Imagem de São Bernardo, de início do século XVIII, existente na capela de Nª Sª da Encarnação do Espinheiro.

A igreja de Nossa Senhora das Encarnação do Espinheiro, aldeia rural do Concelho de Alcanena (hoje integrada na União de Freguesias de Malhou, Louriceira e Espinheiro), guarda uma antiga imagem de São Bernardo de Claraval (1090-1153) que tem uma história muito interessante para contar.

Antes de mais, é insólita a presença do santo cisterciense na modesta capela novecentista desta povoação ribatejana, aparentemente tão fora das rotas tradicionais da Ordem de Cister, da qual foi um dos fundadores. É necessário, por isso, recuar aos tempos da Reconquista cristã de D. Afonso Henriques e ao caminho que o conduziu à conquista de Santarém (15 de Março de 1147) e que incluíu o Espinheiro, numa espécie de cruzada sob égide dos templários e dos monges cistercienses, para perceber a presença do culto nesta singular aldeia rural. Como afirma Frei Bernardo de Brito (Monarquia Lusitana), «ambulavimus usque Ebraaz in sumitate Pernes», teria dito o rei conquistador, quando veio de Coimbra, pela Serra dos Candeeiros, estadeando em Pernes na véspera do assalto e prometendo aos monges que, se tomasse a cidade, edificaria em sítio daquela várzea um convento em louvor do santo de Cister.

De facto, existiu aqui, até ao princípio do século passado, uma capela dedicada a São Bernardo, que se erguia no chamado Outeiro do Santo, um cómoro envolto por denso pinhal, no termo da aldeia, de cujas ruínas ainda restam testemunhos orais, embora nada da sua estrutura tivesse sobrevivido. Seria um eremitério dos monges alcobacenses, a crer na tradição afonsina (o que só por si recomendaria, aliás, uma campanha arqueológica no referido sítio). Já o erudito memorialista Simão Froes de Lemos (1675-1759), um militar natural de Pernes que escreveu em 1726 a valiosa e bem documentada ‘Notícia Histórica e Topográfica do termo de Alcanede’, ao referir-se a Malhou, acrescenta (a p. 77) o seguinte: «…E também pertence a esta freguesia metade do lugar do Espinheiro com huma Ermida de S. Bernardo». Dessa capela (cujo estado de ruína já se assinala em 1929) restou apenas a imagem do santo, que passou para a nova igreja entretanto erguida na povoação, cujo patrono é Nossa Senhora da Encarnação, e cuja imagem de roca, de qualidade discreta e cronologia recente, enobrece as festividades de Dezembro.

A aldeia é em si, aliás, um singular caso de estudo. Atesta aquilo que disse recentemente a geógrafa Raquel Soeiro de Brito, com os seus cem anos de grande lucidez, a respeito do sentido das suas investigações nesse campo: tudo o que diz respeito à Geografia Humana é (ou deveria ser) matéria de uma «infinda curiosidade». A essa luz, o Espinheiro serve de exemplo particularmente feliz, com a ‘curiosidade’ que sobressai nas vivências rurais de uma povoação que parece situar-se no fim do mundo mas que se configura como um perdido oásis… É especialmente interessante a festividade local que se realiza no mês de Dezembro, em que se enchem as ruas e praças da aldeia com decorações alegóricas, autos de Natal, presépios, lugares de venda de arte e artesanato, cantares, o característico jogo do pau, e outras manifestações vivenciadas de cultura popular. Existe ainda um bom Museu Rural e Etnográfico (inaugurado em 2000 com o espólio reunido nos anos 50 do século passado pelo espinheirense João Davide Lourenço), que memoriza tais práticas festivas. Tudo palpita, portanto, de vivências comunitárias. Sim, retomando as palavras de Raquel Soeiro de Brito, existem sempre mais luzes fora da erudição das chamadas «grandes Artes».

