Nota: Pela primeira vez um artigo meu é dividido em três partes. O tema é profundo e multifacetado, encontrando-se na ordem do dia depois de ter sido anunciado que a Reforma do Estado irá extinguir a FCT. Sendo esta um legado do Professor Mariano Gago e da reforma do ensino superior que promoveu enquanto Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, o tema pede-nos uma análise séria, profunda e imparcial. É isso que será feito nestas 3 partes, a saber:
- na primeira será efetuada uma abordagem histórico-cronológica das ideias e das reformas preconizadas e implementadas por Mariano Gago, cruzando-as com os efeitos d incontornável Processo de Bolonha;
- na segunda serão abordados a internacionalização da academia e a divulgação científica, esta numa ótica de produção de artigos científicos, analisando quanto a este último item a teia de interesses económicos subjacentes ao índice Web of Science;
- na terceira e última parte serão abordados os efeitos desta estratégia, personalizada na FCT, no dia-a-dia da academia e nas relações entre professores, alunos e ecossistema empresarial.
Desde a aprovação em Conselho de Ministros, no passado dia 31 de julho, da Reforma do Estado, que caiu um frenesi sobre o meio académico e, por arrasto, na oposição de esquerda e na comunicação. Na realidade, a prevista extinção da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e da Agência Nacional de Inovação (ANI), a serem substituídas por uma nova Agência de Investigação e Inovação, inflamou os ânimos e trouxe a terreiro os paladinos de uma entidade estranha e translúcida, os mesmos que ainda há não muito tempo faziam parte dos seus detratores.
Mas afinal, o que é a FCT? A Fundação desempenha um papel central no apoio à investigação em todas as áreas do conhecimento, valorizando a prospetiva estratégica em investigação e desenvolvimento (I&D) e inovação, através de bolsas, programas de emprego científico, projetos de I&D e, sobretudo, financiamento a instituições e infraestruturas de investigação.
Portugal tem uma política de acesso aberto a publicações científicas resultantes de projetos financiados pela FCT, fomentando a visibilidade e disseminação do conhecimento. Ou seja, a FCT está para os académicos e investigadores científicos como o IFAP está para os agricultores.
Na prática, o principal problema prende-se com a subjetividade de muitos dos critérios de avaliação dos projetos (disponíveis no Guião de Avaliação de 14/08/2024) e da respetiva pontuação (de 0 a 5, com justificação vaga e pouco explicativa), reforçada pelo distanciamento face aos promotores dos mesmos, em nome de uma suposta isenção que nem sempre se verifica. Por outro lado, os critérios considerados são integralmente científicos, não havendo espaço para avaliar o potencial contributo para a sociedade.
A história da FCT está ligada à evolução do financiamento e organização da investigação científica em Portugal. A investigação científica em Portugal começou a ser financiada de forma sistemática com a criação da Junta de Educação Nacional em 1929, seguida pelo Instituto para a Alta Cultura e, posteriormente, pelo Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC). A FCT foi criada em agosto de 1997 e resultou da extinção da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT) em 1995, herdando as suas funções e responsabilidades.
Entre maio de 1986 e maio de 1989, o presidente da JNICT foi José Mariano Gago, eminente professor do Instituto Superior Técnico (IST), com uma reputação enorme a nível nacional e internacional, que faleceu subitamente aos 66 anos, em abril de 2015. Mariano Gago é, ainda hoje, considerado como o pai da principal reforma do ensino superior e da investigação científica em Portugal.
Estudioso do sistema de ensino superior em geral e do português em particular, Mariano Gago publicou em 1990 a obra “Manifesto para a Ciência em Portugal”. Nesta obra, Mariano Gago analisa a situação de atraso e isolamento da comunidade científica nacional, sugerindo uma maior integração na comunidade científica nacional, o cofinanciamento estatal das unidades de I&D das empresas nacionais, a necessidade de debater as políticas públicas para a ciência e de combater a excessiva centralização do aparelho público, a divulgação da atividade científica nacional e o reforço da educação científica.
As ideias lançadas neste livro transformaram-se nas linhas de orientação de Mariano Gago enquanto Ministro da Ciência e da Tecnologia (1995 – 2002) e Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (2005 – 2011). Assim, Mariano Gago dinamizou iniciativas para a promoção da cultura científica e tecnológica em Portugal e reformou o regime jurídico das instituições de ensino superior, o estatuto da carreira docente universitária/politécnica, o regime jurídico da atribuição dos títulos de agregado e de especialista, o regime dos graus e diplomas do ensino superior, o regime de acesso ao ensino superior para maiores de 23 anos, o regime de reingresso, mudança de curso e transferência, o regime jurídico de reconhecimento de graus estrangeiros de ensino superior e o regime dos cursos de especialização tecnológica, potenciando a sua expansão ao ensino superior politécnico.
Para além destas medidas, Mariano Gago dinamizou a avaliação da qualidade do ensino superior, criando em 2007 a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), uma fundação de direito privado instituída pelo Estado Português com a missão de proceder à avaliação e à acreditação das instituições de ensino superior e dos seus ciclos de estudos, bem como desempenhar as funções inerentes à inserção de Portugal no sistema europeu de garantia da qualidade do ensino superior.
Todas estes iniciativas alteraram profundamente o contexto académico e a investigação científica em Portugal, durante a primeira década do século XXI. Não é, no entanto, despiciendo que estas mudanças ocorreram em simultâneo com a implementação do Processo de Bolonha, que teve início em 1999 e que alterou substancialmente o enquadramento universitário europeu, tendo Portugal sido um dos primeiros subscritores. Quais foram os efeitos conjuntos destas duas reformas e onde elas nos levaram?
Na segunda parte iremos tentar responder a esta questão. Até lá, boas leituras.