“Uma noite não dormida vivida ao serviço da consolidação da Democracia portuguesa”

Os meses que se seguiram à ‘Revolução dos Cravos’, que acabaria por derrubar a ditadura do “Estado Novo”, foram de grande agitação política e social. A 11 de Março de 1975, um acontecimento acendeu o rastilho do que viriam a ser meses escaldantes. Paraquedistas da base aérea de Tancos atacam o Regimento de Artilharia de Lisboa (RALIS) numa tentativa de golpe liderada por António de Spínola, general que meses antes tinha deixado a Presidência da República. O golpe acaba por não ter resultados e Spínola vê-se obrigado a abandonar o país, primeiro para Espanha e depois para o Brasil. Estava criado o denominado Processo Revolucionário em Curso (PREC) que teve o seu epílogo com o 25 de Novembro de 1975. Quarenta e cinco anos depois, há ainda muitas interrogações sobre o desenrolar dos acontecimentos que levaram a uma tentativa de golpe militar, depois de um ‘Verão quente’ recheado de disputas entre forças revolucionárias e moderadas pela ocupação do poder. Estava em preparação um possível confronto armado e Santarém acaba por, mais uma vez, fazer parte da história com a participação de uma coluna militar liderada pelo Capitão Salgueiro Maia no 25 de Novembro. Ao ‘Correio do Ribatejo’, José Cruz Marques, natural de Santarém, militante do PS desde a primeira hora, recorda a sua participação e envolvência “numa noite não dormida vivida ao serviço da consolidação da Democracia portuguesa”.

José Cruz Marques, natural de Santarém, 84 anos de idade, desde sempre militante socialista, decidiu partilhar ao ‘Correio do Ribatejo’ a sua participação no ‘25 de Novembro de 1975’, “para que se acabem as dúvidas” acerca do comportamento de Salgueiro Maia, “por não ter atacado frontalmente o Ralis e Dinis de Almeida”.

“Porque tive o privilégio de acompanhar, passo a passo, desde Santarém a Lisboa, todo o movimento da Coluna Militar da Escola Prática de Cavalaria (EPC), resolvi partilhar com o ‘Correio do Ribatejo’ as memórias que guardo dessa madrugada porque talvez um dia possam vir a contribuir para desfazer ideias erradas que se formaram acerca deste assunto”, principiou

José Cruz Marques no dia em que recebeu o ‘Correio do Ribatejo’ em sua casa, entre centenas de documentos que foi guardando ao longo dos anos.
“Ao contrário daquilo que cheguei a ler em alguma imprensa, Salgueiro Maia não se acobardou, não cumpriu qualquer pacto de sangue, não chegou atrasado… Salgueiro Maia chegou ao local exacto muito cedo e resolveu a seu favor a contenda militar que estava em jogo, sem tiros e sem vítimas”, esclarece Cruz Marques, para quem Salgueiro Maia “simplesmente demonstrou, mais uma vez, a sua capacidade de grande estratega” que fez com que, a 28 de Novembro, “em vez de uma Guerra Civil tivessemos o levantamento do estado de sítio”, assinala.

Para Cruz Marques, o 25 de Novembro de 1975 constitui um “marco histórico muito importante para estabilizar a implantação da Democracia em Portugal e os acontecimentos deste dia são uma consequência do 11 de Março e de tudo o mais que se passou num período a que se veio a chamar de ‘Verão Quente de 75’”, começou por explicar ao ‘Correio do Ribatejo’.

Tal como no 25 de Abril de 1974, Santarém “volta a estar em grande plano nacional com mais uma intervenção da Coluna Militar da EPC, comandada por Salgueiro Maia”, frisa.

Clima de instabilidade

Depois do 11 de Março, o país começou a viver um clima político “instável e escaldante” e Santarém não foi excepção: “Na sede do Partido Socialista (PS), em Santarém, também se registava uma intensa actividade provocada pelos acontecimentos políticos que surgiam a todo o momento e também devido à grande proximidade que entretanto se estabelecera com o Movimento das Forças Armadas (MFA), através da EPC”, inicia.

“Havia um contacto muito directo com a EPC e era vulgar o PS ser solicitado para desempenhar missões ou acções na esfera civil, quando os acontecimentos assim o justificavam”, numa altura em que muitas situações criadas “provocavam uma constante emissão de comunicados e contra comunicados”, nota.

Cruz Marques lembra que em Janeiro (1975) o PS discorda da Unicidade Sindical (US) e faz um grande comício em Lisboa. Mesmo com a discórdia do PS, Vasco Gonçalves aprova a US, recorda.

