Há 51 anos, Carlos Beato integrou a coluna da Escola Prática de Cavalaria que, sob o comando de Salgueiro Maia, partiu de Santarém rumo a Lisboa para devolver a liberdade aos portugueses. Nessa madrugada histórica, como alferes miliciano e comandante do 6.º Pelotão, esteve no bloqueio do Terreiro do Paço e no cerco ao Quartel do Carmo, contribuindo para a rendição de Marcelo Caetano sem derramamento de sangue. Meio século depois, Carlos Beato continua a ser um defensor convicto dos valores de Abril, afirmando que “o 25 de Abril valeu a pena” e alertando para a responsabilidade de manter viva a memória da Revolução entre as novas gerações. Nesta entrevista ao Correio do Ribatejo, recorda episódios decisivos da Revolução dos Cravos, reflete sobre o legado do poder local democrático e sublinha que “ser de Abril é acreditar que é possível mudar o rumo de um país com coragem, convicção e amor à liberdade”.

No ano em que se assinalam 51 anos do 25 de Abril, como é que recorda essa madrugada histórica em que integrou a coluna comandada por Salgueiro Maia? Houve algum momento particularmente marcante para si?

A minha maior recordação dessa madrugada libertadora foi ter tido o privilégio de integrar a coluna da operação “Fim do Regime”, comandada pelo grande e saudoso capitão Salgueiro Maia. Estávamos em plena ditadura, sob o peso da polícia política e da censura, e ter merecido a confiança do Salgueiro Maia — não só enquanto militar, mas também no plano pessoal e estratégico — foi algo que marcou profundamente a minha vida.

Recordo três momentos que me ficaram gravados. O primeiro aconteceu junto ao Terreiro do Paço, quando quatro carros de combate se dirigiram contra as tropas vindas de Santarém. Salgueiro Maia tinha então 29 anos, e eu 25. Sem comunicações eficazes, sem telemóveis, com rádios rudimentares, foi ele quem, num exercício notável de bom senso, coragem e liderança, teve de tomar decisões difíceis em segundos. Houve um momento crítico em que o oficial-general que liderava os carros de combate deu ordem para abrir fogo sobre nós. Teríamos morrido todos, incluindo Salgueiro Maia, e o 25 de Abril poderia ter terminado ali, às 9 da manhã. Mas graças ao discernimento de um cabo apontador, José Alves Costa, que recusou disparar, evitou-se o pior. Mais tarde, enquanto membro do Conselho das Ordens, propus que esse militar fosse louvado — uma justa homenagem a quem, num instante decisivo, escolheu a vida em vez do confronto.

O segundo momento que destaco ocorreu no Largo do Carmo. Não estava previsto irmos para lá, mas, dada a evolução dos acontecimentos, recebemos ordens para cercar o edifício onde se encontrava Marcelo Caetano com alguns ministros. Foram quatro horas de tensão, sem resposta aos apelos do Salgueiro Maia para a rendição. A determinado momento, ele ordenou-me — enquanto comandante do 6.º Pelotão da EPC — que colocasse os meus homens num varandim em frente ao quartel e fizesse uma rajada de aviso sobre a fachada do convento. A acção estava pensada para durar poucos segundos, mas, devido ao nervosismo natural dos militares, a rajada prolongou-se por cerca de 20 minutos. Os tiros foram feitos a meia altura, para não atingir os milhares de populares que se encontravam no largo. E foi esse acto que levou finalmente à abertura das portas do Carmo.

O terceiro momento foi esse precisamente: o instante em que se abriram as portas do quartel e, com elas, as de Abril. Foi graças à firmeza, inteligência e sensibilidade do nosso comandante, Salgueiro Maia, que a rendição aconteceu de forma pacífica. Estes três episódios marcaram-me para sempre. São, até hoje, fonte de orgulho, honra e gratidão.

Que sentimentos o atravessam ao ver concretizado o objectivo da operação “Fim do Regime”? E que papel atribui, passadas mais de cinco décadas, aos jovens militares que, como o senhor, disseram sim à Revolução?

O sentimento que guardo — e tenho a certeza de que é partilhado pelos meus camaradas de armas — é de um profundo sentido de missão cumprida. Sentimo-nos ao serviço da liberdade, da democracia e da afirmação de Portugal num novo contexto, mais aberto ao mundo. É importante lembrar que, antes do 25 de Abril, o país vivia isolado, com o slogan “Portugal orgulhosamente só”. A Revolução veio romper com esse isolamento e abrir portas à mudança.

