Existiram em Vale de Figueira, freguesia do concelho de Santarém, dois conventos de frades arrábidos dedicados a Santa Maria de Jesus. Ligados ambos ao ramo dos franciscanos arrábidos da Ordem dos Frades Menores, o mais antigo deve as suas primícias a uma das figuras mais notáveis (e mais mal estudadas) da Literatura portuguesa: o poeta D. Manuel de Portugal (c. 1520-1606), filho do primeiro conde de Vimioso, cunhado do poeta-pintor Jerónimo Corte-Real e amigo de Luís de Camões (que dele dizia, na sua Ode VII, ser merecedor de «glória imortal»).
Tal convento, implantado nos terrenos de uma quinta da família, e do qual foi primeiro custódio frei João de Águila, cedo se tornou, com o seu «deserto» dos frades, o cenário bucólico onde D. Manuel de Portugal recebia literatos e artistas numa espécie de Arcádia das artes e letras similar à que existia na próxima aldeia de Vaqueiros em torno de D. Gastão e D. Gonçalo Coutinho, também poetas e seus amigos. À sombra desse «doce exílio», que repetia no espaço da ruralidade ribatejana a grandiloquência dos saraus do próximo Paço Real de Almeirim (onde a poesia amorosa fazia sucesso), aí acolhia poetas como Diogo Bernardes, Frei Agostinho da Cruz e o próprio Camões. O recente livro que escrevi com Mário Rui Silvestre (saído em Edições Cosmos) e algumas pesquisas mais recentes permitem avançar com novos saberes a este respeito.
O entorno era, e continua a ser, admirável como património paisagístico. No século XVI, tal como hoje, impele a demoradas visitas: campos a perder de vista nas margens do Alviela e na confluência com o Tejo, com infindas matizes de cor, são fonte de inspiração constante para esta ambiência de desejado ‘locus amoenus’ de sabor renascentista… Nos versos de D Manuel de Portugal dedicados à sua amada D. Francisca de Aragão, tornam-se assim espaços de enlevo: « (…) por mais que a fértil cópia o campo vista, / por mais que em céu a terra ver se ofrece / e eu tão longamente em vê-lo ensista, / só em vos imaginar a alma esprace / em vossos olhos sós descansa a vista».
Nada resta hoje deste primeiro convento, para além das breves descrições cronísticas. Era imperativo, aliás, fazerem-se prospecções arqueológicas no terreno onde se erguia, sugestão que mais uma vez deixo proposto junto das tutelas.
O assunto da localização fica agora melhor esclarecido devido a um precioso documento inédito do Arquivo Distrital de Santarém, um contrato integrado nas notas do tabelião escalabitano Francisco Caiola Fragoso (Livro 3º do Arquivo Almeida, Ofº 1, fls. 68 vº a 70). Trata-se de um emprazamento feito por D. Álvaro de Portugal, fidalgo da casa real e cavaleiro da Ordem de Cristo, a sua mulher D. Mariana de Noronha, a respeito do convento que lhes pertencia em Vale de Figueira. A dado momento da escritura, refere-se «o mosteirinho velho que está no termo desta villa na freguesia de são domingos de val de figrª junto ao convento novo que ora he dos frades capuchinhos, o qual mostrº velho tem cazas, orta e pumar e terras de pão e está cercado de par, e da qual era serqua do dito mosteirinho em tempo que nelle rezidião os frades…», prosseguindo depois com as demarcações e limites de ambos.
Atesta-se assim, com absoluta certeza, o lugar exacto do primeiro convento de Vale de Figueira, mudado de lugar, refundado e ampliado em terreno contíguo pelo filho do poeta, D. Henrique de Portugal (1548-1625), à volta de 1620, tornando-se seu padroeiro perpétuo. Esta personagem era filho varão de D. Manuel de Portugal e D. Maria de Vilhena (os quais tiveram outro filho, D. João, desaparecido em Alcácer Quibir e celebrizado como o Romeiro do poema ‘Frei Luís de Sousa’ de Almeida Garrett).
Já do segundo convento ainda restam diluídas paredes, incluindo parte do presbitério da igreja e, na cerca, uma fenestra moldurada onde, segundo a tradição, os frades esmolavam. Descaracterizado por construções hodiernas, era também um espaço merecedor de prospecção arqueológica. Foi um cenóbio importante do ramo dos arrábidos, a crer no que ainda subsiste de recheio, transferido para a igreja matriz de Vale de Figueira (caso de duas excelentes telas do pintor lisboeta André Reinoso de cerca de 1630, estudadas na monografia do padre Tiago Moita, e que são duas das obras de arte sobreviventes do cenóbio). Sabe-se que os ossos de D. Henrique de Portugal, sua mulher D. Ana de Ataíde e demais descendentes, foram trasladados para a mesma igreja em 30 de Dezembro de 1861, com lápide comemorativa, hoje na sacristia.
