Na edição de 7 de Setembro de 1979, o Correio do Ribatejo fazia manchete com um dos episódios mais tristes da história patrimonial de Santarém: o furto de dez quadros e de um valioso relógio de mármore do legado Braamcamp Freire, então depositados nos Paços do Concelho, enquanto decorriam obras de remodelação na Biblioteca Municipal. Sob o título «O Legado Braamcamp», o jornal denunciava, em letras garrafais, que o concelho fora «defraudado em mais de 7.000 contos» — uma quantia significativa para a época, correspondente ao valor estimado das obras furtadas — e relatava, com veemente indignação, o sucedido.

«Não podia deixar de suscitar a mais veemente indignação o furto praticado na semana passada no edifício dos Paços do Concelho de Santarém», escrevia a redacção do Jornal, expressando o sentimento de revolta que tomou conta da cidade nos dias seguintes ao crime.

A valiosa coleção de pintura do legado Braamcamp Freire, quando se encontrava em exposição na Biblioteca Municipal, no palácio da rua da Amargura

A notícia descrevia, com detalhe, as peças desaparecidas, incluindo «O Bibliófilo», de Bordalo Pinheiro — agora finalmente recuperado, 46 anos depois —, bem como outras pinturas de autores consagrados: S. Pedro Mártir, de autor desconhecido, uma Fuga para o Egipto, de Breughel, duas paisagens de Vallin, uma Paisagem holandesa de Drovgtroot, e ainda caricaturas de Emílio Pimentel representando Alexandre Herculano e o próprio Anselmo Braamcamp Freire. O roubo incluíra também O Lansquenet e O Caçador, ambos de Bordalo Pinheiro, e um relógio de mármore castanho com pintas brancas, de grande valor artístico.

«Como é de ver, trata-se de mais uma proeza dos que trazem o País a saque, espoliando igrejas e capelas, defraudando o património nacional daqueles valores artísticos e morais que depois são transaccionados pelos receptadores sem escrúpulos, levados para além-fronteiras pelos agenciados destas malas artes», podia ler-se no corpo da peça, numa crítica feroz ao clima de impunidade que se fazia sentir.

Além de denunciar o crime, o jornal não deixava de evocar a figura de Braamcamp Freire, cuja memória — afirmava o texto — «se impõe à veneração dos santarenos». A redacção sublinhava a grandeza do legado do historiador, político e republicano, lembrando não só a preciosidade da sua biblioteca e da sua pinacoteca, mas também a nobreza do seu percurso intelectual e cívico:

«Quem tivesse visitado o palácio daquela rua da Amargura — depois baptizada com o nome do grande amigo de Santarém — não podia, por certo, deixar de se enlevar na ambiência intelectual e artística que seu filho Anselmo ofereceu a Santarém».

Num longo trecho biográfico, a reportagem recordava o contraste entre a aristocracia de sangue e espírito de Braamcamp e a sua militância republicana, descrevendo-o como «moço-fidalgo com exercício na Casa Real», que em 1907 se assumiu republicano e veio a presidir ao Congresso Constituinte, aceitando inclusivamente ser candidato à Presidência da República. Esse percurso, marcado por rigor, exactidão e um inabalável sentido de justiça, era apontado como reflexo do seu temperamento firme, herdado da ascendência flamenga por via materna e da fleuma holandesa conciliada com a índole portuguesa paterna.

O texto deixava ainda claro que a indignação não era apenas pelo valor material das obras roubadas, mas também pela ferida infligida à memória colectiva e à cultura da cidade. Recordava que a pinacoteca reunia trabalhos de mestres como Josefa d’Óbidos, Tomás da Anunciação, José Malhoa, Alfredo Keil, Manuel Bordalo Pinheiro, entre muitos outros, que faziam do legado Braamcamp um dos maiores orgulhos patrimoniais de Santarém.

A reportagem ocupava quase toda a página de abertura e incluía uma fotografia do salão da Biblioteca Municipal com as obras expostas antes do furto. Era um apelo implícito às autoridades para que não deixassem cair no esquecimento a responsabilidade de recuperar esse espólio e de punir os responsáveis.

Passadas quase cinco décadas, a devolução de O Bibliófilo à Câmara Municipal devolve também aos leitores do Correio do Ribatejo a oportunidade de revisitar essa memória. O quadro, pintado em 1870 por Manuel Maria Bordalo Pinheiro, é uma pequena, mas significativa parte do acervo subtraído naquela madrugada de 28 para 29 de Agosto de 1979, devolvida ao município após ter sido identificada num leilão nacional e recuperada pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público.

O gesto de devolução da obra permite não só valorizar o legado de Braamcamp Freire, como reforçar a importância de preservar a memória patrimonial de Santarém — uma memória que o Correio do Ribatejo ajudou, desde sempre, a construir, defender e manter viva, ao longo dos seus mais de 130 anos de história.

Relembrar a forma como este jornal se fez porta-voz da indignação e da denúncia, em 1979, é também prestar homenagem ao seu papel enquanto guardião da identidade cultural e cívica da cidade. Hoje, como então, importa não esquecer: as obras são mais do que objectos de valor — são testemunhos de uma história colectiva, que urge proteger e devolver ao convívio público.

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