Na sequência da publicação do livro “CAMÕES: Altos Cumes, Scabelicastro e correlatos”, o historiador de arte Vítor Serrão explora novas perspectivas sobre a vida de Luís de Camões, as suas ligações a Santarém e o contexto cultural da sua época. Em co-autoria com Mário Rui Silvestre, o livro traz à luz novas descobertas documentais, um poema inédito de Camões e um conjunto de reflexões que desafiam as visões tradicionais sobre o poeta. Esta entrevista ao Correio do Ribatejo aborda as motivações para a elaboração da obra e o impacto que estas novas perspectivas podem ter no entendimento da vida e obra de Camões.

O que motivou a elaboração deste livro e qual é o objectivo central da obra?

A ideia de elaborar este livro surgiu a partir de uma série de ousadas crónicas publicadas pelo Mário Rui Silvestre no Correio do Ribatejo, onde ele defende a tese de que Camões teria nascido em Santarém. Estas crónicas geraram muito interesse e foram o ponto de partida para a colaboração entre nós. Fui convidado por Joaquim Garrido (Edições Cosmos) a juntar-me ao projecto, trazendo a minha perspectiva sobre o ambiente artístico da época de Camões. A partir daí, o livro desenvolveu-se em três frentes principais.

O primeiro objectivo foi explorar a tese do nascimento de Luís Vaz de Camões em Santarém, que é defendida com base em novas evidências documentais e no contexto familiar e cultural da mãe do poeta, Ana de Sá e Macedo, que era de Santarém e oriunda de uma família com fortes ligações à então vila, e do pai clérigo, Simão Vaz de Camões. Embora não tenhamos provas definitivas, a probabilidade de que Camões aqui tenha nascido é muito significativa. O segundo objectivo foi analisar o ambiente artístico e literário da época, e como Camões estava inserido numa rede de artistas e poetas que o influenciaram. E, por fim, o terceiro objectivo foi reinterpretar a obra de Camões à luz do Maneirismo, tal como o fez Jorge de Sena, e Aguiar e Silva, afastando-se da visão tradicional que o associa e limita ao Renascimento tardio.

Como foi o processo de investigação para este livro, especialmente no que toca às descobertas documentais?

O processo de investigação foi, sem dúvida, um desafio. Grande parte da pesquisa envolveu o acesso a arquivos que permaneciam por explorar: o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o Arquivo Distrital e a Biblioteca Braamcamp Freire em Santarém, a Igreja do Milagre, o arquivo Cadaval em Muge, o Arquivo Distrital de Évora, o Palácio de Vila Viçosa, e muitos outros locais. Esses arquivos trouxeram à luz correspondência, contratos, referências e mais documentos inéditos, que nos permitiram reconstituir relações do tempo de Camões e novos dados sobre figuras importantes do seu tempo com quem se relacionou, como a família Coutinho, por exemplo.

Uma das grandes novidades do livro é o achado de um poema inédito de Camões. Este poema, de carácter picaresco, foi escrito num contexto de boémia, antes de 1553, a partida para a Índia, e revela o lado mais irreverente do poeta. Ao contrário do que se pensava, Camões não estava isolado; ele fazia parte de uma comunidade de literatos que partilhavam ideias e produziam textos em conjunto. Este poema jocoso, um mote com seis voltas, é um exemplo claro disso: foi escrito em colaboração com outros poetas da época, como Diogo Bernardes, Diogo Paiva de Andrade e António Ferreira, mostrando o dinamismo literário e as relações literárias boémias que o vate se integrava.

Como é que estas descobertas mudam a forma como vemos Camões hoje?

Estes achados e indagações ajudam a desconstruir alguns dos mitos e lendas em torno de Camões. Tradicionalmente, o poeta tem sido visto como uma figura quase isolada, uma espécie de herói-símbolo solitário do império português. O que este livro revela é que Camões estava inserido numa rede de relações culturais e literárias muito mais amplas e que influenciaram profundamente o seu trabalho. Tem-se lido Camões como poeta isolado do contexto dos seus contemporâneos, como Jerónimo Corte-Real ou Diogo Bernardes, com quem afinal (aqui se mostra) teve mesmo relações. Além disso, o livro propõe uma nova leitura estética da sua obra, inserindo-o nos cânones do Maneirismo. Camões não foi apenas um poeta do fim do Renascimento; ele viveu numa época de grande instabilidade política e religiosa, marcada por guerras e conflitos, em Portugal e no Mundo. O Maneirismo, com a sua ênfase na ambiguidade e no desconforto, é a corrente estética que melhor se ajusta à sua obra.

Camões foi um homem profundamente crítico da sociedade do seu tempo. Ele questionou o mundo em que vivia, como se pode ver nas suas obras, tanto na épica como na lírica e também no teatro e nas cartas. A sua poesia expressa a dúvida, a angústia e o desconforto de viver numa época marcada pela crise que levou ao fim da dinastia de Avis e pela subsequente união com a Espanha dos Filipes, uma mudança que reflectiu a grande instabilidade vivida no seu tempo. A sua visão do império também não é triunfalista nem apologética, como muitos querem fazer crer. O poeta do Amor, que tem uma espécie de alter ego no seu Velho do Restelo, é um humanista que critica a corrupção, a violência e as injustiças que encontrou nas suas viagens, especialmente no Oriente.

