O Padrão de Santa Iria, num desenho de Santarém do fim do século XVII (col. particular).

A igreja de Santa Maria de Casével, sede de antiga freguesia rural do termo de Santarém e de há muito integrada no seu Concelho, é um bom espécime de arquitectura sacra do século XVI, com características vernáculas de construção, seguindo os cânones do ‘estilo chão’, com testemunhos dessa época, caso do alpendre, da pia de baptismo ornada de lavores renascentistas e ostentando o escudo dos Coutinho, e da lápide sepulcral brasonada de D. Gastão Coutinho, benfeitor da igreja, que nela foi enterrado em 1533.     

Este D. Gastão Coutinho, filho de D. Gonçalo Coutinho, conde de Marialva, foi comendador de Casével e pai de um filho homónimo, comendador de Vaqueiros, que teve relações de amizade com Luís de Camões e que jaz nessa igreja em campa brasonada com data de 1579. A ele se deve a encomenda da pia baptismal e outras benfeitorias operadas na igreja matriz de Casével, sendo de presumir (como propôs Gustavo de Matos Sequeira) que fosse sua a interessante casa solarenga de prospecto quinhentista, com colunata alpendrada (a que a tradição chama, erroneamente, «casa da Câmara»), que se situa no centro da povoação.

Sabemos, entretanto, que o templo era muito mais antigo. Os elementos documentais conhecidos referem-nos uma leprosaria, no final do século XIII, e a existência de uma igreja medieval sedeada neste sítio já em 1320, sendo então registada como um dos templos mais altamente taxados da região e que seria integrado, em 1443, na Ordem de Cristo, recebendo por esse facto uma série de privilégios. Se nada remanesce já da igreja em épocas tão recuadas, é de registar que uma campanha arqueológica (2006) no adro da igreja permitiu recolher uma série de estelas sepulcrais respeitantes a mais de uma centena de túmulos medievais escavados na rocha, bem como fragmentos de duas esculturas pétreas de santos, da fase gótica, várias moedas do reinado de Afonso V e, ainda, motivos de adorno em cobre, junto aos habituais elementos osteológicos (e, ainda, a restos de cerâmica e de azulejaria azul e amarela seiscentista, em achados de entulho). A marca de medievalidade da matriz de Casével restringe-se, pois, a tais elementos esparsos e díspares, mas suficientemente relevantes para lhe atestar uma ancianidade que remonta, no mínimo, ao século XIII.

Elogio de Scabelicastro e de Santa Iria, pelo poeta Manuel Tomás em 1635.

Já do século XVI, guarda a igreja outros testemunhos de interesse, que atestam a presença mecenática do referido D. Gastão Coutinho e dos demais nobres Coutinho, senhores de Casével e Vaqueiros, que foram seus benfeitores. Tal é o caso da pintura do ‘Calvário’ aqui tratada, que pode ter integrado na sua origem o antigo retábulo-mor do templo. Trata-se de pintura maneirista a óleo sobre tábua (madeira de carvalho, medindo 1435 x 1345 mm), que representa, dentro da iconografia tradicional, Cristo vivo na cruz entre a Virgem Maria e São João Evangelista, com uma chorosa Santa Maria Madalena aos pés do lenho e, ao longe, o trecho da cidade de Jerusalém entre brumas. Data de fim do século XVI ou já das primícias do século XVII. 

A pintura estava grosseiramente repintada (o que dificultou a sua identificação e revalorização) e foi alvo de um profundo restauro patrocinado pela Diocese de Santarém, em 2014, a cargo da empresa Nova Conservação, que devolveu a peça à sua integridade original e chegou a expô-la, temporariamente, no Museu Diocesano. O levantamento dos repintes não confirmou, porém, uma pintura de especial qualidade plástica, antes a presença de mais um exemplo normativo de uma vasta produção imagética seriada com intuitos pedagógicos, como tantas outras peças da mesma bitola e época… Na análise reflectográfica detectaram-se alguns ‘arrependimentos’ curiosos, caso do facto de São João ter sido debuxado com sandálias que, todavia, foram abandonadas na fase da de execução da tábua…

