Há mais de uma década, Vaqueiros, uma freguesia histórica do concelho de Santarém, tem sido palco de uma luta persistente pela reposição da sua autonomia administrativa. A fusão forçada com Casével, implementada pela Lei n.º 11-A/2013, marcou o início de um período de descontentamento e perda de identidade para as duas localidades. Firmino Oliveira, presidente da Junta de Freguesia na altura da agregação, tornou-se o rosto desta luta, liderando um movimento cívico que, ao longo de 13 anos, tem promovido manifestações, petições e acções junto das entidades competentes, numa tentativa de reverter o que considera ser uma injustiça histórica.
A entrada em vigor da Lei n.º 39/2021, que abriu uma janela para a desagregação de freguesias, trouxe uma nova esperança para os habitantes de Vaqueiros. Contudo, o processo tem-se revelado complexo e marcado por barreiras técnicas e administrativas. Um dos principais entraves surgiu em Dezembro de 2023, quando a Assembleia Municipal foi notificada pela presidente da comissão anterior, Isaura Morais, remetendo a decisão do grupo técnico que era presidida pelo deputado João Cegonho quando a proposta de desagregação foi rejeitada com base no número de eleitores reconhecidos no sistema de recenseamento eleitoral SIGRE a data de 31-12-2022 pelo Ministério da Administração Interna (MAI). Apesar de Vaqueiros cumprir o mínimo de 250 eleitores exigidos para freguesias de baixa densidade, apenas registados em 25 de Janeiro de 2023 (25 dias após a data determinada para a contagem) um atraso no reconhecimento de inscrições no Instituto dos Registos e Notariado (IRN) levou à exclusão de 11 eleitores do total apresentado, resultando na reprovação da proposta. “Temos cópia de todos os verbetes em causa que foram enviados a comissão quer pelo presidente da assembleia municipal quer pelo presidente da junta e presidente da comissão que elaborou a proposta e de que faço parte como representante do movimento. Este número compensou, entretanto, a saída de alguns eleitores nesse período”, garante Firmino Oliveira.
Esta decisão gerou uma onda de indignação e motivou o movimento a intensificar os seus esforços. Firmino Oliveira enviou recentemente uma mensagem ao Presidente da República, acompanhada de uma moção aprovada pela população, onde expõe as injustiças do processo e apela à intervenção das mais altas entidades do país. “Cumprimos todos os critérios exigidos, mas fomos penalizados por questões burocráticas. Acreditamos que esta luta é legítima e não vamos desistir”, afirma.
Nesta entrevista, Firmino Oliveira partilha os desafios enfrentados ao longo destes anos, os impactos devastadores da fusão na vida da população e as estratégias do movimento para reverter a decisão no plenário de 17 de Janeiro. Determinado e optimista, o líder do movimento acredita que a união das populações de Vaqueiros e Casével será fundamental para alcançar a vitória final.
Há 13 anos que lidera este movimento pela reposição das freguesias de Vaqueiros e Casével. O que o levou a abraçar esta causa e como tem evoluído ao longo dos anos?
Tudo começou em 2011, quando se falou da extinção de freguesias. Na altura, eu era presidente da Junta de Vaqueiros e membro da Assembleia Municipal. Vaqueiros sempre foi uma freguesia com uma identidade muito própria, e percebi que esta fusão seria um golpe para a nossa autonomia. Logo nesse ano, criámos uma comissão na Assembleia de Freguesia de Vaqueiros para enfrentar esta possibilidade. Desde então, organizámos manifestações em Lisboa, promovemos petições com mais de mil assinaturas e reunimos com várias comissões da Assembleia da República. Esta é uma luta que tem atravessado anos e resistido a diferentes governos.
Na altura, quais foram as principais reacções das populações locais?
Foi um misto de preocupação e cepticismo. Muitos habitantes de Vaqueiros viam a fusão como algo inevitável, mas outros uniram-se ao movimento para demonstrar o seu descontentamento. Fomos muito apoiados em diversas iniciativas. Recordo as grandes manifestações em Lisboa, onde estivemos lado a lado com outras freguesias afectadas. Juntámo-nos a autarquias de concelhos vizinhos e conseguimos que a nossa voz fosse ouvida na Assembleia da República.
Acredita que a entrada em vigor da Lei n.º 39/2021 trouxe uma nova oportunidade para esta luta?
Sem dúvida. A lei reabriu a possibilidade de desagregação, o que nos deu esperança. No entanto, considero-a uma lei demasiado restritiva. Por exemplo, a questão populacional é um critério particularmente difícil para freguesias do interior. Felizmente, Vaqueiros foi classificada como freguesia de baixa densidade, ao abrigo da Portaria 208/2017, (procedimento especial, simplificado e transitório previsto no art.º 25º da lei nº 39/2021 de 24 de Junho) permitindo-nos concorrer com o mínimo de 250 eleitores. Mesmo assim, o processo revelou-se uma verdadeira prova de resistência.
