Sandra Ferreira é um dos casos de sucesso da pademia de Covid-19. A enfermeira, natural de Santarém, foi infectada e esteve 35 dias em confinamento. Agora, voltou ao Hospital de Santarém e à linha da frente do combate ao Covid, na Urgência Pediátrica do Hospital Distrital de Santarém. Licenciada em enfermagem pela Escola Superior de Saúde de Santarém, Sandra é enfermeira há 24 anos: esteve em Internamento de Pediatria durante 13 anos e trabalha no serviço de Urgência Pediátrica há 11. Nesta entrevista ao Correio do Ribatejo, fala da sua experiência e da profissão que exerce com uma enorme paixão.
Como é que olha para este surto de Covid-19?
Olho com preocupação, pela dificuldade de mudar comportamentos, e proteger quem é de alto risco, (população idosa e pessoas com patologias associadas). Este não é, de todo, um vírus igual a qualquer outro, pela forma fácil de contágio e pela mortalidade, e que assolou o mundo de uma forma assustadora e violenta, pelo desconhecimento associado ao vírus e ao protocolo de tratamento.
O que mudou na sua vida e nas suas rotinas por causa por causa do perigo de contágio?
Mudou tudo. Ao longo de tantos anos, com tantas situações infecciosas, nunca senti necessidade de afastar quem convive comigo diariamente e não sou, nem nunca fui, ansiosa em situações de doença. Viver com a culpa de contagiar é condicionar a vida de alguém. É algo de angustiante e, neste caso, dado o desconhecimento da evolução do vírus no organismo e a resposta que cada um dá, foram determinantes na minha decisão.
Os cuidados com higienização foram redobrados, a dinâmica familiar também foi alterada. E essa parte é a mais difícil. Somos feitos de afectos e esses passaram a ser com palavras e à distancia. A ausência de toque fez-nos perceber o quanto ele é importante.
Sentiu receio quando recebeu o seu teste positivo?
Sim, pela primeira vez na minha vida tive medo, muito medo… não sou jovem, não conhecia a reposta do meu sistema imunitário, e as imagens repetidas de um sem número de gente ligada a ventiladores foi a primeira coisa que revi. Pensei que estava aliviada, de certa forma, por me ter separado das filhas a tempo, e com medo de não as voltar a ver. Não é drama o que digo, e tenho a certeza que quem vive e passou por isto sabe do que falo. Senti angústia por achar que agora, que estou numa fase de realização pessoal tão grande, com quase todos os projectos de vida realizados, perdia tudo. Por outro lado, não são ainda claras as sequelas do vírus a nível respiratório a longo prazo… a doença compromete a função pulmonar, e a nível respiratório não voltei a ser a mesma até ao momento.
Os profissionais de saúde, na minha perspectiva, vivem situações de doença com algum sofrimento antecipado, pelo conhecimento da evolução da doença e respectivos tratamentos, e por hábito silenciam as preocupações para não preocuparem outros à sua volta.
Como foi regressar ao trabalho? Como foi recebida pelos seus colegas?
Amo o que faço e tenho por hábito dizer que trabalhar, para mim, é terapêutico. Senti falta do meu serviço, das colegas, da minha rotina diária. Nunca tive uma ausência assim… em 24 anos estive uma vez de atestado médico por doença.
Fiz turno logo no dia do segundo resultado negativo, ainda um pouco fragilizada pela fadiga intensa que se sente, mas pronta para vencer, dia após dia. Isso, acredito, faz parte do processo de recuperação.
Fui, sem dúvida, surpreendida à chegada: não imaginei que alguma vez me acontecesse isto. Fui acarinhada pelas colegas do serviço, pelos nossos pediatras, pelas nossas assistentes operacionais, que ao longo dos 25 dias em que me tive de ausentar sempre foram ligando, trocando mensagens,
São outra família, aquela com quem passamos a maior parte da nossa vida. São muitos anos. Há um profundo conhecimento de cada um de nós e um trabalho de confiança nesta equipa da qual me orgulho muito.
Na sua leitura, nesta altura em que o País está a efectivar o desconfinamento, a palavra ‘prudência’ deve estar na ordem do dia?
No meu entender, a questão do desconfinamento obriga a maior prudência: se, em altura de confinamento, observámos exemplos de comportamentos de risco, de desobediência e desrespeito pelo outro, devemos agora ter uma atitude em consciência com os nossos, e assumir esse papel, pelo exemplo. Se dependesse de mim, tomaria medidas de punição aos prevaricadores, no momento. As normas têm que ser respeitadas, e, se não são cumpridas, anulam a liberdade do outro que as cumpre.