No ‘11 de Março’, tropas paraquedistas de Tancos bombardeiam o RAL1 em Sacavém (Dinis de Almeida). O Governo nacionaliza a Banca e os Seguros. São marcadas as primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte. Toma posse o Conselho da Revolução, criado em 12 de Março. Começa a ocupação de terras no Alentejo e Ribatejo. A Quinta da Torre Bela é ocupada por Otelo, Costa Martins e Mortágua. O Partido Comunista começa a controlar as entradas e saídas de Alpiarça.

Em Abril, realizam-se as primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte, ganhas pelo PS. Os festejos do ‘1 de Maio’ são ensombrados por conflitos no estádio onde se realizaram. É ocupada a Rádio Renascença e tem lugar o assalto ao ‘Jornal República’ e o sequestro de Raul Rego, factos que Cruz Marques relembra à conversa com o ‘Correio do Ribatejo’.

Em Junho, a Assembleia Constituinte inicia os seus trabalhos e dá-se a fuga da prisão de Alcoentre dos agentes da PIDE que lá se encontravam.

No mês seguinte, “discordâncias” no seio do PS levam ministros socialistas a abandonar o Governo. Dá-se a tentativa de assalto à sede do PS de Leiria que foi interrompida em Rio Maior. Também em Rio Maior, “grandes agrários do Alentejo protestaram contra a Reforma Agrária, cortando estradas, derrubando árvores e fazendo fogueiras”, lembra Cruz Marques.

“Realizou-se um grande comício do PS na Fonte Luminosa, em Lisboa, onde se ouviram palavras de ordem como: “Está na hora, Vasco vai-te embora” e eu recebo pelo correio uma ameaça”, afirma.

Em Agosto, é empossado o novo Governo chefiado pelo Almirante Pinheiro de Azevedo e em Outubro tem lugar a desocupação da Quinta da Torre Bela pela EPC.

Em Novembro, regista-se um conflito em Santarém entre a CAP e o PC, do qual resultam dois mortos numa rua da Cidade. É feito o cerco à Assembleia da República por operários da Construção Civil. Costa Gomes apela à necessidade de se evitar uma Guerra Civil e oficiais paraquedistas de Tancos abandonam a sua Unidade e vão para Cortegaça, contextualiza José Cruz Marques.

“Missão de grande responsabilidade e risco”

“É neste ambiente de agitação permanente que em 24 de Novembro de 1975, com o Estado de Sítio decretado, é recebida na Sede do PS, em Santarém, uma solicitação da EPC pedindo colaboração para serem disponibilizadas duas viaturas civis com condutores, para nessa madrugada desempenharem uma missão de grande responsabilidade e risco”, recorda.

“Uma vez aceite o desempenho da missão foram designados para tal os camaradas Nuno Carvalho de Rio Maior com o seu ‘Volvo’ e José Cruz Marques com o seu Nissan, ainda me recordo da matrícula: BR-58-33”, revela.

Para se obterem os pormenores da missão era preciso que uma das viaturas designadas se deslocasse à entrada do jardim das Portas do Sol, onde estaria uma viatura do comando da EPC que forneceria as instruções necessárias.
“Tendo sido eu o designado, por questões de segurança foi-me fornecida uma “senha” para ultrapassar as barreiras que iria encontrar até chegar ao local: a entrada do jardim das Portas do Sol”, explica.

“Peguei no meu carro fazendo-me acompanhar pelo camarada Fernando Nogueira e meti-me a caminho”, prossegue.

“Na reduzida distância que tinha de percorrer tive que enfrentar três barreiras militares armadas com G-3, a quem tive que dar a “senha” para poder passar, estando a primeira localizada no Terreirinho das Flores, a segunda junto ao Teatro Rosa Damasceno e uma terceira junto à Sede do Rádio Ribatejo, a meio da Avenida 5 de Outubro. Uma vez ultrapassadas as barreiras lá estava o carro do Comando da EPC, um Datsun 1200 preto, que era bastante conhecido em Santarém”, relata.

Segundo Cruz Marques, no local indicado foi necessário sair do carro e entrar no do comando da EPC e foi aí que lhe foram fornecidos os elementos necessários para o desempenho da missão a que iria ficar ligado para sempre.

“Fiquei a saber que nessa madrugada sairia da EPC rumo ao Ralis, em Sacavém, uma Coluna Militar comandada por Salgueiro Maia e que a nossa função era a de batedores, seguindo na frente da Coluna, guardando a distância necessária para que ao ser detectada qualquer situação ou movimento anormal na estrada ela pudesse ser transmitida prontamente ao Comandante Salgueiro Maia. Uma vez iniciada toda esta operação passaríamos a estar subordinados às suas instruções”, revela.

