Seriam seis da tarde daquela véspera do dia da abertura do segundo Festival de Gastronomia, quando alguém me veio dizer que estava lá fora um senhor para falar comigo.
Cerca de trinta urgências (daquelas que se sobrepõem umas sobre as outras) depois e passada mais de uma hora, de novo alguém me veio de novo avisar que continuava um senhor lá fora para falar comigo.
Atrapalhado e preocupado saí para ver quem era e o que se passava. Encarou-me um sujeito de baixa estatura, magro, cabelo cumprido, bigode amarelado da nicotina, fato cinzento, camisa branca, olhos muito vivos e um ar simpático.
Pedi-lhe desculpa pela demora, sorriu compreensivo, acrescentando que estava a observar a grande confusão inerente à chegada simultânea e de última hora de muitos expositores, tasqueiros, artesãos e sei lá eu bem quem… Perguntei-lhe quem era e o que poderia fazer por ele.
Respondeu-me que era “meu” convidado, que tinha aceite o convite e ali estava. Conversámos um pouco, para descobrir que se tratava do jornalista Melo Lapa, melhor dizendo José João Gorjão Henriques de Melo Lapa, um dos grandes especialistas em questões de gastronomia, que ali estava para fazer a cobertura do festival para o Diário de Noticias.
De facto, tinha sido eu a subscrever o convite dirigido ao Jornal, por indicação do Eduardo Leonardo, mas lá lhe expliquei que era convidado do Festival e não meu.
Quis saber onde era a sala de imprensa e ali instalou a sua velha máquina de escrever, teclado internacional e meia resma de papel que trazia consigo, tendo o cuidado de escolher o local que mais lhe agradou.
Depois, perguntou onde ficaria instalado e, informado disse-me que não me preocupasse com ele pois pretendia descansar e que voltaria no dia seguinte para iniciar o trabalho. Depois, chamou um táxi e desapareceu.
Na verdade, voltaria naquela noite, para uma visita minuciosa ao certame, tendo conversado com quase todos os expositores, fossem eles artesãos, tasqueiros (como então dizíamos), cozinheiros, funcionários dos municípios e regiões presentes.
A partir daquele ano, o Melo Lapa estaria sempre presente no Festival, durante os vinte anos em que tive responsabilidade na sua organização. Velho monárquico, de fortes convicções, escondia-se por vezes atrás de um cenho mais cerrado, na maior parte das vezes brincalhão e quando alguém lhe perguntava se a refeição tinha sido boa, respondia invariavelmente, com um sorriso malandro – “Leia amanhã o Diário de Notícias” e acrescentava arrastando a voz – “Uma Porrada!…”, se de facto tinha sido boa, ou iludia a questão e afastava-se se não era o caso.
A mim ensinou-se tudo o que os meus sentidos havidos de saber conseguiam aprender. Por exemplo, se a sopa estava boa e para isso tinha também que estar quente, proferia um eloquente e satisfeito – Portugal é um país de sopas! Um dia em que falávamos da influência na comida portuguesa, dos produtos do oriente, esclareceu que Portugal foi à India a comer sopa de unto, alertando para a importância das técnicas de conservação de alimentos nas viagens daquele tempo.
Noutra ocasião, no final de uma refeição, a pessoa que servia aproximou-se com duas garrafas, uma de aguardente e outra de um vinho licoroso e perguntou-lhe – Deseja um digestivo? Melo Lapa voltou-se para trás. Encarou a moça, sorriu, e com a sua voz meio rouca respondeu: -Digestivo é Alka Seltzer (um medicamento indicado para a azia e a indigestão muito popular na época), acrescentando: – Eu quero é uma aguardente!
Melo Lapa foi quem um dia propôs ao Festival a criação de um Museu da Gastronomia e foi na sua velha máquina de escrever que redigiu o primeiro documento a este respeito. Mais tarde, viria a doar parte das suas obras relacionadas com a gastronomia para o centro desse novel museu a criar, decisão que a sua esposa fez questão de honrar.
Reflexos – Nuno Domingos