Nos meus trinta anos de banca, fui aprendendo que é má estratégia subvalorizar o meu interlocutor. Sempre que o fiz, fui surpreendido com um resultado menos vantajoso que o esperado. Vem isto a propósito da tomada de posse, no passado dia 20 de janeiro, do 47º presidente dos Estados Unidos da América, Donald J. Trump. Sei bem que a pessoa em questão, pelas suas atitudes e excessos de linguagem, é alvo a preceito para ataques da comunicação social e para a chacota dos seus detratores. Eu próprio não morro de amores pela personagem, mas fica-me a pulga atrás da orelha com a leviandade da rotulagem com que opositores, comentadores e comunicação social o classificam. Afinal, o homem é, objetivamente, o presidente do País que se afirma como o mais poderoso do mundo. Tudo o que diz e escreve sobre ele será assim tão linear?
Mas quem é, afinal, Donald Trump? Com quase 80 anos de idade, Trump é um produto da elite nova iorquina, mais precisamente do bairro de Queens. Mas é também um W.A.S.P. (white anglo-saxon protestant), membro da mais exclusiva elite que desde o final do século XIX governa os EUA, que incluiu também os Kennedy ou os Bush, só para citar os mais conhecidos. Uma linhagem que inclui os Vanderbilts, Astors, Rockefellers, Du Ponts, Roosevelts, Forbes, Fords, Mellons, Whitneys, Morgans e Harrimans, mas que se alarga a outros apelidos e que dominava uma em cada cinco grandes empresas e um em cada três grandes bancos, segundo um estudo da Forbes da década de 1970.
O seu caráter quezilento e provocador ganhou-o no mercado imobiliário, onde desde 1968 comandou os destinos da Trump Management, seguindo as pisadas de seu pai e dominou o mercado de arrendamento barato na cidade de Nova Iorque. Apreciador de projetos megalómanos, primeiro em Manhattan e depois em Chicago, Nevada e Florida, Trump usou sempre a lei em seu favor, fruto do batalhão de advogados que com ele trabalhava. Hotéis, casinos, clubes centros comerciais e condomínios de luxo, muitas vezes de gosto duvidoso, foram quase sempre construídos com recurso a crédito bancário, muitas vezes usufruindo de redução aos impostos que deveria pagar. Com a Trump Organization, alargou o âmbito dos seus negócios aos transportes, desporto, media e até à Broadway. Empreendedor nato, nem sempre nos limites da ética, Trump cavalgava os negócios em múltiplas frentes, sempre com uma vontade férrea e uma liderança forte, por vezes até agressiva. Licenciou o seu nome para fins comerciais, usando-o em inúmeros produtos que vendia. Ciclismo, transportes urbanos, universidades e sobretudo os famosos concursos de beleza Miss Universo, Miss América e Miss América Jovem, fazia parte do seu portfolio de negócios. Em 1988 fundou a Fundação Trump, mais preocupado em captar doadores que em apoiar os necessitados. Até 2015 foi escritor, conferencista e estrela da TV, através dos bem sucedidos shows The Apprentice e The Celebrity Apprentice.
Em 1987 filiou-se no Partido Republicano, em 1999 no Partido Reformador e em 2001 no Partido Democrata. Em 2011 abandonou os republicanos, mas regressou em 2012. Começou então a preparar o caminho para a campanha presidencial de 2016, cuja intenção revelou em 2015. Em março de 2016 declarou-se candidato e em julho foi eleito como candidato do Partido Republicano em Cleveland, no Ohio. Escolheu como vice-presidente o governador do Indiana, Mike Pence.
