O culto das relíquias de mártires e de outras pessoas consideradas santas constitui, desde as primícias do Cristianismo, uma das fontes devocionais mais destacadas junto das comunidades que abraçaram fervorosamente a nova religião nascida no seio do império romano. Se com a Idade Média a sua circulação foi relevante (caso máximo, a catedral de Santiago de Compostela), é sobretudo com a Contra-Reforma católica e o incremento da distribuição de milhares de relíquias (autenticadas ou supostas) por todos os espaços da cristandade que a importância desse culto atingiu o seu áspide.

Pedra lavrada medieval com cruz envolta por correntes e cadeados (?), alusiva aos Mártires da Concórdia, no altar de Santa Luzia da igreja do Salvador de Torres Novas

As relíquias eram vistas como instrumento devocional de intercessão e, também, como prestígio. A sua presença num lugar de culto era sempre razão de orgulho de uma comunidade. Livros como a ‘Roma Sotterranea’ de Antonio Bosio (1632) convidavam os crentes a visitarem as catacumbas paleo-cristãs. Um pouco por todo o espaço europeu, e não só, se multiplicaram os lugares de peregrinação.

No caso português, todavia, o estudo das relíquias de santos, de que existem notícias e testemunhos em numerosas igrejas, capelas e mosteiros de todo o país, não foi ainda realizado com a devida atenção e, no que diz respeito ao Ribatejo, é mesmo inexistente ! Conhecem-se referências a conjuntos extensos de relíquias (no caso do Convento de Cristo de Tomar, do Colégio jesuítico de Santarém e do Hospital da Caridade no Sardoal, por exemplo), sem que algum levantamento mono-temático ou alguma análise monográfica tenham sido até agora levados a cabo sobre a sua origem, circulação e impacto. E, todavia, abundam os testemunhos escritos, tanto em crónicas monacais como em visitações de igrejas ou em inventários de casas religiosas, suficientes para que esse levantamento se desenvolva…

Um dos cultos de relíquias mais importantes situado no Ribatejo ocorreu em Torres Novas no início da quinta década do século XVII quando foram ocasionalmente achados por lavradores, no sítio da Beselga (aldeia pertencente hoje ao concelho de Tomar), ou no de Assentiz (concelho de Torres Novas), vestígios considerados sagrados: uma sepultura com uma cruz gravada e uma caixa contendo os ossos de três indivíduos acompanhados de grilhões junto aos quais um «escrito» permitiu que desde logo fossem atribuídos aos chamados «mártires da Concórdia».

Se o achado ocorreu em época mais antiga, não sabemos ao certo. O que se pode de certeza dizer é que se tratou de mais um culto utilizado pelo partido da Restauração, após 1640, para inflamar as populações do Reino contra o inimigo castelhano. Portugal estava a viver o tempo dramático das guerras da Restauração (1641-1668) e a verdade é que o culto dos Mártires de Concórdia foi habilmente utilizado pelos partidários da nova Dinastia dos Bragança em termos político-devocionais. O mesmo esforço dce inflamação dos espíritos se passaria com outros cultos de relíquias paleo-cristãs alegadamente achadas em território luso, bem como pela promoção de santos nacionais e, ainda, por acontecimentos de exaltação patriótica como o milagre de Nossa Senhora da Piedade de Santarém, a cuja intercessão se atribuíu a vitória portuguesa na batalha do Ameixial.

Facto histórico seguro é que, depois de várias vicissitudes, o conjunto das relíquias se transferiu para a igreja do Salvador de Torres Novas, após o visitador do Arcebispado de Lisboa, Padre João Morais Bocarro, prior de São Vicente do Paul, ter sido mandado investigar a veracidade dos achados. Os Lencastre, senhores de Aveiro e Torres Novas, abraçaram a causa e o culto dos Mártires de Concórdias, rezam as fontes, viveu então a sua fase de maior sucesso.

O testemunho do Padre Jorge Cardoso em 1657 é explícito a respeito do achado. Os «papéis» que se tinham encontrado, anos antes, a acompanhar essas relíquias, continham (segundo diz no ‘Agiológio Lusitano’) os seguintes dizeres: um, «Dos corpos que se acharam com algemas», e o outro «do corpo que se achou junto dos corpos com algemas». Mais assinala o padre Cardoso ser em «Beselga lugar no territorio de Thomar, fundado das ruínas de Concordia, antiga cidade da Lusitania, a commemoração dos sanctos Martyrcs Donato, Secundiano, & Romulo, os quaes (imperando Antonino) pela confissão da Fè Catholica com oitenta & seis companheiros sofrerão diuersos generos de tormentos, com os quaes se lhes fabricarão as gloriofas coroas de feu esclarecido martyrio do qual ainda hoje permanecem notaueis vestigios por aquella comarca».

Segundo rezava a tradição, citada não só no ‘Agiológio’ de Cardoso, como na ‘História Ecclesiastica’ (1642) de D. Rodrigo da Cunha e na ‘Benedictina Lusitana’ (1642) de Frei Leão de São Tomás, seguidos por outros autores, tratar-se-ia das relíquias dos mártires São Secundino e São Rómulo, companheiros de São Donato, todos três martirizados na cidade de Concórdia no ano de 145 d.C., reinando o Imperador Antonino. Outras fontes, em alternativa, remetem para o tempo de Galiano e para o ano de 264 d.C. como sendo o do martírio desses santos, sem haver base explícita e segura para o atestar. Os ossos achados e as correntes que os prendiam à hora do martírio no século III seriam, assim, testemunhos exemplares da sua fidelidade ao cristianismo e dignos, por isso, da maior veneração.

