Martírio de Santo Erasmo, em xilogravura do início do século XVI, e em tela de Nicolas Poussin, 1628, Museu do Vaticano

Santo Erasmo de Fórmia, cujo culto é entre nós residual, é um dos catorze santos auxiliares do lendário martirológio cristão. Considerado patrono dos marinheiros, é invocado também em casos de epidemias, de dores de parto e, ainda, de doenças intestinais. Tal se deve ao facto de, segundo as fontes, o seu martírio ter sido especialmente horroroso por lhe terem sido arrancados os intestinos, enrolados em novelo numa máquina de tortura. 

Ao contrário do reino animal, os homens sempre foram particularmente requintados no seu talento de infligir dor aos mais débeis – a História é feita de páginas de crueza que, longe de minguarem, continuam a multiplicar-se sem aparente remissão. A saga de Santo Erasmo é prova concludente desse irresolúvel conflito entre fraternidade e barbárie. Os martirológios primevos (caso do ‘Passio’, do século VI, do ‘Martirologio Geronimiano’, do ‘Calendário de Aspreno de Nápoles’ e, mais tarde, da ‘Lenda Áurea’ de Jacopo de Varazze) narram a sua vida atribulada e heróica, acentuando a sua coragem face à tortura. 

Martírio de Santo Erasmo, em xilogravura do início do século XVI,
e em tela de Nicolas Poussin, 1628, Museu do Vaticano

O santo bispo de Fórmia (que tem festa a 2 de Junho) foi vítima das perseguições aos cristãos desde o tempo do imperador Diocleciano, e passou de Antioquia ao Monte Líbano onde integrou os núcleos de refugiados, sendo preso pelas tropas romanas e logo liberto por intercessão de um anjo que o levou para a Dalmácia, onde teria convertido milhares de fiéis. A vida aventurosa continua na sua aura lendária: daí se transferiu para Fórmia, cidade no sul de Itália, tornando-se bispo da comunidade cristã local, sendo-lhe atribuídos milagres que o popularizaram em regiões como o Lácio e na Campânia. Foi de novo detido, reinando já Maximiano, e desta vez foi interrogado pelo próprio imperador e posto a tormentos, ao qual resistiu, recusando-se abjurar da sua fé, uma violência que o levou à morte no ano de 303 d.C. 

A morte de Santo Erasmo, que mereceu a grandes pintores, como Dirk Bouts (de 1458, igreja de São Pedro de Lovaina) e Nicolas Poussin (de 1628, na Pinacoteca Vaticana), algumas representações célebres, bem como em xilogravuras hagiográficas nos séculos XV e XVI, foi especialmente cruel: os carrascos abriram-lhe o ventre, arrancando e fazendo enrolar os intestinos em novelo sangrento numa roda metálica… Assim surge pintado nas referidas pinturas, que seguem a narração precisa da ‘Legenda Áurea’ de Jacques de Varazze, segundo a qual o imperador, exasperado pela firmeza de fé de Erasmo, ordenou que fosse amarrado a uma mesa no Templo de Júpiter e que se lhe extraíssem os intestinos com uma roda como exemplo para todos os cristãos. É especialmente realista na descrição desse horror a que Santo Erasmo foi submetido a pintura do altar Faella em Santa Anastacia de Verona, obra do pintor Niccolò Giolfino (1476-1555).

Tal prova de abnegação pela fé e de redenção pelo martírio devia justificar maior expressão cultual de Santo Erasmo, mas a verdade é que se trata de um culto que com a Contra-Reforma católica se tornou residual, talvez pelo facto de o nome do santo coincidir com o do célebre humanista de Roterdão cujas obras caíram no Índex do Santo Ofício (num outro estudo, referi já o caso de um pintor de Coimbra chamado Bernardo Manuel que em 1558 teve a desdita de chamar Erasmo a um dos seus filhos e que, por essa e outras razões, esteve sob vigilância da Inquisição…).  

É o momento de se falar de um pintor activo no século XVII em Santarém e que produziu uma tela com o ‘Martírio de Santo Erasmo’, ainda que com particularidades que acentuavam o carácter horrífico da cena, pois o artista lhe acrescentou uma miríade de demónios ao invés das figuras dos carrascos romanos ! Chamava-se António Rodrigues. Entre 1668 e 1671, pelo menos, esse pintor e dourador viveu e trabalhou em Santarém. Era algarvio, natural de Alte (Albufeira), onde nasceu à volta de 1625, e aqui pintou e policromou altares, imagens e outras peças litúrgicas, aparecendo referido em alguma documentação notarial e nas contas da Misericórdia santarena. Sabemo-lo de origens judaicas (tinha ‘um quarto de cristã-novo’) e era, por isso, olhado com desconfiança, tendo sido alvo de denúncias por pretensos desvios heterodoxos. 

