Na oportunidade da homenagem ao meu Amigo João Cotrim, antigo músico e director do Grupo Académico de Danças Ribatejanas, de Santarém, recentemente falecido, que decorreu no passado sábado no Centro Etnográfico Celestino Graça, abordei a relação de amizade que mantive com ele durante cerca de seis décadas.
Deixando-me levar pela inspiração do momento, dei comigo a reflectir sobre a evolução do próprio conceito de amizade durante este período e de como nos nossos dias prevalece a amizade virtual sobre a amizade pura, directa e efectiva que une os verdadeiros amigos.
Nós, eu e o João, crescemos num ambiente quase rural, pois ambos residíamos na periferia na cidade de Santarém, mas num espaço que era praticamente terra de campo agrícola, hoje totalmente absorvido pelo crescimento da velha urbe. Outeirinho de S. Pedro, nas traseiras da Escola Superior Agrária, sucessora natural da Escola de Regentes Agrícolas de Santarém, e o Casal Carreira, em S. Domingos, no prolongamento do Olival do José da Fátima, hoje paredes meias com uma das lojas do Pingo Doce, eram, então, campo agrícola de excelência.
Quem, como nós, aqui vivia conhecia toda a vizinhança, sabia os seus nomes e as alcunhas, a que actividades ou profissões se dedicavam, quem eram os seus pais e os seus filhos, e cumprimentávamo-nos cordialmente sempre que nos cruzávamos. Esta relação de proximidade fomentava um ambiente de confiança entre todos e o mecanismo de solidariedade estava sempre activo e disponível.
As dificuldades e carências eram a nossa companhia natural e muitas vezes era necessária a entreajuda entre todos, o que nunca era negado. Era uma vida pobre, modesta, mas tinha esta vertente muito favorável, que propiciava uma cadeia de afectos entre todos. Neste tempo éramos conhecidos, mas também amigos nas horas boas, que, em bom rigor, eram escassas, e nas horas más, que eram o pão nosso de cada dia.
Hoje vivemos em bairros residenciais com muito melhores condições, desfrutamos de uma qualidade de vida muito superior à dos tempos de então, mas quase ninguém se conhece. Dá-se o caso de famílias que vivem no mesmo prédio se cruzarem muitas vezes nos elevadores ou nas escadas, mas não sabem os nomes de cada um, nem conhecem a sua actividade profissional, nem as suas origens familiares.
As comunidades hoje são francamente mais heterogéneas, os seus membros tendencialmente têm mais instrução académica, as profissões são menos violentas e mais bem compensadas, mas o balanço social não é melhor.
Confiamos menos uns nos outros, estamos menos disponíveis somos menos generosos na entreajuda, e vivemos cada qual no seu cantinho alheio aos nossos vizinhos e respectivas famílias. Felizmente que há algumas excepções, ainda bem que nem tudo é assim tão radical como propositadamente o descrevi, mas as diferenças entre os nossos dias de antigamente e os nossos dias de hoje são como o dia e a noite.
No entanto, por força da facilidade de acesso às redes sociais temos amigos espalhados por todo o mundo com quem muito facilmente interagimos, seja através do Facebook, do Instagram, do WhatsApp ou de quaisquer outras redes sociais. Temos “amigos” a milhares de quilómetros de distância que nunca vimos senão por fotografias e “falamos” todos os dias uns com os outros, não falando com o nosso vizinho do lado. É um mundo virtual, onde, também por isso, as amizades são virtuais.
Porém, a amizade é bem mais do que essa interacção virtual, essa futilidade de trocarmos ilusões com gente desconhecida que na maioria dos casos nunca viremos a conhecer cara a cara. Em bom rigor, amizade é tudo menos isto!
Pelo menos no meu conceito de amizade, que, reconheço, talvez seja excessivamente exigente, pelo que muitas vezes refiro que tenho milhares de conhecidos e meia dúzia de amigos. Só no Facebook tenho mais de nove mil “amigos”, distribuídos por duas contas, e tenho em lista de espera cerca de dois mil pedidos de amizade, gente que não conheço, com quem nunca interagi, e de cujos propósitos até duvido.
Para mim ser Amigo exige um conjunto de requisitos que, se não forem satisfeitos, não justificam uma Amizade. Acresce uma dimensão curiosa e interessante ao meu conceito de Amizade, qual é o de que uma pessoa nunca tem direitos sobre o seu verdadeiro Amigo, mas apenas assume deveres e obrigações. Um verdadeiro Amigo tem de ser educado, confiante, respeitoso, honesto, tolerante, solidário, perseverante, altruísta, disponível… enfim, tem de ser Amigo.
E como muito bem dizia o saudoso Marquês de Graciosa quando falava de amizade, “se nós pudermos ser muito Amigos de uma pessoa não nos deveremos contentar em ser apenas Amigos”. Isto diz tudo! Um Amigo não deve cobrar do seu Amigo uma desatenção, uma palavra menos feliz, uma observação menos adequada, no entanto, de uma forma serena e harmoniosa, deve discutir com o seu Amigo os aspectos de que menos tenha gostado, sempre num princípio edificante de tolerância e de respeito.
Duas pessoas que sejam muito Amigas uma da outra não têm de convergir em todos os aspectos da vida, não têm de ser almas gémeas uma da outra, embora tenham de ser capazes de lidar com a diferença. Um Amigo pode ser adepto de um clube desportivo e o outro Amigo ser adepto de um clube rival, sem qualquer tipo de problema. Do mesmo modo que um Amigo pode ser defensor de uma determinada ideologia política e o outro Amigo perfilhar uma ideologia distinta. Qual é o drama?
O que é importante é que cada um saiba respeitar a opção do outro. E é neste princípio que a Amizade se consolida e engrandece.
Às vezes ouvimos dizer que determinadas pessoas nossas conhecidas romperam a amizade de muitos anos apenas porque um desses amigos não gostou de uma observação do outro amigo. Ora, se a amizade foi por água abaixo só por isso, não é problemático, porque, afinal, o que os unia poderia ser tudo menos amizade verdadeira, autêntica. Porque se o que os unia fosse uma amizade pura, esses amigos teriam conversado e esclarecido as eventuais divergências. Seriam Amigos!
A Amizade que me uniu ao João Cotrim assentou, de facto, nestes pressupostos pelo que foi fácil cultivarmos uma Amizade tão sincera e fraterna como a que mantivemos durante quase sessenta anos.
É vulgar ouvirmos dizer que os nossos Amigos são a família que nós escolhemos, e de certa maneira concordo com esta expressão, pois todos temos alguns familiares com quem não mantemos nenhum tipo de relação, às vezes mesmo nem nos conhecemos, enquanto os nossos Amigos são pessoas que nos estão próximas e com quem interagimos com maior frequência.
Lá diziam os antigos que os bons amigos se conhecem é na cadeia ou no hospital, pois é nessas difíceis circunstâncias que podemos avaliar até que ponto podemos contar com os nossos amigos. Enquanto os “amigos de ocasião” estão sempre ao nosso lado em circunstâncias de bonança ou de felicidade, contudo quando alguma adversidade nos bate à porta adeus amigo que se faz tarde.
Quando uma pessoa está bem, tem algum desafogo material nunca lhe faltarão os amigos, porém, quando as situações são mais adversas é que é ver quem são de facto os bons amigos. Lá nos ensina o povo na sua proverbial sabedoria que “as boas amizades são como o bom vinho, melhoram com o tempo!”
Pois, caro Leitor, se tem bons Amigos conserve-os, porque nos tempos que correm é cada vez mais difícil encontrá-los e, sobretudo, mantê-los.