Nas eleições presidenciais de novembro de 2016, Donald Trump candidatou-se contra Hillary Clinton, antiga Secretária de Estado de Barack Obama e esposa do ex-presidente Bill Clinton. Trump arrancou desde logo com a sua habitual truculência, assente em afirmações dúbias e com duplo sentido, recorrendo por vezes a informações falsas e/ou bombásticas e a tabus. Considerou a NATO como obsoleta, impôs a renegociação das relações com a China e dos acordos de comércio livre (como a NAFTA) e o cumprimento escrupuloso das leis de imigração. Muitas vezes incoerente, defendeu a independência energética ao mesmo tempo que negava as alterações climáticas, defendeu os serviços para veteranos de guerra ao mesmo tempo que atacava as leis da saúde de Obama. Defendeu a abolição dos standards na educação, o investimento em infraestruturas públicas a redução dos impostos e a simplificação do código fiscal e a imposição de tarifas sobre as importações por empresas que externalizam empregos. Defendeu o aumento dos gastos militares e proibição de imigrantes de países muçulmanos. Prometeu construir um muro na fronteira EUA – México, pago pelo México, restringir a circulação ilegal e prometeu que o México pagaria por isso. Prometeu deportar milhões de imigrantes ilegais que residem nos EUA, sobretudo os mexicanos, criticou a cidadania por direito de nascimento e fez apelos racistas aos eleitores brancos.
Apesar do complexo sistema eleitoral, Trump acabou por derrotar Hillary Clinton. Muitos dos comentadores políticos mundiais anunciaram de imediato o caos na América, esquecendo um fato por demais evidente: quem vota nas eleições americanas são os americanos, não os europeus. Para muitos americanos low & middle class, Trump é a personificação do sonho americano, alguém que saiu de baixo para triunfar sobre a elite política de Washington, personificada em Hillary. Trump era o empreendedor que não temia a derrota, antes a usava para recuperar as forças, o herdeiro dos pioneiros que povoaram o oeste profundo, o defensor dos valores morais americanos, a salvaguarda do mundo ocidental. Os seus oponentes eram ardilosos e poderosos, mas ele acabaria por vencer, à imagem do homem branco frente aos índios. Toda esta comunicação manipulada e fantasiosa foi uma das principais alavancas para a sua vitória. Ancorado em grandes canais de televisão nacional, como a Fox News, Trump era o desejado para recuperar o esplendor da América, para a fazer grande de novo. A sua votação foi uma surpresa, pois venceu em diversos Estados considerados bastiões democratas.
Após a sua tomada de posse, a 20 de janeiro de 2017, Trump rapidamente mostrou ao que vinha. Retirou os EUA dos Acordos de Paris para o ambiente e depreciou a pandemia covid-19, revogou leis relativas à saúde e ao emprego, combateu o consumo de drogas e a homossexualidade, o apoio público aos imigrantes e a luta dos negros após a morte de George Floyd, recuperou a pena de morte. A nível internacional, Trump apoiou Benjamim Nethanyau e a sua luta contra os palestinianos, a China pela sua supremacia comercial e a Rússia pela ocupação da Crimeia, revogou os tratados SALT sobre armas nucleares, fez da Coreia do Norte o seu inimigo maior. Combateu os chineses nos media, mas deu-lhes o Afeganistão numa bandeja de prata, através dos acordos de Doha em 2022. A sua política externa foi um desastre e os EUA perderam muita credibilidade junto dos outros países, a um nível sem precedentes. Abriu a porta ao génio maquiavélico de Steve Bannon, que muito contribuiu para o feroz crescimento da extrema direita europeia. Ajudou os ingleses a sair da União Europeia, para logo a seguir lhes tirar o tapete. Transformou a NATO num quintal americano e num instrumento de pressão para os membros europeus do tratado. Hostilizou a Venezuela para depois lhes comprar petróleo, o príncipe da Arábia Saudita para depois este se vingar através da OPEP, o presidente turco que lhe fechou a porta do Mediterrâneo oriental. Perdeu África para russos, chineses e por fim para os países árabes do Golfo, fomentando o terrorismo islâmico neste continente. Taiwan e a Gronelândia foram as suas anedotas mais bem sucedidas. No final até o seu vice-presidente o abandonou, terminando o seu mandato com o triste episódio da invasão do Capitólio, inédito na história norte-americana.