… E voltemos à antiga imagem que guardou memória da antiga cultuação a São Bernardo e que passou da demolida capela para a actual igreja. Trata-se de uma interessante escultura de início do século XVIII, em madeira policromada e estofada, mas que chegou aos nossos dias muito repintada e carecida de uma intervenção de conservação e restauro que lhe devolva as características primevas, incluindo o branco das vestes cistercienses. O modelado da cabeça, algo arcaizante e com reminiscências do século XVII, tem certo carácter, mostrando no lavor do rosto e mãos, e nos panejamentos soprados, uma ‘mão’ artística com algum merecimento. A figura de São Bernardo de Claraval apesenta-se aqui como um frade beneditino mas é de crer que, livre dos repintes que o adulteram, a sua condição de ‘monge branco’ venha a sobressair de futura intervenção restaurativa.

Devo ao estimado amigo Vicente Batalha, destacado actor, investigador e homem de Teatro, a informação de que, segundo pensa, foi nesta imagem que António Martinho do Rosário, o dramaturgo Bernardo Santareno (1920-1980), se inspirou para escolher o nome artístico que o celebrizou. Seu pai Joaquim Martinho do Rosário, homem de convicções republicanas e anti-clericais, era daqui natural, e sua mãe, Maria Ventura Lavareda, católica e muito devota do São Bernardo do Espinheiro. Deve ter sido em homenagem de sua mãe que Bernardo Santareno criou o seu pseudónimo, espécie de preito memorial ao antigo culto de uma aldeia a que estava indelevelmente ligado…

Como se conclui, a imagem tem um triplo interesse histórico, iconográfico e devocional. Primeiro, a sua existência ajudou a relembrar, durante séculos, o facto de se tratar de terras ligadas desde a Reconquista cristã aos monges cistercienses de Alcobaça, os quais aqui teriam bens, longe da região dos Coutos alcobacenses. Segundo, por ser de especial devoção da mãe de Bernardo Santareno, a imagem inspirou o célebre dramaturgo na escolha do seu pseudónimo literário. Terceiro, no pleno século XVIII a devoção era muito intensa, a crer no facto de um certo Pedro António da Mata, que nasceu na próxima aldeia de Malhou em 1753, vir a acrescentar o nome ‘’Bernardes da Matta’’ ao seu apelido, antes mesmo de a sua família emigrar para o Brasil.

Este último detalhe antroponímico, cuja origem radica na velha imagem do Espinheiro, foi recentemente referido numa conferência de Alfredo Eurico Rodrigues Matta, professor da Universidade de Salvador da Bahia, proferida no Centro de Investigação Prof. Joaquim Veríssimo Serrão, nos Paços do Concelho em Santarém, ao historiar as origens ribatejanas de seu ilustre avô Edgard Matta (1894-1974). Este jurista, político anti-fascista, escritor, criminologista e professor brasileiro, cujas origens remetem para as aldeias de Malhou e Espinheiro, encontra assim as suas remotas raízes num esquecido culto ao fundador da Ordem de Cister que uma aldeia rural ribatejana manteve vivo !

A conclusão desta micro-pesquisa só pode mesmo ser uma: aquilo que nos têm a contar as velhas imagens é, de facto, uma coisa que sempre nos surpreende !

Nota: agradeço ao amigo e homem de Teatro Vicente Batalha a ‘pista Bernardo Santareno’; a Graça Maria Padinha, o envio das fotografias; ao padre e historiador de arte Tiago Moita; a Mário Rui Silvestre; e ao Professor João Vitalino Martinho (primo direito de Bernardo Santareno, hoje com 97 anos) as informações que permitiram a elaboração desta micro-pesquisa. Uma palavra, também, aos Prof. Doutores Martinho Vicente Rodrigues (CIJVS) e Alfredo Eurico Rodrigues Matta (Universidade de Salvador da Bahia), pelas referências à ‘pista Bernardes da Matta’, que constam do livro ‘Edgard Matta: a vida de um jurista e a articulação com o seu tempo’, de Alfredo Eurico Rodrigues Matta e Dorival Franco e Passos (Salvador da Bahia, 2025). A entrevista à investigadora Raquel Soeiro de Brito consta do Público (suplemento Ípsilon) de 14 de Dezembro. A citação da ‘Noticia…’ de Simão Froes de Lemos (1726) vem, por seu turno, na edição do manuscrito feita pelo Centro de Investigação Prof. Joaquim Veríssimo Serrão com introdução, comentário e notas de José Raimundo Noras (2019, p. 77).

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