Sento-me no café para tentar arranjar as palavras certas para dizer o que quero dizer sobre o assunto que escolhi, que preencherão esta página que agora mesmo está a folhear. Empenho-me sempre muito para que as minhas mensagens despertem a vossa atenção. É esta a essência da escrita. Por isso, seleciono assuntos que acho transversais. Não me desviarei, hoje, deste desígnio.
O espaço onde estou é agradável, estou bem sentado num sofá que não me aconchega – não gosto de estar nem aconchegado, nem confortável demais quando escrevo -, antes me mantém ativo. Há mais pessoas, cada uma no seu computador. O ambiente é calmo, mas perscruto um estado emocional diferente em cada um. Durante breves minutos, enquanto teço na minha mente a história que hoje vos quero contar, fixo-me nos enredos das pessoas e não, apenas, nas fisionomias. Cada pessoa é uma história e a cara nem sempre é o ecrã do que vai na alma de cada um de nós. Há os transparentes e os opacos, mas todos fortes e fracos em algum momento da vida. Uns ficam na História porque as suas estórias marcam, outros serão, apenas, o adubo de novos nascimentos.
Escrevo sempre sobre pessoas porque só por elas e sobre elas vale a pena escrever. E mesmo quando falo de economia e política, trago à colação as pessoas, especialmente aquelas que os políticos não defendem e que a economia abalroa ou, ainda, sobre aquelas a quem só são reconhecidos os deveres.
Habitualmente planeio, faço mapas mentais, pesquiso, estudo, preocupo-me – tenho até medo de não ter ideias ou de que o espectro da folha em branco me atinja e me impeça de organizar as palavras – a fim de que os meus dedos pressionam as teclas certas para que o produto final seja digno.
Séneca, filósofo romano da antiguidade, dizia “Passamos o tempo a organizar o tempo.” Planeamos tudo na nossa vida. A nossa mente nunca está em sintonia com o relógio. Estamos atrasados ou adiantados em relação àquilo que mais importa: sentir a vida, viver. E isso só acontece no preciso momento em que cheiramos, ouvimos, tocamos e vemos. E nele não cabem nem o pretérito perfeito – que fica sempre imperfeito porque podíamos ter feito sempre um bocadinho diferente – nem cabe o futuro dos sonhos, das quimeras, dos projetos; importantes, de facto, mas que nos tiram os pés da terra e afastam da realidade. Muitas vezes queremos isso, tal é a dureza de muitos momentos, de muitas horas do dia, para muita gente. Nos subúrbios da rotina planeada espreitam o imponderável, o imprevisível, o inesperado.
E, inesperadamente, o João Cotrim foi viajar; transdimensionou-se.
Talvez por isso para este escrito não planeei nada. Impedi a mente de me massacrar: faz assim; não, faz assado; assim não vai ficar bem; tens de pesquisar mais artigos; podias ter escrito de outra maneira.
O Natal é um terreno fértil para plantar boas ideias que darão textos deliciosos. Os alimentos mantêm-nos o peso; os textos – mundos de palavras – libertam-nos dos pesos dos quotidianos. Sophia de Mello Breyner, num dos seus maravilhosos poemas – evoca Heráclito de Éfeso, pai da dialética: “Um homem pode enganar-se em sua parte de alimento/Mas não pode/Enganar-se na sua parte de palavra.”
O João Cotrim falava com os olhos e era uma pessoa cuja palavra era um compromisso. Tinha um compromisso muito sério com a sua palavra. Empenhava-se pela honra! O João pertencia a uma espécie de hominídeo em vias de extinção. Por isso, teria de escrever hoje sobre uma das pessoas que ficará na História. Se Miguel Sousa Tavares escreveu o livro “Não te deixarei morrer David Crockett”, eu devo-me à consciência escrever este texto “Não te deixarei morrer, João Cotrim.” Se David era a personificação das aventuras com que preenchemos o nosso imaginário, o João é a personificação de aventuras e, essencialmente, de venturas. Encarou o inesperado e o imprevisível com a coragem e a tenacidade dos fortes. O inesperado é a única regra a que a vida se agarra e condimenta-a. O esperado arrasta-nos para a monotonia e para a rotina, insonsa, sensaborona. Mas este inesperado podia esperar!
O João Cotrim viveu e viverá, na medida em que cada um de nós fale dele: cada vez que ouvirmos música, cada vez que houver uma boa reunião de amigos, cada vez que uma pessoa faça bem a outra, cada vez que se esteja a falar de um bom pai, de um bom filho, de um bom amigo, de um bom companheiro, de serenidade, de bondade, de carácter, de verticalidade, de amizade. É uma presença secreta que abdicou do lado corpóreo; apenas dele.
É por tudo isto que não posso, não quero, nem devo deixar de lavrar, nesta página, palavras sobre o João Cotrim que, uma vez semeadas, façam crescer as esperanças num mundo de melhores pessoas, à sua imagem e semelhança.
Começo a alinhavar – cosendo, cirurgicamente, as ideias com as palavras – esta crónica no dia de S. Martinho de muitos copos de água-pé, tantas vezes acompanhados de mais copos de água-pé. O João viveu a sua vida como S. Martinho que deu a capa a um mendigo.
Não posso, porque ele foi um exemplo, não quero porque não deixarei que ele caia no esquecimento, não devo porque ele esteve sempre comigo, especialmente quando a negritude da vida se apoderava de mim.
E porque é altura de Natal e todos gostamos de prendas, não poderia ter melhor prenda: passo o Natal com o João. Se até agora estávamos, muitas vezes, fisicamente juntos e mentalmente unidos, agora estou com ele em permanência, e nem sequer valorizo a ausência física. Vesti-o – conotativa e denotativamente – absorvi-o, interiorizei-o. Por isso, riremos, beberemos uma mini antes de servidas as couves e o bacalhau, regados a preceito, e estaremos bem; tranquilos e em paz. O Cotrim era um homem de paz! E brindaremos a todos os homens e mulheres e à sua felicidade, como sempre fizemos.
O João tornou-se património imaterial dos amigos. Por isso, continuarei a citá-lo. Não a citar as suas palavras, que não era homem de muitas falas, mas a citar as suas atitudes, os seus comportamentos e os seus pensamentos.
Preservemos esse legado que nos deixou e façamos do Natal um lugar-comum.
Feliz Natal, meus amigos, é o nosso desejo mais sincero.