Alertada para o singular achado arqueológico, a própria Rainha D. Luísa de Gusmão (que seria regente após enviuvar de D. João IV) interveio na questão a fim de travar a dispersão de relíquias pelas igrejas da região, como se temia, e de tentar que elas viessem integralmente para a Sé Metropolitana de Lisboa. Nesta ocasião, também o Dr. João Lopes Raposo de Castanheda, corregedor do Concelho de Torres Novas, foi incumbido de investigar a origem dessas relíquias, tendo escrito a esse propósito uma Relação do Descobrimento dos Santos Mártires da Cidade de Concórdia, que dedicou ao Duque de Aveiro, senhor da vila. Por iniciativa das autoridades eclesiásticas, fizeram-se mais escavações no local, as quais permitiram descobrir outros vestígios. Consensualmente, decidiu-se ser o Salvador de Torres Novas o destino mais digno. A transferência das relíquias processou-se, dizem as fontes, com resistência e indignação dos povos de Beselga, que as reclamavam como suas.

As razões de declínio do culto destes mártires a partir do século XVIII são ainda misteriosas, mas o que é certo é que, dizem as fontes locais, ele foi esmorecendo, talvez porque as razões político-patrióticas que lhe deram explosão devocional, no âmbito do esforço de provar a ancianidade de Portugal face ao de Castela, se foram alterando após a lenta pacificação do Reino com D. Pedro II e D. João V, ou porque, após o alegado atentado dos Távoras e a subsequente repressão pombalina, a vila de Torres Novas deixasse abruptamente de ter a importância estratégica de outrora. Também os estragos causados pela passagem das tropas napoleónicas foram muito gravosos, existindo narrações de pilhagens que envolveram pratas e relicários. Entre as perdas de então, contam-se os furtos e, também, os muitos objectos litúrgicos mandados fundir para cobrir o imposto de guerra a que os invasores franceses obrigaram as populações…

Seja como for, certo é que as alegadas relíquias dos Mártires da Concórdia foram deixando de motivar culto local; não se registam movimentos de peregrinação, e o próprio relicário que continha as relíquias dos santos desapareceu (no final do século XIX ?) sem que tal gerasse especial indignação por parte dos torrejanos…

E tudo se mantinha assim, misteriosamente esquecido. Na belíssima igreja do Salvador, apenas uma pedra lavrada em tempos medievais com uma cruz e outros elementos iconográficos já antes interpretados como tetramorfos mas que melhor parecem correntes de prisioneiros (alegadamente, a mesma que se achara no século XVII nos campos arados entre Beselga e Assentiz pelos lavradores locais) sobrevivia como surdo testemunho isolado desses maravilhosos eventos.

… Ora a recente descoberta feita pelo senhor Padre António Vicente Calado Gaspar, pároco de Torres Novas, que foi encontrar as relíquias destes santos (ou, pelo menos, de parte dos ossos), entaipadas numa edícula ocasionalmente aberta durante obras realizadas na igreja do Salvador, só pode mesmo constituir uma grata surpresa. Dela se aguardam, agora, os resultados da imperativa análise técnica e laboratorial e científica aos achados, que se irá seguir. O valor histórico, arqueológico, osteológico, e na área do património religioso, que envolve esta descoberta, é de facto uma coisa rara e excepcional, que muito se saúda !

 

AGRADECIMENTOS: ao senhor Padre António Vicente Calado Gaspar, pároco de Torres Novas, que de novo se saúda pelo feliz achado, e ao historiador de arte Prof. Dr. Paulo Renato Ermitão Gregório, pela notícia a seu propósito.

Mais se recorda que existe um sítio arqueológico na freguesia da Madalena e Beselga, e que o topónimo de Santos Mártires perto de Apeadeiro de Curvaceiras, não pode deixar de estar relacionado com a tradição do achado.

 

BIBLIOGRAFIA: D. Rodrigo da CUNHA, Historia ecclesiastica da Igreja de Lisboa : vida e acçoens de seus prelados, e varões eminentes em santidade, que nella florecerão, Lisboa, 1642; Frei Leão de SÃO TOMÁS, Benedictina Lusitana, Lisboa, 1642; Padre Jorge CARDOSO, Agiologio lusitano dos sanctos, e varoens illustres em virtude do Reino de Portugal, e suas conquistas : consagrado aos gloriosos S. Vicente, e S. Antonio, insignes patronos desta inclyta cidade Lisboa e a seu illustre Cabido Sede Vacante / composto pelo licenciado George Cardoso, natural da mesma cidade, Em Lisboa, Officina Craesbeekiana, 1652, II, p. 453, e vol. III, p. 263; A.N.T.T., Dicionário Geográfico de Portugal, vol. 37, 1758, pp. 749-751; Artur GONÇALVES, Torrejanos Ilustres, Torres Novas, 1933, p. 147; IDEM, Mosaico Torrejano. Passado e Presente, Torres Novas, 1936, pp. 308-310; Joaquim R. BICHO, Património Artístico do Concelho de Torres Novas, Torres Novas, 1987 (ed. revista, 2001); Vítor SERRÃO, As igrejas do Salvador, Santiago e São Pedro de Torres Novas. Arquitetura e equipamentos artísticos, Torres Novas, 2012, pp. 68-71.

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