Mas, como diz o povo, atrás de mim virá quem de mim bem fará. Assim, preparado para ser um honroso derrotado, Joe Biden viu-se como presidente dos EUA no pior das suas faculdades, idoso e com sinais evidentes de senilidade. Foram quatro anos de revezes, que começaram em Cabul e só terminaram agora. A invasão russa na Ucrânia, em 2022, foi milimetricamente planeada pelo Pentágono, que provocou Putin a um tal nível que o levaram a cometer erros. Depois foi a entrada numa guerra irracional às mãos de dois loucos (Putin e Zelensky), com todas as possibilidades de paz eliminadas à partida por Boris Johnson e pelo secretário geral da NATO. Depois da euforia inicial, em muito devida ao Starlink de Elon Musk, foi o soçobrar das forças armadas ucranianas face ao poderio militar russo. Os EUA suportaram quase 80% do esforço de guerra, ao invés da Europa, mas este dinheiro serviu apelas para engordar a sua indústria de defesa. os russos não saíram nem irão sair da Ucrânia, mantendo com forte domínio o Luhansk, o Donetsk e a Crimeia praticamente toda. Na Europa, apenas as forças armadas polacas se reforçaram em peso, caindo todos os outros países a níveis nunca vistos. Em Israel, Nethanyau está de há muito entre o governo e a prisão, pelo que o poder das minorias supremacistas sionistas tem levado o país ao caos e a Faixa de Gaza ao inferno. Ao lado deste folhetim, Kamala Harris vivia num mundo à parte, não se envolvendo em nada. No final, o seu prémio foi ser candidata democrata, uma candidata fraca e sem apoios dentro e fora do partido, que soçobrou a um Trump afundado em escândalos de vária natureza.
Mas, como já disse atrás, nos EUA votam os americanos, não os europeus. Por isso Trump venceu sem problemas, pois os quatro anos de Biden foram tão maus que quase fizeram esquecer o desastre do primeiro mandato de Trump, que renasce das cinzas, como uma fénix fulgurosa e com o depósito cheio pelos milhões de Elon Musk. Silenciosamente, os chineses têm vindo a usar a Nova Rota da Seda para reforçar o seu domínio no Indo-Pacífico, em África, no Médio Oriente, na América do Sul e até na Europa, minada pela subida vertiginosa da extrema direita.
Como será o futuro? Destaco três pilares fundamentais na nova política externa dos EUA. Em primeiro lugar, a zona do Indo-Pacífico será, gradualmente, o centro das atenções. As alianças (Índia, Filipinas, outros países) estão já no terreno e a trabalhar em força, quer pela via diplomática quer pelos serviços secretos. Será um jogo de gato e rato, entre quem alinha pelos chineses ou pelos americanos. Novos conflitos se perspetivam no horizonte. Na Palestina, o reforço do poder dos sionistas será a moeda de troca para um ataque sem precedentes ao Irão. Perante o expectável benefício da dúvida por parte dos sauditas, esperemos para ver o que fará Erdogan ao ver a região a pegar fogo. Quanto à Europa, tudo será mais difícil, muito mais. Os EUA têm uma mala pata de há muito com a União Europeia e o euro, que tentaram destruir através do Brexit. Depois de uma liderança europeia inexistente durante o mandato de Biden, o foco norte-americanos aponta já noutra direção. Bastou ver quais os líderes políticos europeus que estiveram na tomada de posse de Trump. O dinheiro de Musk fará, aqui, o que a estratégia de Bannon não conseguiu fazer. De costas voltadas para a China e para os BRICS, com lideranças palacianas e sem vigor, a Europa irá decerto soçobrar aos movimentos de extrema direita, que país a país irão chegar ao poder para depois desmembrar a União Europeia. Temerosos de uma invasão russa que não irá acontecer, reféns da burocracia de Bruxelas que odeiam cada vez mais, os europeus vão-se voltar para o que é novo e diferente, mesmo que seja letal e repita históricas catástrofes. Como disse Piketty, “Nacionalismo e xenofobia são a resposta mais fácil diante das desigualdades”.