Na igreja do antigo mosteiro franciscano de Nossa Senhora de Jesus do Sítio (hoje, igreja do Hospital de Jesus Cristo, integrada na Santa Casa da Misericórdia de Santarém) encontram-se dois altares oriundos do antigo coro baixo de Santa Clara. Foram aí colocados aquando das infelizes obras de intervenção ‘purista’ promovidas pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais nos anos 40 do século passado nessa secular casa religiosa, obras essas que desapossaram a igreja clarissa de imensos bens artísticos, malogradamente perdidos.
Num desses altares, datado da segunda metade do século XVIII, admiram-se várias pinturas que nele se integraram sem critério, quatro delas ainda do século XVI e uma outra já setecentista. É esta última tela que merece agora a nossa atenção, por duas razões. Em primeiro lugar, é obra do famoso pintor Luís Gonçalves Sena (1713-1790), glória das artes locais nos reinados de D. João V e de D. José I e que mereceu ser chamado pelos contemporâneos o ‘Apeles Santareno’. Só por si, a autoria justifica maior atenção, mesmo que se trate de trabalho algo discreto e convencional. Em segundo lugar, o tema iconográfico é menos comum, pela inspiração livre com que o artista adaptou o texto vetero-testamentário: o que se representa é ‘O Arcanjo Rafael, como Anjo da Guarda, conduzindo o menino Tobias na estrada da redenção’.
O pintor inspirou-se no Livro de Tobias, um texto do Velho Testamento com catorze capítulos e duzentos e noventa e sete versículos. É um texto sapiencial que faz parte, como se sabe, dos chamados livros deuteronómicos, colocado entre os livros de Neemias e de Judith. Aí se narra a singular aventura de Tobias, jovem filho do judeu deportado Tobit, morador em Ninive (antiga cidade da Mesopotâmia, cujas ruínas se vêem hoje junto à cidade iraquiana de Mossul). O pai, um justo a quem Deus pôs duramente à prova, privando-o da vista, encarregou o jovem de empreender uma longa e perigosa viagem à Terra dos Medos a fim de resgatar certa dívida em terras distantes. Nessa viagem, em que foi constantemente perseguido pelo demónio Asmodeus, Tobias recebeu a companhia de um desconhecido, o Arcanjo Rafael, enviado de Deus para sua protecção. A dado momento, entre muitas outras peripécias (incluindo a do seu noivado com Sara), Tobias pescou nas margens do rio Eufrates o peixe miraculoso cuja pele defumada derrotaria Asmodeus e cujas vísceras iriam, no regresso a Ninive, devolver a vista a seu pai. Por tudo isto, o texto bíblico dedicado a Tobias foi sempre entendido como uma manifestação impoluta do amor filial.
O livro, escrito no século III a.C., ao que parece na decorrência das conquistas de Alexandre o Grande das terras da Mesopotâmia e da dominação helenista que ameaçava a identidade das comunidades judaicas aí instaladas após o êxodo do Egipto, é justamente uma afirmação identitária deste povo. Apesar disso, se muito mais tarde os cristãos reunidos no Concílio de Cartago, em 397 d.C., consideraram este livro entre os canónicos da Bíblia, ele já não integrou a Tanakh (a Bíblia hebraica), ainda que seja muito considerado na história de Israel como matéria devocional nas sinagogas.
Mais tarde, a Igreja católica reconfigurará a história maravilhosa de Tobias diluindo-a na figura do Anjo da Guarda, personagem que com a Contra-Reforma vai adquirir um especial sentido devocional ao incorporar a crença de que todos os mortais têm o seu próprio anjo mediador e protector. Assim, o culto dos Santos Anjos da Guarda vai revestir-se de especial relevância, após o Concílio de Trento, com o Papa Paulo V, durante os séculos da Idade Moderna.