Na madrugada do 25 de Abril de 1974, é importante sublinhar, ninguém foi obrigado a participar na operação militar. Estávamos na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, a dormir na parada, quando o capitão Salgueiro Maia nos explicou o que estava prestes a acontecer. E depois disse apenas: “Quem quiser vir comigo, dê um passo em frente.” Todos os militares presentes deram esse passo. Mas nem todos puderam integrar a coluna, por razões operacionais — vieram cerca de 240. O que importa destacar é que todos se ofereceram voluntariamente.

Isto diz muito do espírito da época. Nós, jovens militares, interpretámos de forma clara e corajosa a vontade do povo português. Sabíamos que a ditadura já não tinha legitimidade nem futuro. Não éramos políticos, mas percebíamos o que estava em causa: a liberdade, os direitos cívicos, o fim da guerra colonial e a dignidade das pessoas. E foi esse entendimento colectivo que fez do 25 de Abril um acto pacífico, corajoso e profundamente transformador.

Sinto orgulho por ter participado, mas sobretudo gratidão pela confiança e pelo exemplo de todos os que, comigo, disseram “sim” à liberdade.

Foto: Grandela Aires

Durante o cerco ao Quartel do Carmo, teve de tomar decisões delicadas sob enorme pressão. De que forma é que essa experiência moldou o seu carácter e influenciou o seu percurso futuro?

Costumo dizer que houve três grandes instituições que moldaram o meu carácter e ajudaram a definir o meu caminho na vida. A primeira foi a família, que me transmitiu os valores, os princípios e a postura com que cresci — quer em casa, quer no Ribatejo, onde nasci e fui educado. A segunda foi a fé. Sou católico — não praticante no sentido convencional, mas atento ao que os valores da Igreja podem ensinar. Hoje, por exemplo, reconheço no Papa Francisco uma referência moral e um guia para o serviço ao próximo. E a terceira grande escola da minha vida foi a instituição militar.

A Escola Prática de Cavalaria, o Exército e a experiência do 25 de Abril deram-me uma base de valores muito sólida: disciplina, responsabilidade, espírito de sacrifício e sentido de missão. Convivi com militares excepcionais, como Salgueiro Maia, e tive o privilégio de viver um momento histórico que exigiu sangue-frio e coragem, mas também capacidade de decisão rápida e sensibilidade humana. Isso marcou-me profundamente.

O cerco ao Carmo foi talvez o episódio mais simbólico dessa aprendizagem. Estávamos sob tensão extrema, com o risco de confronto armado iminente, e a missão exigia uma enorme lucidez. As decisões não podiam falhar. E, nesse dia, aprendi que liderar também é saber conter os ânimos, evitar o conflito desnecessário e acreditar numa solução pacífica, mesmo quando tudo parece empurrar para o contrário.

A experiência do 25 de Abril deu-me um código de conduta que levei para a vida civil, para a política e para tudo o que fiz depois. Não sou herói, nem gosto que me tratem como tal. Fui apenas um dos muitos que tiveram a coragem de dizer sim à liberdade e à democracia — e isso, por si só, já é uma grande honra.

Depois da Revolução, optou por uma carreira política e assumiu funções como autarca. Que pontes vê entre o espírito de Abril e o exercício do poder local democrático?

Essa é uma pergunta que me toca especialmente, porque acredito, e já o disse publicamente em várias ocasiões, que o poder local democrático foi uma das maiores conquistas do 25 de Abril. Não digo isto apenas por ter sido autarca — e com alguma visibilidade — em Grândola, Vila Morena, mas porque conheço bem o papel transformador que o poder local teve no país inteiro.

Nunca pensei ser presidente de câmara, e muito menos em Grândola, onde, por acaso ou talvez não, me casei há 52 anos — um ano antes do 25 de Abril. No entanto, a vida levou-me a esse caminho e senti, como em Abril, que era preciso servir as pessoas, dar-lhes melhores condições de vida e dignidade. Isso é, no fundo, dar corpo ao espírito da Revolução.