A abertura de creches e escolas é, na sua opinião, uma medida aceitável face à evolução da doença?
Quanto à abertura de creches e estabelecimentos de ensino, sabemos que a percentagem de crianças infetadas com sintomatologia é muito baixa e é um grupo, na generalidade, sem complicações significativas. Temos pais em casa num esforço económico brutal, que passaram a viver num estado de carência grave que precisam de regressar às suas actividades. O país precisa de recomeçar. Agora, há que existir condições de rastreio e utilização de meios de protecção adequados. Sabemos agora, através de variados estudos científicos, que as crianças têm o potencial de serem os grandes transmissores da doença. Por isso, as entidades responsáveis terão de desenhar estratégias que assegurem o cumprimento do horário de trabalho dos pais, sem comprometer avós, esses com poucas defesas no combate ao vírus. Para além disso, os estabelecimentos de ensino têm de tomar medidas na criação de condições físicas para os receber, talvez em espaços cujas câmaras municipais possam disponibilizar, por exemplo. Por outro lado, a formação adequada dos cuidadores é também fundamental.
Considera que o País tem dado uma boa resposta a esta crise sanitária?
A resposta do país, a meu ver, tem tentado ao máximo colmatar as necessidades. No entanto, considero que a obrigatoriedade do uso de máscara foi muito tardia, assim como foi também tardio o estrito cumprimento das normas emanadas pelas autoridades de saúde. Vejo, agora, esforço por parte das autoridades para que tudo seja cumprido, mas se existirem comportamentos repetitivos de desobediência, estes devem ser penalizados. Faço um ‘part-time’ num lar de idosos também, onde as medidas de isolamento social foram tomadas atempadamente. E em relação ao que tenho visto, e às situações que são do conhecimento geral, parece-me ter falhado o despiste atempado a todos os funcionários de lares que, ao virem do exterior, e muitos assintomáticos, acabaram por contagiar este grupo etário sem o saber.
Tivemos tempo suficiente para organizar o sistema de cuidados de saúde a partir do momento em que nos apercebemos do percurso do vírus desde a China. No entanto, penso que demos uma resposta mais eficaz que Espanha e Itália, por exemplo. Mas, como já referi, as incertezas são muitas pelo desconhecimento do comportamento deste agente patogénico.
Depois, acho que continuamos a ter uma postura de dependência de outros países quando temos capacidade de fazer e produzir muito do material que é necessário para enfrentar esta pandemia.
Qual é, neste momento, o principal conselho que dá à população?
Os nossos pais e avós lutaram tanto pela liberdade e temos visto, infelizmente, que eles têm sido os grandes resistentes a todas as medidas de isolamento, pela privação da mesma e quebra de rotinas. Peço, a cada um de nós, como cuidadores, que sejamos quem assegura a sua protecção. Confesso que nunca, em momento nenhum da minha vida, vi tanta solidariedade. Dou um exemplo: um senhor de 76 anos, habitante de uma aldeia, queria apanhar o autocarro até á cidade para ir pagar a sua conta de electricidade. Ele nem sequer sabia que não o podia fazer… Filhos, netos, cuidem deles! Este senhor tinha quem o fizesse por ele. É absolutamente imprescindível proteger os mais frágeis. O princípio da liberdade só se verá se todos contribuírem e todos passamos a ter a vida de volta.
O que a levou a escolher esta profissão?
O gosto surge desde pequena. A necessidade de cuidar esteve presente desde sempre, e, para mim, enfermagem é cuidar, no todo, de forma diferenciada e individualizada. Cuidar dos aspectos físico, emocional e até espiritual, na doença e na saúde, da concepção à morte. Esta profissão implica um sem número de competências: desde o conhecimento científico ao desenvolvimento de estratégias de suporte nas diversas situações, aliada à destreza e aptidões adquiridas na prática ao longo dos anos, em que a comunicação e espírito de observação constituem o pilar do cuidar.
A comunicação exige relação, e este é um mundo fascinante. A gratidão humana é algo que o dinheiro não paga: histórias de ganhos e perdas que me enriquecem como ser humano todos os dias, estar no lugar do outro é preciso, agir no tempo certo, com alguma frieza em situações onde a emergência é prioridade, não esquecendo nunca quem está do outro lado.