Terá sido por isso, em fidelidade ao peso doutrinário contra-reformista, que o pintor Luís Gonçalves Sena, em data próxima a 1750-1760, simplificou imenso a história vetero-testamentária acima descrita, e transformou o quadro que as freiras de Santa Clara lhe haviam encomendado num mero exercício de propaganda tridentina. Adequou-o, por certo, ao directo sentido imagético desejado pelas monjas em prol da fé a partir da oração individual. Assim, o pintor apenas representou na tela (hoje na igreja do Hospital) as duas figuras de Tobias, criança, e o Anjo que o guia, ambas integradas numa singela paisagem descarnada. Nem o cão que na narração bíblica acompanha o Arcanjo e acentua o sentido fraternal da cena aparece na pintura. À direita, vemos o Anjo que conduz pela mão o menino na senda da salvação. Ao contrário do que lemos no texto bíblico, a figura do herói Tobias é aqui uma criança, e não um adolescente, e o Anjo, de rosto sereno e túnica vermelho-alaranjada, não tem nenhum dos atributos normais que identificam os sete Arcanjos bíblicos (embora ostente cáligas nas pernas, tal como os anjos-guerreiros apocalípticos que surgem na Bíblia, sobretudo no Velho Testamento).
A história de encantar do texto vetero-testamentária, uma maravilhosa saga de aventuras, deu lugar na tela do Sena a um mero discurso didascálico de propaganda católica, em que o Arcanjo São Rafael se transforma em Anjo da Guarda para melhor proteger um menino de tenra idade, e em que a atribulada viagem de Tobias à Terra dos Medos dá lugar, tão-só, a uma metáfora sobre o caminho da rectidão que conduz as almas justas a bom porto. A criança parece olhar para o plano terreno, enquanto o anjo, com olhar em mística mirada, lhe indica a intensa luz sobrenatural que irrompe no cimo à direita e assinala a via da salvação no plano divino – um discurso directo, fácil, sem ocultos subterfúgios, adequado à devoção das monjas. É, sem dúvida, um quadro destinado à oração individual e à devoção directa e que não aspira a mais altos vôos artísticos…
Embora a tela de Luís Gonçalves Sena não seja, obviamente, um dos seus trabalhos artísticos mais apurados (quando a comparamos, por exemplo, com as telas e frescos da sacristia da igreja da Misericórdia, de 1747-1748, ou com o belíssimo tecto de perspectiva da capela-mor da igreja dos jesuítas, hoje Catedral de Santarém, de 1754), ela tem especial valia tanto pela reformulação do temário como pela iconografia. Na verdade, o tema de Tobias está praticamente ausente na arte sacra na Diocese de Santarém, tanto na escultura como na pintura. Apenas recordo que, dois séculos antes do Sena, o famoso tratadista Francisco de Holanda (1517-1585) desenhou o achamento miraculoso do peixe por Tobias nas águas do Eufrates (inspirado numa gravura flamenga de Dirk Coornhert) num dos fólios do seu famoso álbum ‘De Aetatibus Mundi Imagines’ (1545-1573), começado a compor nos meses passados em Santarém depois de regressar de Roma. Mas esses eram outros tempos, em que o Humanismo da Renascença ainda imperava…
A terminar, formulo o convite para que todos visitem a igreja do Hospital de Jesus Cristo (assim reabra ao público findas as obras em curso) pois nela existe muita matéria artística digna de contemplação e estudo. Há mais patrimónios a ver, além do tesouro barroco de talha, azulejo e pintura da Capela Dourada, da grande tela de Diogo Teixeira (1603) no altar-mor, dos frescos em perspectiva arquitectónica de António Simões Ribeiro (1723) no subcoro, ou das exóticas ‘chinoiseries’ de uma das capelas laterais…
Enfim, desejo dedicar esta crónica a João Tobias Madeira Lopes, que andava mesmo esquecido desta história bíblica, acima contada, a qual deu origem ao seu bonito nome próprio! Aqui lha lembro, com um fraterno abraço de amizade e camaradagem.