A igreja matriz do Cartaxo, dedicada a São João Baptista, é um dos monumentos sacros da Diocese de Santarém mais dignos de especial destaque pelo facto de lhe pertencer o famoso Cruzeiro gótico-manuelino visível no exterior, ladeando a fachada. Trata-se de peça de fina escultura do início do século XVI, desde 1910 classificada como Monumento Nacional e que mostra, quer no ritmo torso do fuste, quer na cabeça oitavada, e no remate, decorado nas faces com o Calvário, a Virgem Maria, e Anjos turiferários, de muito bom lavor pétreo. Para Gustavo de Matos Sequeira, no ‘Inventário Artístico de Portugal’ (III, Distrito de Santarém, 1949, p. 23), trata-se de «magnífico exemplar da época», que só por si justifica visita demorada ao templo.

A igreja já existia no século XV (em 1437, o padroado pertencia às freiras comendadeiras espatárias de Santos-o-Velho), estando anexada então à paróquia de Aveiras de Baixo), mas no início do século XVI sofreu grandes obras e passou a integrar o Padroado Real, sendo sagrada em 1522 (segundo lápide embebida na fachada) pelo bispo D. Ambrósio. Todavia, já nada resta hoje, nem da época medieval, nem da sua estrutura quinhentista, salvo a bem lançada abóbada artesonada da primeira capela lateral da banda da Epístola, que data do primeiro terço do século XVI.

O templo guarda ainda um acervo artístico merecedor de atenção, sendo especialmente rico em testemunhos do século XVIII que documentam uma forte campanha de renovação barroca-joanina, da qual sobressaem o retábulo da capela-mor, de boa talha, ainda anónima, assim como os belos azulejos lisboetas do chamado Ciclo dos Grandes Mestre, com cenas da vida de São João Baptista, o Precursor (c. 1730) e, bem assim, as quatro telas do presbitério, já atribuídas sem certeza ao pintor santareno Luís Gonçalves Sena.

Existem outras peças oriundas de outros lugares. Da igreja do antigo convento franciscano do Espírito Santo do Cartaxo vieram uma cadeira de prelado, seiscentista, com brasão franciscano inscrito no espaldar de couro, e duas tábuas do pintor André de Morales (1617), artista com oficina em Santarém, que representam São Benedito de Palermo e São Brás. Da capela do Senhor dos Passos veio uma série de bandeiras devocionais da Paixão de Cristo, do século XVIII, visíveis no corpo da igreja, muito escurecidas e de fraca pintura provincial.

Mas a igreja matriz do Cartaxo também foi destino de peças oriundas do Mosteiro de Santa Clara de Santarém quando, a seguir à morte da última freira, começou a dramática fase de desmantelamento dos seus acervos artísticos. Para esta igreja veio, entre outras peças, uma pintura do ciclo maneirista que deve ser considerada a existência pictórica mais qualificada do templo. Trata-se da tela que representa ‘A Virgem e o Menino velando pela remissão das almas do Purgatório’ e se deve à fase tardia da produção oficina do mestre Simão Rodrigues (c. 1555-1629).

Este quadro, pintado no segundo decénio do século XVII pelo famoso mestre ‘fa presto’ da chamada Contra-Maniera nacional (o Maneirismo da Contra-Reforma), mostra-nos uma cena piedosa da iconografia tridentina: integrados numa larga composição de forte sentido didascálico, sob vigilância superior da Virgem Maria e do Menino Jesus, vários anjos movimentam-se no acto de resgatar as almas sofredoras que penam nas chamas. Atrás do nimbo nebuloso que envolve a Virgem e o Menino vislumbram-se, em segundo plano, envoltos em tonalidades de atmosfera sobrenatural, os cortejos dos eleitos, em sereno caminhar ascendente.

Trata-se, pois, de um discurso perfeitamente integrado nas agendas salvíficas da iconografia contra-reformista e, por isso, com sucesso visível na sua recepção por parte das freiras de Santa Clara (a confirmar-se ter sido essa a sua origem). A gestualidade quase congelada dos anjos, o sólido desenho das figuras, e a circularidade da organização geométrica da composição, são valências que recomendam olhar mais atento para esta boa obra de arte do século XVII.

A capela onde se encontra a tela, com abóbada artesonada quinhentista, e o célebre Cruzeiro gótico-manuelino, visível à entrada do templo.