Trata-se, portanto, de pintura de segundo plano, devida provavelmente a oficina santarena ou torrejana seguidora dos modelos didascálicos que a Contra-Reforma católica recomendava a fim de tornar as ‘imagens sacras’ veículos de propaganda apelativas para o culto e aptas a sensibilizar as populações. A própria figura da Virgem de pé, como Stabat Mater, ou seja, a Mãe de Deus que não expressa visíveis sinais de desespero face ao Calvário de Jesus, corresponde a uma das exigências conciliares de Trento, que impôs aos artistas o abandono de representações de Maria como mãe que se deixa abandonar ao choro convulsivo (existem vários casos de pinturas mandadas cobrir com repintes por terem essa representação, considerada doutrinariamente incorrecta)… 

A execução deste quadro de Casével, todavia, é grosseira na modelação e no desenho, mostrando um artista de fracos recursos, inspirado em gravuras maneiristas flamengas ou italianas do século XVI (no caso, talvez as de Hieronyimus Wierix ou de Cornelis Cort, mas em versões muito simplificadas). Não deverá ser obra nem de André de Morales nem de Manuel Lampreia Mata, pintores de Santarém com obra conhecida, nem de Gaspar Soares ou Pedro Vieira, pintores de Torres Novas, mas sim de algum modesto artista ainda anónimo que actuava na região cerca de 1600 e que conhecia esses modelos e fontes de inspiração (no caso de Luís Álvares Montês ou Estácio Soares, nomes que surgem na documentação como douradores, ou ainda de Jorge Barreto, falecido de peste na viragem dos séculos). 

A falta de referências arquivísticas concretas sobre obras na igreja de Casével impede que se possa saber mais alguma coisa sobre um quadro que é interessante testemunho de época mas que, como obra de arte, não ansiou mais que o cumprimento estrito de uma iconografia convencional. Maior relevo terá a questão da encomenda, caso se trata de peça custeada por D. Gonçalo Coutinho (1564-1642), senhor de Vaqueiros e Casével, que foi poeta de mérito, homem de letras, político, diplomata e, sobretudo, referência presente com grande visibilidade nos estudos camonianos, já que esteve desde tenra idade ligado alo vate por mão de seu pai D. Gastão Coutinho. 

Basta lembrar-se o facto, amplamente reconhecido, de que foi ele o primeiro mecenas na morte de Luís Vaz de Camões, pois quis preservar a sua memória fazendo publicar em 1595 (e de novo, em segunda edição, em 1598) o manuscrito das Rimas, que o vate lhe deixou entre as suas últimas vontades. Bem assim, D. Gonçalo mandou pintar o retrato póstumo do poeta (um quadrinho que pertenceu depois à colecção Júlio de Castilho e à do Prof. A. A. Gonçalves Rodrigues) e ordenou, ainda, que se colocasse uma lápide-memória junto à sepultura de Camões à entrada da igreja de Sant’Ana em Lisboa, onde à grandeza do poeta quis acrescentar o facto para muitos escandaloso (e, por isso, depois censurado…) de ter falecido na indigência. 

Nada mais se conhece sobre mecenato patrocinado por D. Gonçalo Coutinho, a partir das informações dadas por uma centena de cartas suas, ainda inéditas, e que seja esclarecedor sobre obras sacras (salvo o que respeita às que custeou na igreja de Vaqueiros e aos azulejos polícromos aí colocados). Se tiver sido ele o responsável pela encomenda retabular da igreja de Santa Maria de Casével, trata-se de questão que confere à pintura do ‘Calvário’ uma maior importância.

A igreja em causa tem outros motivos artísticos de interesse, tanto de imaginária como de pintura, caso de duas portas de oratório setecentista atribuíveis a Luís Gonçalves Sena, o ‘Apeles Santareno’. Mas essa é outra história…

 

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