Assinatura do pintor-dourador António Rodrigues em Santarém em 1671

Numa sociedade contra-reformista tão vigilante na defesa das suas crenças instituídas como dogma, e tão dominada pelos cânones tridentinos e a prática de exclusão das minorias, Rodrigues sofreu pelo menos dois processos inquisitoriais, um deles no Santo Ofício de Évora, outro no de Lisboa, anteriores à sua tardia radicação na vila de Santarém. Denúncias anónimas bastavam, nesse tempo, para que um cripto-judeu fosse acusado de judaísmo ou de outras práticas desviantes e, por isso, alvo de repressão inquisitorial, com sua família… Assim, saíu a 11 de Maio de 1664 no auto-de-fé realizado em Évora, sendo ‘reconciliado na santa fé’, e de novo desfilou, a 11 de Março de 1668, no auto realizado em Lisboa no Terreiro do Paço (tendo então quarenta e três anos), sendo condenado a hábito perpétuo de que, parece, depois se livrou. Sua mulher Luísa Correia, também natural de Alte, saíu em auto-de-fé em Évora a 21 de Junho de 1671, com pena de cárcere a arbítrio. Uma família muito reprimida pela Inquisição, como se vê… 

Em 1659, este António Rodrigues estava em Lisboa, morador a Alfama, e pintara justamente um quadro que representava o ’Martírio de Santo Erasmo’. O problema maior, que gerou escândalo, é que o painel mostrava o santo a ser torturado pelas rodas metálicas que lhe enrolavam os intestinos, sendo aquelas manipuladas por figuras de diabos ao invés de soldados romanos ! Logo esse quadro suscitou denúncias, por se julgar poder estar ligado a qualquer prática de feitiçaria, e a Inquisição mandou apreendê-lo e admoestou o pintor, que foi ouvido, meses volvidos (1660), no Palácio dos Estaus. A fim de afastar suspeitas sobre a sua pessoa, Rodrigues declarou aos agentes da Inquisição que pintara essa tela a mando de uma mulher que desconfiava fosse bruxa, o que o levara a arrepender-se de assim ter representado a cena. E, mais, confessou ter suspeitas de que a finalidade da encomenda teria a ver com algum ritual demoníaco a que a mulher se dedicaria… Os pormenores da denúncia, num dos Cadernos do Promotor de Lisboa onde se registavam denúncias de todo o género, tem pormenores muito interessantes mas que, sem dúvida, nos apertam o coração. Por essa vez, só foi presa a mulher denunciada que tinha encomendado a tela, e o pintor julgou ver afastadas as suspeitas que contra si pendiam. Já o polémico quadro, por seu turno, foi mandado destruir pelos zelosos inquisidores ! Eram tempos de grande repressão e contrôle das liberdades, como este caso vem, mais uma vez, atestar.

Existiu um pintor do mesmo nome, também morador em Santarém, no fim do século XVII, que dourou diversas obras na igreja da Misericórdia escalabitana, e que em 1688 veio à vila de Torres Novas dourar e o retábulo-mor e sacrário da igreja do Salvador por contrato estabelecido em 15 de Agosto desse ano e por preço de 650.000 rs (obra do entalhador Manuel da Silva Monteiro, ainda existente). Em 1699, era mesário de 2ª condição da Santa Casa da Misericórdia de Santarém e ainda surge em 23 de Julho de 1704 num contrato notarial de venda de casas na vila. Não é certamente o mesmo pintor, dada a cronologia avançada, mas um homónimo; nem a ficha negra do algarvio permitiria a sua ascensão a mesário de uma Misericórdia… O infeliz António Rodrigues que pintara o Santo Erasmo, esse, não voltou as Santarém e morreu em Évora em 1675, diz-nos Túlio Espanca, na sequência do processo inquisitorial que em 1671 reprimira a sua mulher. São notas em que o discurso das artes e as tragédia da intolerância se cruzam.

Niccolò Giolfi no , pormenor com
martírio de Santo Erasmo, no altar Faella
na igreja de Santa Anastacia de Verona.
Meado do século XVI.

Notas: B.N.P., Reservados, Cód. 863 – Lista de autos-de-fé…, fl. 237; Francisco Marques de SOUSA VITERBO, Noticia de alguns pintores portuguezes e de outros que, sendo estrangeiros, exerceram o seu ofício em Portugal, 2ª série, Lisboa, 1907, pp. 66-69; Túlio ESPANCA, ‘Notas sobre pintores em Évora nos séculos XVI e XVII’, in A Cidade de Évora, nºs 13-1\4, 1947; Vítor SERRÃO, ‘Sobre a pintura maneirista de Santarém, 1553-1633’, in Santarém – A Cidade e os Homens, 1977, refª pp. 126-127; idem, As igrejas do Salvador, de São Tiago e de São Pedro em Torres Novas. Arquitetura e equipamento artístico, ed. Paróquia de Torres Novas e QREN, 2012, pp. 163-164; Arquivo da Misericórdia de Santarém, Lºs de Receita e Despesa da Misª de 1679-80, fls. 116-117, 1695-96, fl. 214, e 1696-97, fl. 237 vº; e A.D.S., Lº 122 de Notas de Domingos de Moura de Matos, fls. 190 vº a 192; e 16 de Notas de Miguel Andrade Ferreira (3º Ofº), 1704, fls. 32 vº a 34vº.

 

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