Que dificuldades concretas enfrentaram neste último processo?
O maior problema foi a contagem de eleitores. Em 31 de Dezembro de 2022, o MAI contabilizou 246 eleitores para Vaqueiros, mas nós tínhamos 254 inscritos, na proposta que previamente foi aprovada pela assembleia municipal em meados de Novembro de 2022 que consideraram muito justamente a listagem dos eleitores em trânsito sendo que 11 estavam com processos em curso no IRN. Estes processos só foram reconhecidos em Janeiro de 2023. Esta diferença de datas foi usada para justificar a reprovação da nossa proposta, o que considero profundamente injusto. Cumprimos todos os outros critérios exigidos pela lei até por excesso, mas fomos penalizados por questões burocráticas, a que não é alheio os atrasos na entrega de correspondência que continham os PINs pelos CTTS.
Como reagiram as populações locais a esta decisão?
Houve uma onda de indignação. As pessoas sentem que os argumentos apresentados pelo movimento não foram levados em consideração. Organizámos reuniões para informar a população e, recentemente, aprovámos mais uma a segunda em 30 dias dado que neste intervalo ainda esperávamos a reavaliação do nosso processo tal como aconteceu com outras que levou a comissão a recuperar mais 14, passando agora a ser 124 as uniões contempladas uma moção que foi enviada ao Presidente da República, ao Primeiro-Ministro e aos grupos parlamentares. Estamos determinados a lutar até ao fim, porque acreditamos que esta é uma causa justa. Estivemos presentes em força na última reunião da Assembleia Municipal onde tive oportunidade de intervir e onde sentimos alguma compreensão quer do presidente da Assembleia quer do presidente da Câmara Municipal de Santarém. Sabemos que existe pelo menos uma recomendação proposta pela CDU para ser discutida na continuidade desta Assembleia, iremos assistir a discussão, esperando que tudo isto contribua para alterar o sentido de voto dos partidos que votaram contra na comissão, já solicitamos audiências e esses partidos, mas infelizmente ate ao momento sem resposta. provavelmente não tem neste tempo mãos a medir com muitos casos para tratar. No dia 17 de Janeiro lá estaremos para assistir a discussão e votação final no plenário da Assembleia da República.
Que impacto teve a fusão das freguesias na vida das populações, sobretudo em Vaqueiros?
A fusão foi devastadora para Vaqueiros. Perdemos serviços essenciais, como o infantário, a escola do primeiro ciclo e até o apoio domiciliário. O posto médico… Hoje, temos apenas uma delegação da Junta de Freguesia, que pouco ou nada resolve. Os habitantes de Vaqueiros são obrigados a deslocar-se para Casével ou para outras localidades para acederem a serviços básicos e ou outros bastante interessantes. Em vaqueiros durante estes anos nenhum serviço social foi criado. Esta centralização dos serviços levou à saída de jovens casais, contribuindo para o despovoamento da freguesia que um dia estará a saldo se não for recuperada já.
Quais os impactos sociais e económicos mais visíveis desta fusão?
Do ponto de vista social, perdemos o sentimento de comunidade. As pessoas sentem-se abandonadas e desmotivadas. Economicamente, a falta de serviços básicos tem um efeito em cadeia. Por exemplo, pequenos negócios, como cafés e lojas, não conseguem sobreviver sem clientes regulares. Até actividades culturais e desportivas foram praticamente eliminadas. Vaqueiros está a transformar-se numa terra esquecida, e isso é muito doloroso para quem aqui vive. apesar de existirem algumas potencialidades para garantir uma boa qualidade de vida aos cidadãos.
Acredita que há uma oportunidade de reverter esta situação no plenário de Janeiro?
Acredito que sim, mas é preciso vontade política. A decisão final será no plenário de 17 de Janeiro, e até lá continuaremos a apelar aos deputados e às entidades envolvidas. Estamos a pedir justiça, nada mais. Cumprimos os critérios exigidos, e as populações de Vaqueiros e Casével merecem ter as suas freguesias de volta.
Sou um optimista por natureza, mas sei que estamos a enfrentar um desafio difícil. A decisão final está marcada para 17 de Janeiro, e até lá tudo pode mudar. Já vimos outras freguesias a conseguirem reverter decisões semelhantes. Repito: basta que haja vontade política e sensibilidade para entender as necessidades das populações. Vamos continuar a mobilizar apoio e a pressionar as entidades competentes.
Que estratégias o movimento tem utilizado para sensibilizar as entidades políticas e a população?
Temos utilizado todos os meios ao nosso alcance. Desde o início, promovemos reuniões e sessões de esclarecimento para manter a população informada. Recentemente, enviei uma mensagem ao Presidente da República explicando a injustiça do processo e anexando a moção aprovada pelo movimento. Estamos também a mobilizar a Assembleia Municipal e a Junta de Freguesia para que reforcem as nossas reivindicações junto do Governo. Além disso, usamos as redes sociais para dar visibilidade à nossa causa e envolver mais pessoas na luta.
