O historiador Vítor Serrão foi o orador convidado da terceira conferência do ciclo “Os Historiadores de Santarém, organizado pela Associação de Estudo e Defesa do Património Histórico-Cultural de Santarém (AEDPHCS).

“Patrimonialista militante”, historiador da arte reputado, Vítor Serrão desde sempre defendeu a abordagem do Património numa perspectiva integrada e como parte dinâmica de um todo social.

No estilo claro e frontal que o caracteriza, o investigador falou do seu percurso pessoal, da sua ligação a Santarém – sua terra adoptiva – onde começou a despontar o seu interesse pelas questões do património e da arte.

“É a minha terra adoptiva. Aprendi a gostar muito dela com o meu avô, que era um ribatejano genuíno, e foi aqui que publiquei os meus trabalhos há mais de trinta anos. Vivi em Santarém bastante tempo”, lembrou.

“Foi também no Correio do Ribatejo que, desde muito novo, fui colaborando com temas sobre o património. Julgava que eram artigos sem grande impacto, que ninguém os lia, que não iriam, propriamente, provocar grande debate, mas enganei-me. Efectivamente, é uma matéria que dá frutos e provoca interesse nas pessoas”, revelou Vítor Serrão, um dos 20 fundadores da AEDPHCS, “um movimento que veio mostrar que a política também era feita no território da cultura e do património. Uma autêntica escola, que conquistou Portugal”.

Para o historiador, “património é memória identitária fundamental que impõe registo, estudo e medidas preventivas, possibilitando a sua fruição como algo que torna o homem melhor”.

“O património é muito mais do que aquilo que vem nos livros. Não é o grande retábulo, o grande monumento, a grande pintura. É muito mais: é algo que tem uma componente transcontextual, que gera encantamento e debate, para além do corpo utilitário que lhe deu forma”, considerou.

“Parece que, finalmente, tomamos consciência de que o país não é só a Batalha e os Jerónimos. Descobrimos que havia muito mais, e bom. E o que era bom não era obrigatoriamente o que se pautava por padrões italianos ou flamengos, mas aquilo que tinha uma genuinidade definidora de um espaço. Património é tanto a obra-de-arte, a ruína, o objecto-construção, a arquitectura de um edifício (o monumento clássico), como o lugar-ambiente, os núcleos urbanos, ou seja, a cidade antiga e a cidade consolidada. É património o território e a paisagem humanizada, enquanto arquitecturas de vasta escala, ou seja, organizações voluntárias do espaço feitas por (e portadoras dos valores dos) homens. É também património (intangível) o saber que permitiu projectar, construir, manter ou alterar”, afirmou Vítor Serrão nesta conferência.

Demonstrando “repúdio” pelo “acto criminoso” que recentemente ocorreu em Leça da Palmeira, onde uma escultura de Pedro Cabrita Reis foi vandalizada, o professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa considerou que cabe às autarquias, às associações culturais e cívicas, às tutelas do Estado democrático, no seu conjunto, “impulsionar medidas assertivas que combinem as salvaguarda integral do património com o progresso desejável, entendendo essa tarefa como um imperativo nacional”.

“Há que formar novas mentalidades, para que se tome consciência que o Património é uma mais-valia, identitária para um país, que defende uma memória e reabilita uma região”, apelou.

Neste sentido, Vítor Serrão considerou igualmente “preocupante” o facto de o Museu de São João de Alporão continuar fechado: “há que trabalhar em conjunto para que este monumento ímpar reabra ao público”, disse.

“O Património escalabitano foi campeão da ruína. [O historiador] Jorge Custódio tem um livro, editado em finais dos anos 70, onde inventaria os crimes que foram cometidos na época Napoleónia, no período Liberal, durante a Primeira República, no Estado Novo e também na actualidade”, disse, apontando a existência de crimes contra os monumentos, as muralhas e os 49 conventos e igrejas que existiram na cidade: “grandes monumentos do Gótico e do Românico foram demolidos. Há uma longa história ainda a escrever a este respeito”.

Vítor Serrão apontou ainda que o Património escalabitano “foi vítima dos restauros. Foi um laboratório terrível do Estado Novo, que partiu de uma perspectiva de purismo arquitectónico. Destruíram mais do que recuperaram”, lamentou.

“A incapacidade de saber intervir com sensibilidade, e as más decisões, originam atentados patrimoniais sem remissão, e este seria de imensas proporções”, considerou, acrescentando: “é certo que as cidades crescem, geram dinâmicas e novos patrimónios, mas não se aceita que esse processo se faça destruindo testemunhos históricos relevantes, negando-lhes valia”.
Vítor Serrão referia-se, em concreto, à recente alienação, por parte da autarquia, da chamada ‘Casa do Relejoeiro’, junto à Torre das Cabaças, para onde esteve prevista a segunda fase do Museu do Tempo.

“Estamos no pulmão histórico indiscutível. Creio que é uma forma de esbulho do património urbano, que é de todos, feita de maneira pouco clara porque não é justificado qual é o fim. Fico preocupado com esta notícia. Penso que é mais uma perda”, declarou, mostrando-se, contudo, confiante naquilo a que designou de “renascimento da frente patrimonialista”.

“Creio que, hoje, está a surgir uma nova consciência nas pessoas, depois de um período de algum descuido e abandono, de deixar cair a toalha, o que gerou muitos crimes sobre o património”, afirmou, concluindo: “o património comum une passado, presente e futuro numa intimidade de interstícios, pelo que a reabilitação dos lugares históricos só pode mesmo ser cruzada com o sentido da sua dignificação plena. Exige-se perspectiva responsável e aberta, que só faz sentido se Património, Herança e Memória caminharem de mãos dadas. É preciso que a lucidez faça doutrina, inflectindo o processo que ameaça com destruições”.

Vítor Serrão nasceu em Toulouse (França) em Dezembro de 1952. É uma referência no campo da História da Arte em Portugal. Doutorado pela Universidade de Coimbra, é professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e coordenador do Instituto de História da Arte e da sua Revista Artis. Especializou-se no estudo da pintura portuguesa renascentista, maneirista e barroca, bem como em Teoria da Arte e no campo da salvaguarda do Património.

É autor de uma numerosa bibliografia nestes domínios. É também membro da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e do Conselho Redatorial do Archivo Español de Arte. No âmbito da sua obra recebeu o Prémio Nacional José de Figueiredo da Academia Nacional de Belas-Artes pelo livro “O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses”, o Prémio APOM pelo melhor catálogo de 1995, com a publicação “A Pintura Maneirista em Portugal – arte no tempo de Camões”, e o Prémio Nacional Gulbenkian de História de Arte pela obra “Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco”.

Tem-se dedicado, como historiador de arte, a estudos de temas da Idade Moderna, redignificando o património artístico português e o campo teórico e metodológico da disciplina na análise da produção a partir de visões globalizantes, atento às mecânicas do mecenato, ao estatuto social dos artistas e aos programas iconológicos dos conjuntos e obras. Especial interesse tem manifestado por “períodos escuros” da arte portuguesa, como sejam o Maneirismo e o Proto-Barroco, a que dedicou longas pesquisas.

Filipe Mendes

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