A figura de D. Manuel, convicto apoiante de D. António, Prior do Crato, e poeta dividido entre as mundanidades da corte e a contemplação mística, encontrou no projecto do seu convento de Vale de Figueira algum conforto para os conflitos por que passava, sobretudo após 1580, quando foi dos poucos antonistas a não beneficiar (por recusa própria) do «perdão geral» oferecido por Filipe II aos seus opositores após se tornar monarca do «Reino tomado, herdado e conquistado». O convento (bem estudado pelas investigações de José Gaspar) foi, assim, um espaço de recolhimento do idoso poeta-político, que nas suas ‘Obras de D. Manuel de Portugal’ dedica o poema da Viagem de Amôncio a traçar uma maravilhosa maravilhosa de recorte clássico que se assume uma espécie de síntese de vida, onde se inclui como Arsénio (Ars Senior, o mais sabedor dos homens) e onde homenageia Camões na figura de Amôncio, anagrama do vate… Poder-se-á pensar que neste grande livro de poemas publicado um ano antes da morte (por Pedro Craesbeeck, 1605), e bem estudado por Luís Fardilha, estaremos face a uma situação de discipulato ou legado intelectual entre o próprio D. Manuel de Portugal (Arsénio) e Luís de Camões (Amôncio) como espécie de última homenagem ao vate vinte e cinco anos após a sua morte. E, na verdade, o poema está pleno de alusões pictóricas e de referenciais camonianos, seguindo os passos de Amôncio, que deixa as águas do Tejo e viaja por mares e mundos subaquáticos, guiado pela Sabedoria Divina, numa espécie de auto-descobrimento dantesco…
Em recente visita a estes sítios maravilhosos com os amigos José Gaspar e António Monteiro, com olhos e ouvidos postos na poesia de D. Manuel de Portugal, seguimos a mesma senda renascentista de antanho, auscultando as ruínas da Torre do Bugio, os vestígios arqueológicos do Casal dos Gagos e da Quinta dos Arcos, os vestígios do solar do inquisidor D. Pedro de Castilho, a beleza inóspita do Miradouro dos Avieiros e, enfim, a misteriosa Sala Subterrânea dos Frades Bentos, cujo significado persiste por apurar. Traços de um clima arcádico por excelência, que urge dar a conhecer, estudar e revalorizar através de uma Rota Turístico-Cultural adequada às mais-valias que tanto enriquecem esta freguesia santarena… Sentimo-los como lugares da mesma expressão encantatória de Amôncio face às histórias do argonauta Jonas na imaginada gruta descrita por D. Manuel: «Los ojos de la pintura y el dulce son / Atento me ocupaba, y su razón… / Com tan vivo artificio y tal destreza / Com tanta perfección, industria y arte»…
É sempre o bucolismo, a veia amorosa, a extrapolação espiritual e o amor pátrio que prevalecem na poesia de D. Manuel de Portugal. Que fragrância de palavras e eflúvios em ritmo de águas ternas se sentem em alguns sonetos: parecem Camões, parece a ninfa Eco em bosques imaginados, parece Apeles na mais perfeita das pinturas ! Veja-se, por exemplo, este soneto de amor em contexto do Alviela: «Por mais que o brando rio ante a espessura / ora se deixe ver, ora se esconda, / e nos vales fengidos que responda / pareça eco Apeles na pintura; / e por mais que toda criatura / natureza aos olhos corresponda, / ou na terra esmaltada, ou mar sem onda / variando encareça a fermosura; / das flores e verdura que aparece / por mais que a fértil cópia o campo vista, / por mais que em céu a terra ver se ofrece / e eu tão longamente em vê-lo ensista, / só em vos imaginar a alma esparce, / em vossos olhos sós descansa a vista».
BIBLIOGRAFIA: Carlos Ascenso ANDRÉ, A dimensão visual da épica camoniana, sep. das Actas da IV Reunião Internacional de Camonianos, Ponta Delgada, 1984Landeg WHITE e Hélio ALVES, Poetas que não eram Camões, Lisboa, 2008, pp. 58-79; Luís FARDILHA, Uma ‘Arcádia’ Sacra: As Obras de D. Manuel de Portugal (1605), ‘Via Spiritus’, nº 13, 2006, pp. 45-57; Isabel ALMEIDA, As Obras de D. Manoel de Portugal: um cancioneiro ao divino, in Vicenç Beltrán e Juan Paredes (ed.), Convivio. Estudios sobre la poesía de cancioneiro, Editorial Universidad de Granada, 2006, pp. 31-53; Tiago MOITA, A Igreja de São Domingos de Vale de Figueira (série Santarém – História e Património), Santarém, 2019; José GASPAR, Convento dos Frades Arrábidos de Vale de Figueira 1556-1834, Santarém, 2020; Vítor SERRÃO e Mário Rui SILVESTRE, Camões: Altos Cumes, Scabelicastro e Correlatos, Edições Cosmos, 2024; e Vítor SERRÃO, O poeta D. Manuel de Portugal, a saga de Amôncio (Camões) e o convento dos arrábidos de Vale Figueira, in Correia do Ribatejo de 13 de Dezembro de 2024.