Uma vez recolhida toda a informação que lhes fora confiada regressaram à sede do PS onde aguardariam que lhes fosse dado “o sinal de início”.

Eram duas horas e meia da madrugada…

Eram duas horas e meia da madrugada de 25 de Novembro de 1975 quando Cruz Marques e Fernando Nogueira receberam a comunicação de que se podiam fazer à estrada.

“Recebido o sinal de partida saímos ao encontro da coluna que já possuía os dados dos nossos carros e pela EN3 iniciámos o trajecto avançando e voltando atrás para darmos luz verde à coluna militar. Tudo correu com normalidade até Vila Franca de Xira onde iriamos apanhar o início da A1 para Lisboa”, recorda.

“De tudo o que se passou durante o trajecto o que mais me marcou foi o ruído brutal produzido pela coluna em movimento que fazendo tremer o chão fazia lembrar um sismo de grande intensidade”, observa.

“Já se notavam sinais do amanhecer quando entraram na A1 e a cerca de oito, dez quilómetros da portagem de Sacavém, Salgueiro Maia mandou parar a coluna e fez-nos sinal. Chamou para nos dizer que a partir daquele momento não eram mais necessários os nossos serviços e que podíamos “desaparecer”, foi o termo que empregou”, lembra.

“Como sabíamos que o destino era o RALIS, ficámos intrigados, mas cumprimos a ordem e desaparecemos”, prossegue.

Maia evita “banho de sangue”

Já “livres de responsabilidades” e com a “missão cumprida” decidiram que o melhor seria estacionar a viatura civil perto do RALIS “onde algo iria acontecer”.

Chegados ao local depararam-se com uma grande aglomeração e movimentação de pessoas: “uns milhares que em pequenos e grandes grupos comentavam o que se estava a passar porque já tinham conhecimento que a Coluna Militar da EPC vinha a caminho. Misturados naquela confusão pudemos verificar que grupos muito extremistas faziam mini-comícios incitando os populares a repudiarem a chegada de Salgueiro Maia, ameaçando formar uma muralha humana junto às portagens que obrigaria o Capitão a provocar um banho de sangue se insistisse em avançar”, recorda Cruz Marques.

O ambiente não era favorável à chegada da coluna militar oriunda de Santarém.

“O tempo foi passando e já depois das sete horas da manhã, sem a coluna aparecer, e nós a sabermos onde a tínhamos deixado, achámos que o tempo decorrido era já demasiado e decidimos agir”, esclarece.
“Nesse momento já só lá estava eu [José Cruz Marques] e o Fernando Nogueira porque entretanto tinhamos perdido o rasto ao Nuno Carvalho. Decidimos ir procurar saber o que se estaria a passar com Salgueiro Maia e os seus homens”, explica.

“Foi nessa altura que decidi pegar no carro e entrar na A1 a caminho de Vila Franca. Nesse trajecto verificámos que a coluna tinha desaparecido da auto-estrada. Chegados a Vila Franca volto a entrar na A1, desta vez rumo a Lisboa, e a parar no local onde tínhamos terminado a nossa missão, oito quilómetros antes de Sacavém. A coluna que era tão grande não podia ter desaparecido, pensámos. Saímos do carro e fomos verificar o rasto deixado pelos carros de combate e com grande surpresa nossa constatámos que Salgueiro Maia alterou o trajecto, atravessou o separador central da auto-estrada e deixou-a, descendo para a esquerda por terras de olival para ir apanhar a EN10 em direcção a Moscavide, dirigindo-se para o Quartel de Beirolas onde existia um grande paiol de armamento e explosivos”, relata.

Segundo Cruz Marques, frente aos portões de Beirolas, Salgueiro Maia ordenou que os abrissem para fazer entrar e estacionar a coluna militar “em posição de pronta a intervir” e foi dali, “com uma grande posição de força” que Salgueiro Maia “muito inteligentemente obteve a rendição de Dinis de Almeida, conseguindo atingir o objectivo sem dar um tiro e evitando impacto directo com a população que circundava o RALIS o que se poderia traduzir em mortes desnecessárias”, reconhece.

Para José Cruz Marques não restam dúvidas sobre a importância de Salgueiro Maia no ‘25 de Novembro’: “quando na auto-estrada ele nos chamou para nos dizer que desaparecêssemos já sabia o que se estava a passar junto ao RALIS e já sabia também o que iria fazer em alternativa. Enquanto todas as atenções da população, e não só, estavam com os olhos postos nas portagens da auto-estrada, o ‘Capitão de Abril’ e a sua coluna mlitar entrariam em Beirolas sem alardes, ganhando uma posição negocial de muita força que lhe viria a permitir resolver o assunto a seu favor, sem tiros e sem vítimas”, conclui.

JPN

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