Falou anteriormente do impacto devastador que a fusão teve na freguesia de Vaqueiros. E em Casével, como é que a população tem vivido esta situação?
Em Casével, a situação é diferente porque os serviços foram concentrados e multiplicados por lá. Apesar disso, muitos habitantes sentem que a união foi prejudicial para ambas as freguesias. Casével é uma freguesia dispersa, e os laços com Vaqueiros sempre foram fortes. Ainda assim, a mobilização da população de Casével nesta luta tem sido menos evidente. É compreensível, porque os efeitos negativos são mais sentidos em Vaqueiros. No entanto, há apoio. As manifestações de solidariedade e a unanimidade das Assembleias da União de Freguesias onde foram aprovados inúmeros documentos a exigir a desagregação mostram que Casével também está connosco.
Que papel têm desempenhado as autarquias locais neste processo?
A Junta de Freguesia da União e a Assembleia Municipal de Santarém têm mostrado apoio ao longo do tempo. O presidente da Assembleia Municipal enviou ofícios detalhados às entidades competentes, demonstrando que cumprimos os critérios e alertando para as características únicas de Vaqueiros. No entanto, acredito que poderiam ter feito mais. É um processo complexo, e o envolvimento activo das autarquias locais pode fazer a diferença. Ainda há tempo para isso. Outras estão a fazê-lo como é o caso de Tomar relativamente a união da Junceira com a Serra.
Na sua opinião, qual é o maior obstáculo à aprovação da desagregação?
O maior obstáculo é a falta de vontade política. Tudo neste processo foi dificultado por questões burocráticas e pela criação de barreiras técnicas. Por exemplo, a insistência em usar os dados do MAI de 31 de Dezembro de 2022, ignorando que o número mínimo de eleitores foi alcançado em Janeiro de 2023.e que mesmo assim a média de eleitores ao longo dos anos embora no sentido descendente mostra o valor de 254 com base na consulta nos cadernos eleitorais desde 2012. Registávamos 285 nessa data. Isso demonstra que, mais do que critérios objectivos, houve uma decisão política para reprovar a nossa proposta. O sistema parece estar feito para desencorajar estas iniciativas, mas não vamos desistir.
Caso o resultado seja negativo, como será o futuro desta luta?
Se o plenário não for favorável, teremos de reavaliar a nossa estratégia. Baixar os braços nunca será uma opção, mas é preciso reconhecer os limites desta luta. Talvez seja necessário recorrer a tribunais ou até repensar o formato do movimento. De qualquer forma, continuaremos a lutar pela justiça. A desagregação das freguesias não é apenas uma questão administrativa; é uma questão de dignidade para as populações envolvidas.
Voltando ao impacto da fusão, mencionou que Vaqueiros tem perdido população e serviços. Que medidas poderiam ser tomadas para revitalizar a freguesia?
Antes de mais, é fundamental recuperar a autonomia administrativa. Só com uma Junta de Freguesia e assembleia de freguesia própria poderemos começar a atrair investimentos e criar condições para fixar a população. A reabertura de serviços, como o infantário, uma creche e ou a escola do primeiro ciclo, a reabertura do posto médico, maior atenção a habitação social, onde até neste campo é difícil de fixar as pessoas, há casa ou casas vazias permanentemente seria um passo importante. Também acredito que o turismo pode ter um papel relevante. E reactivando as instalações desportivas e recreativas, a colectividade. Já existe um trilho pedestre muito interessante em Vaqueiros, para além do rio Alviela., agora melhorado através do 7.7, mas falta uma estratégia integrada para explorar este potencial. Precisamos de pensar no futuro com criatividade e determinação.
E o apoio da população? Sente que as pessoas estão mobilizadas?
Sim, mas é um processo que exige paciência. Inicialmente, houve algum desinteresse, porque muitas pessoas não acreditavam que esta luta pudesse dar resultados. Agora, com o avançar do processo, sinto que há mais mobilização. Nas últimas reuniões, tivemos uma boa adesão, e isso é um sinal positivo. As pessoas começam a perceber que a luta é legítima e necessária. Precisamos de manter esta energia e canalizá-la para os momentos decisivos.
Qual é a mensagem que gostaria de deixar aos habitantes de Vaqueiros e Casével?
Não podemos desistir. Esta é uma luta que não se ganha de um dia para o outro, mas que exige persistência e união. Acredito que, com esforço e determinação, podemos recuperar as nossas freguesias e devolver dignidade às populações. Quero agradecer a todos os que têm apoiado esta causa e apelar para que continuem a fazê-lo. Ainda há esperança, e juntos podemos alcançar a vitória.
Filipe Mendes