leitura, o SAD falha em dois pontos centrais: na resposta de saúde e na dimensão comunicacional. A ausência de serviços de enfermagem em contexto domiciliário gera insegurança, enquanto a falta de contacto humano fora das visitas agendadas agrava a solidão. “Muitas pessoas morrem com medo de morrer sozinhas”, disse. Para responder a este problema, defendeu o recurso à tecnologia como instrumento de transformação real.
Referiu a teleassistência como uma solução com enorme potencial, mas mal implementada em Portugal, devido à entrega do serviço a empresas privadas que “secaram o produto até ao mínimo possível”. Defendeu a criação de uma plataforma nacional única, capaz de integrar sensores, aplicações, alertas e canais de comunicação directa com cuidadores ou familiares, de forma personalizada. “O que não há em Portugal é uma caixa, uma box, que integre tudo isto — e alguém que trate esta informação com utilidade prática.”
Apontou, ainda, as incoerências do actual modelo de financiamento: “Como se justifica que o Estado pague o mesmo valor por um serviço domiciliário na Amadora e em Muge, onde se percorrem quilómetros para levar uma refeição?” — questionou. Considerou absurda a limitação do financiamento a cinco dias por semana ou a discriminação por número de utentes apoiados em simultâneo. “O custo não está nos utentes, está nos recursos humanos — e esses têm de ir na mesma.”
No encerramento da sua comunicação, o vice-presidente da UMP traçou o cenário de três caminhos possíveis para o futuro: nada fazer até que os idosos forcem politicamente a mudança; encher o território de lares; ou, finalmente, transformar o SAD numa resposta moderna, estruturada, tecnológica e eficaz — ainda que mais cara. “É uma questão de opções. O país terá de escolher se quer cuidar dos seus idosos — ou não. Mas acredito que sim, porque eles serão tantos que se farão ouvir.”
Para Carlos Andrade, as Misericórdias estão preparadas para liderar este processo de renovação. “Mesmo sendo centenárias, sempre souberam ler os sinais do tempo. Também nesta matéria, estaremos na primeira fila, com o Estado e com a Academia, para cuidar dos idosos em Portugal.”