Simão Rodrigues era chamado amiúde, desde a sua oficina lisboeta na Rua das Parreiras ao Socorro, por inúmeros mercados sacros de todo o país que recorriam ao seu talento pedindo quadros para igrejas, capelas, mosteiros e oratórios do Reino, incluindo também espaços sacros de Angola, de Macau e da Índia portuguesa. Aos poucos, criou um verdadeiro cânone, muito pessoal, facilmente identificável pelos estilemas, e fez-se rodear de uma série de discípulos, colaboradores e epígonos que lhe asseguravam o ritmo crescente de produção ou lhe seguiram as receitas (um deles foi o citado André de Morales). Sabemos documentalmente que Simão veio a Santarém em 1614-1615 pintar o retábulo da igreja da Misericórdia (obra de sucesso, de que só sobreviveu o qualificado tondo da ‘Senhora da Piedade’, visível na cimalha do actual altar) e de novo voltou em 1618 para pintar o retábulo da igreja de Marvila (de que resta a tela circular do ‘Calvário’, no arco triunfal).

Era um pintor apreciadíssimo no tempo pelos mercados de todo o Reino por esse seu estilo fácil e eficaz, alinhado com os princípios italianos da ‘ars senza tempo’, que melhor se percebem quando o sabemos activo em Roma nos anos do papado do franciscano Sisto V, influenciado por esse gosto militante que tornava as artes plásticas, em ressonâncias medievais, como parte propagandística de um novo discurso ilustrado para os ignorantes e descrentes: a ‘Biblia Pauperum’.

A pintura encontra-se no altar da capela funda da parte da Epístola (ainda com o seu arco e cobertura artesonada quinhentista, como se disse). A figura da Virgem é muito bela na sua afectada ‘venustá‘ de pose, com o elegante Menino ao colo, e segue o modelo de outras peças suas datadas desses anos (como o painel da igreja da Azambuja e a ‘Virgem da Paz’ do Museu Diocesano de Santarém, por exemplo). A intervenção de mãos oficinais é evidente no desenho de vários anjos esvoaçantes que enfrentam o fogo do Purgatório e de algumas figuras das Almas sofredoras, mas era assim que então se trabalhava… Em suma, o efeito geral atesta a qualidade e o estilo inconfundível de Simão Rodrigues, nome maior da nossa pintura da ‘Contra-Maniera’ e criador de um verdadeiro discurso canónico com grande sucesso em Portugal ao longo do primeiro terço de Seiscentos.

Penso que a tela datará de cerca de 1615-1618, ano em que Simão esteve em Santarém a cumprir várias encomendas. E penso, mais ainda, que ela merece um olhar mais demorado por parte dos visitantes da igreja matriz do Cartaxo: para além da sua mensagem sacra, que pertence ao campo da iconografia católica, é o seu discurso estético que mais se impõe, hoje, como testemunho deste último Maneirismo português ao serviço da Igreja e, por vezes, com capacidades acima da mediania.

(Nota: DGARQ/TT – Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conventos extintos, Convento de Santa Clara de Santarém, caixa 2041).

 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Leia também...

Uma Cripto-História de Santarém (58) – O “Calvário” da Igreja de Casével e o mecenato dos nobres Coutinho

A igreja de Santa Maria de Casével, sede de antiga freguesia rural do termo de Santarém e de há muito integrada no seu Concelho,…

Uma Cripto-História de Santarém (59): O Topónimo Scabelicastro: Um louvor às valias históricas, lendárias e artísticas de Santarém

Ao Luís de Camões (c. 1525-1579 ou 1580) se deve a belíssima súmula poética em que descreve a antiguidade e os valores histórico-artísticos e…

Uma Cripto-História de Santarém (60): Um Pintor Algarvio na Santarém Seiscentista e uma tela de Santo Erasmo que gerou um processo por bruxaria

Santo Erasmo de Fórmia, cujo culto é entre nós residual, é um dos catorze santos auxiliares do lendário martirológio cristão. Considerado patrono dos marinheiros,…

Uma Cripto-História de Santarém (56): Os dois Conventos Arrábidos de Vale de Figueira e o Poeta D. Manuel de Portugal

Existiram em Vale de Figueira, freguesia do concelho de Santarém, dois conventos de frades arrábidos dedicados a Santa Maria de Jesus. Ligados ambos ao…