O poder local democrático permitiu que se levassem infra-estruturas básicas, como água, luz, escolas, transportes e saúde, a lugares onde antes nada existia. Mas mais do que obras, o poder local devolveu às populações o direito de decidir sobre o seu território. E esse direito democrático, esse exercício da cidadania em proximidade, é profundamente Abril.

Muitas vezes fala-se dos presidentes de câmara ou das figuras mais visíveis, mas há milhares de autarcas anónimos — nas assembleias de freguesia, nas juntas, nos pequenos concelhos — que fizeram um trabalho notável e sem os quais muito do progresso local não teria sido possível. A esses homens e mulheres o país deve muito.

O 25 de Abril não foi apenas Lisboa ou o Carmo. Foi, e continua a ser, cada aldeia, cada vila e cada cidade onde o povo passou a ter voz. E é aí que o espírito de Abril continua vivo.

A memória do 25 de Abril corre o risco de se diluir entre as novas gerações. Que leitura faz desse facto e que responsabilidade atribui, hoje, aos decisores políticos — e à sua própria geração — na preservação deste legado?

Partilho dessa preocupação, mas devo dizer que não coloco essa responsabilidade apenas sobre os ombros dos actuais decisores políticos. A minha geração também tem culpas no cartório. Fomos protagonistas de um momento decisivo da nossa História, mas talvez não tenhamos sabido transmitir, com a clareza e a força necessárias, o verdadeiro significado do que conquistámos.

Eu tinha 23 anos quando fui para a guerra colonial em Moçambique. Vi de perto o sofrimento de milhares de jovens como eu — muitos dos quais morreram, outros ficaram mutilados para toda a vida. E tudo isto por uma guerra que sabíamos não ter solução militar, apenas uma solução política, como acabaria por acontecer. Isso marca-nos profundamente. E é algo que os jovens de hoje não conhecem — não por falta de interesse, mas porque ninguém lho explicou com verdade e detalhe.

Vivíamos num país onde não se podia ler o que se queria, onde não se podia reunir ou falar livremente. Havia aldeias onde bastava alguém “não gostar” de outro para este ser levado pela PIDE em carrinhas, à noite, sem explicações. Tudo isto parece distante, mas foi real. E é importante que os mais novos compreendam o que era viver sem liberdade — para darem o devido valor ao que têm hoje.

A minha geração devia ter feito mais para “levar esta mensagem a Garcia”, como se diz na gíria militar. Explicar com clareza o que foi a ditadura, o que significou Abril, o que mudou — e também o que ainda falta fazer. Claro que os políticos têm uma responsabilidade fundamental na educação cívica e na preservação da memória, mas nós, que vivemos a Revolução por dentro, devíamos ter sido mais persistentes e organizados nesse esforço.

O 25 de Abril não é um feriado. É um património moral e democrático que exige ser transmitido. Se não o fizermos, corremos o risco de o ver esvaziado de sentido.

O que é, para si, “ser de Abril” hoje, passadas cinco décadas sobre a Revolução, num país onde emergem novos desafios sociais, políticos e cívicos?

“Ser de Abril”, hoje, é ter consciência de que ainda há muito por fazer — e é ter a coragem de continuar a lutar por uma sociedade mais justa, mais livre e mais solidária. Agora, não podemos cair no erro de comparar o Portugal de hoje com o de antes de Abril de 1974. Isso seria não só injusto, mas também uma profunda distorção da História. O país avançou, mudou, libertou-se. E isso não pode ser apagado, por mais críticas legítimas que se possam fazer ao presente.

Sei que há insuficiências, problemas por resolver, promessas por cumprir. Mas também sei — e digo-o com orgulho e convicção — que valeu a pena. Com todas as dificuldades, com todas as falhas, com tudo o que podia ter sido diferente, o 25 de Abril valeu a pena.

Esse era, aliás, o lema dos militares milicianos, aqueles que não pertenciam ao quadro permanente: “O 25 de Abril valeu a pena.” E esse lema, que repito muitas vezes, não é apenas uma frase — é uma certeza. Ainda recentemente, numa entrevista a um canal estrangeiro, sublinhei isso mesmo: com todas as nuances, com todos os contornos que o tempo trouxe, o que fizemos nessa madrugada continua a ter sentido. Continuará, enquanto houver quem acredite na liberdade.

Ser de Abril é não desistir. É acreditar, como acreditámos naquela madrugada, que é possível mudar o rumo de um país — com coragem, com convicção e com amor à liberdade.

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