O livro sobre Vítor Tomé, o último engraxador de Santarém, da autoria de João Serrano, revela a alma imensa de uma “figura pública incógnita”, cuja vida dedicada à arte de escutar e ao ofício de engraxador fica agora imortalizada.
A obra confronta as memórias pessoais de Vítor Tomé com registos históricos, sublinhando a importância de documentar e preservar profissões tradicionais, num apelo à valorização do património cultural imaterial.
O que o inspirou a escrever sobre a vida de Vítor Tomé, o último engraxador de Santarém?
O próprio Vítor Tomé motivou o impulso inicial para escrever sobre a sua vida. Conheci-o no W, na altura em que eu continuava a procurar figuras públicas (mas incógnitas) e profissões a desaparecer, para as poder fixar em livro. O encontro e o diálogo que mantivemos revelaram uma pessoa com uma alma imensa. Aprendi com ele os rudimentos da arte da escuta, ou seja, a forma como devemos dialogar ouvindo o outro e retendo aquilo que é importante no diálogo. Tudo o mais é acessório e Vítor Tomé foi alguém que deveria ter sido escutado, para aprendermos a sua arte de separar o ruído de fundo daquilo que é essencial na pessoa, ou nas pessoas. O subtítulo do livro poderia muito bem ser “A Arte de Saber Escutar”.
Quais foram os principais desafios que encontrou ao confrontar as memórias pessoais de Vítor Tomé com os registos históricos?
O trabalho teve uma fase de registo das suas experiências de vida, das suas emoções e sensações, de um trabalho de engraxador ao qual dedicou uma vida inteira, desde os 12 anos de idade. Nessa fase, o método de trabalho foi o da recolha das suas memórias em diálogo livre, gravando as suas declarações e, de seguida, construindo a narrativa correcta. Essa foi a parte do trabalho a que dediquei muitos meses.
A segunda fase correspondeu à pesquisa histórica e documental sobre os personagens que Vítor Tomé citou de memória, percorrendo décadas da vida social da cidade de Santarém. Esse trabalho, muito exaustivo, demorado e rigoroso esteve sob a responsabilidade do Doutor José Raimundo Noras, historiador. Concluiu ele que a memória de Vítor Tomé foi prodigiosa porque, de todos os personagens que referiu, e foram dezenas, o ilustre historiador concluiu que todas estavam correctas, à excepção de somente uma, para a qual não tinha a certeza, por falta de documentação.
Qual considera ser o impacto social e cultural deste livro para a comunidade de Santarém e para a preservação da memória das profissões tradicionais?
A questão aponta para o problema, ainda por resolver, do papel do Estado e do Poder Local em relação à valorização do património cultural imaterial. Não tem sido dado o devido destaque para esse património estratégico e essencial para a nossa vida cívica e comunitária. Não tem havido investimento na cultura. Na vertigem da aplicação dos fundos comunitários em obras de apoio ao crescimento económico, e da ausência de um serviço público de natureza cultural e identitária,
foram-se perdendo valores e referências culturais extremamente importantes para a memória comunitária, criando-se um vazio existencial colectivo. A esse respeito, o livro, e tantos outros da colecção (vamos em breve publicar o número 65) são insuficientes, de todo, para colmatar o enorme vazio cultural que está criado. No entanto, pode ter uma importância relativa para despertar as consciências de quem detém os poderes públicos, no sentido de passar a dar o devido valor, e importância estratégica, para esta área da nossa vida colectiva.
Na sua opinião, qual é a importância de documentar e preservar as memórias de profissões tradicionais como a de engraxador?
É da máxima importância para a salvaguarda do património cultural imaterial e para despertar as consciências de quem governa (poder central e local) para criar uma nova orientação política para esta área da nossa vida colectiva. É preciso agir e apoiar quem trabalha seriamente nesta área fundamental. É preciso acarinhar as pessoas e entidades que verdadeiramente se interessam por esta área, da qual depende a preservação das memórias, para os vindouros, para os futuros investigadores, para aqueles que consideram correctamente que a História se constrói pelos anónimos que fazem mover a economia e a sociedade.
Por exemplo, de nada vale fazer um trabalho sobre os calceteiros de Lisboa (Caderno Nº 22 – “A Calçada Portuguesa na Vida de um Ourives do Chão” – Março de 2017), se a Câmara de Lisboa, na altura do lançamento do livro na Escola de Calceteiros em Lisboa, com dezenas de calceteiros presentes, não enviou sequer um vereador para se fazer representar. Alheou-se de uma forma deselegante e desrespeitadora para a profissão, para os calceteiros e para o autor. No entanto, passado muito pouco tempo anunciou a candidatura da calçada portuguesa a património da Unesco, sem sequer nos dar uma palavra, como consequência do nosso trabalho pioneiro.
É muito difícil trabalhar assim, com tanto desrespeito por quem se empenha na defesa do património imaterial nacional.
Na introdução, utiliza a paráfrase “Uma estátua em erosão” de José Saramago. Como se relaciona esta metáfora com o conteúdo do livro e a vida de Vítor Tomé?
Uma estátua, qualquer estátua, tal como a vemos, é a superfície da pedra depois de trabalhada pelo escultor. Tudo o que nela é percebida pelos nossos sentidos se pode reportar a esse mesmo exterior.
No livro, Vítor Tomé descreve a sua vida e a sua forma de estar, dando-nos a imagem do que é, ou do que acha que é. De acordo com o sentido da metáfora, ele está a criar a sua própria imagem, a construir a sua própria “estátua”.
No entanto, quando mergulhamos na leitura, apercebemo-nos dos detalhes que à primeira passagem nos aparecem escondidos. Essa surpreendente percepção corresponde à fase em que passamos da superfície para a compreensão do interior da personagem e do seu espírito, da sua alma de pessoa de boamente.
Tomemos como exemplo a forma como Tomé se aproxima dos clientes, a todos tratando por “excelência”… criando desde logo uma atmosfera propícia ao diálogo e à proximidade. O seu sentido, e a sua experiência, leva-o a quebrar as barreiras iniciais e a estabelecer o diálogo, mantendo, no entanto, o silêncio da sua parte, funcionado mais como aquele que escuta
do que o que participa no diálogo com as suas próprias opiniões. Esta atitude favorece a abertura do interlocutor, e o ganho de confiança necessário para estabelecer a cumplicidade necessária entre ambos…
Mas não será esta atitude a mais adequada ao exercício da escuta? Claro que sim! Vítor Tomé dá-nos, afinal, uma soberba lição da forma como nos devemos comportar na vida – ouvindo mais do que falando, escutando e respeitando mais do que criando ruído desnecessário e superficial. Estes são somente alguns dos aspectos da “estátua em erosão”…