Em relação aos mitos sobre os amores de Camões, pode clarificar algumas das confusões que surgiram ao longo do tempo?

Um dos mitos mais recorrentes, propagado por autores como Hermano Saraiva e Aquilino Ribeiro, é o de que Camões teria tido um envolvimento amoroso com Violante e Joana de Andrade, figuras da casa de Linhares. Outros mencionam, sem fundamento algum, a própria Infanta D. Maria. Na realidade, o amor conhecido de Camões foi por Dona Catarina de Ataíde, aia da corte, e essa relação contrariada, tão bem tratada na sua poesia, levou ao seu desterro para Punhete (actual Constância), e posteriormente para Ceuta. Este é um dado que o livro atesta com base em novos documentos. A relação de Camões com Catarina de Ataíde é muito mais sólida do ponto de vista documental do que as histórias associadas a outras figuras que alguns autores sugeriram erroneamente. Com o estudo de Mário Rui Silvestre, é possível esclarecer melhor a vida amorosa de Camões, mostrando a sua ligação afectiva mais profunda com Dona Catarina de Ataíde e as consequências dessa relação.

O livro também aborda a ligação de Camões a Santarém. Como é que isso contribui para o património cultural da cidade?

A ligação de Camões a Santarém e ao Tejo são aspectos fundamentais deste livro. Santarém, ao tempo a nobre Scalabicastro, como o poeta a refere, foi um importante centro cultural durante o Renascimento e o Maneirismo, e a sua relação com Camões é agora reforçada por estas novas descobertas. O livro explora o ambiente em que o poeta viveu, destacando a influência de figuras como a família de Gastão e Gonçalo Coutinho, que apoiou Camões em várias fases da sua vida, e as suas relações provadas com Vaqueiros e outros lugares, caso do paço de Almeirim, de Pernes e Vale Figueira.

Acredito que este livro pode ajudar Santarém a reivindicar o seu lugar como um centro cultural relevante na história de Portugal. Há muitos elementos do património da cidade que ainda estão por valorizar. Santarém tem um legado arquitectónico e artístico de que se destaca geralmente o período do Gótico, mas o seu papel no Renascimento e no Maneirismo também é significativo e merece ser mais explorado. Este livro traz uma nova perspectiva sobre a importância da vila no contexto cultural e artístico do século XVI.

O que falta fazer em termos de preservação do património de Santarém?

Muito já foi feito, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Temos arquivos que ainda não foram devidamente investigados e muitos elementos do nosso património estão mal preservados. Acredito que a preservação do património deve ser uma prioridade, não só a nível nacional, mas também local. As autarquias têm um papel fundamental na valorização da nossa memória histórica e cultural. E esta valorização deve começar nas escolas, com programas educativos que promovam o conhecimento e o respeito pelos bens patrimoniais.

Há também a necessidade de uma maior comunicação entre os investigadores e o público. Muitas vezes, o trabalho dos académicos não chega às pessoas. É preciso criar canais de comunicação que tornem o conhecimento acessível, especialmente para as gerações mais jovens. Isso passa, por exemplo, pela melhoria das infra-estruturas turísticas e culturais, pela formação de guias e pela criação de roteiros culturais que integrem os monumentos e locais históricos de cidades como Santarém.

Como espera que este livro seja recebido pela comunidade académica e pelo público em geral?

Espero que o livro seja lido com uma visão crítica justa. É uma obra que nasce da colaboração improvável entre um escritor e um historiador de arte e se baseia numa basse heurística, com profunda honestidade no tratamento das fontes e que traz novas perspectivas sobre a vida e obra de Camões. Acredito que pode inspirar novos estudos e incentivar uma releitura da obra camoniana, não só em Portugal, mas também a nível internacional. Camões é estudado em academias e universidades em todo o mundo, e penso que este livro oferece novas ferramentas para compreender melhor o seu legado.

Além disso, acredito que o livro pode ser um motivo de orgulho para Santarém e para a sua população. A ligação de Camões a esta cidade, onde sua mãe nasceu e ele de certeza teve parte da formação clássica, deve ser mais explorada e valorizada, e este livro é um passo nesse sentido. Esperamos que o público o leia, o critique e que, acima de tudo, o veja como um contributo útil para a compreensão do nosso passado cultural.

Considera que este livro pode “agitar as águas” no estudo de Camões?

Sem dúvida. O livro propõe novas leituras e desafia algumas das visões tradicionais sobre Luís Vaz de Camões. Acredito que vai gerar debate, especialmente entre os estudiosos que têm defendido uma visão mais convencional do poeta. Mas penso que isso é positivo. O estudo de Camões ainda tem muito a oferecer, e este livro é apenas o começo de uma nova fase na investigação sobre a sua vida e obra.

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