A coordenadora da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) para Lisboa, Vale do Tejo e Alentejo destaca o “desempenho positivo” da região em 2024, que registou apenas 1% da área total ardida no país, apesar de ter enfrentado condições meteorológicas extremas em Setembro. Em entrevista ao Correio do Ribatejo, Helga Soares alerta para a necessidade de manter a vigilância comunitária, reforçar a gestão da vegetação e combater a falsa sensação de segurança: “Menos incêndios não significa menos risco.”

Em 2024, a região de Lisboa e Vale do Tejo registou uma redução significativa de ocorrências e de área ardida face a anos anteriores, mas ainda assim foi exposta a condições meteorológicas extremas em Setembro. Que balanço faz do desempenho regional, considerando este contraste?

A região de Lisboa e Vale do Tejo registou um desempenho bastante positivo em 2024, quer ao nível do número de ocorrências, quer de área ardida. Registou apenas 13% das ocorrências de incêndios em todo o país e 1% da área total ardida.

Apesar deste bom desempenho global – a região terminou o ano de 2024 com 1 279 hectares ardidos, ou seja, menos 60% face à média do período de 2018-2023 (que foi de 3 176 hectares ardidos), e com 837 ocorrências, o que se traduz numa diminuição de 33%. LVT esteve entre as regiões expostas, ainda que parcialmente, a condições meteorológicas extremas em Setembro – um evento que originou os índices de perigo mais elevados dos últimos 25 anos.

Importa salientar que cerca de 76% da área ardida na região ocorreu em dias de meteorologia severa, o que confirma a sua vulnerabilidade a eventos críticos, mesmo quando o número de ignições é relativamente reduzido. Ainda assim, o contraste entre a baixa área ardida e o número de ocorrências e a elevada perigosidade meteorológica, demonstra que a região conseguiu responder com eficácia a um cenário adverso, o que é um sinal positivo da resiliência do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR).

O caso de LVT evidencia que é possível reduzir ignições e área ardida com eficácia e de forma sustentada, mas também que a exposição a fenómenos meteorológicos extremos exige uma preparação contínua e a ajustes permanentes.

O relatório aponta que 71% das ignições na LVT tiveram causas acidentais. Quais são as principais fragilidades identificadas no comportamento das populações ou na fiscalização que podem explicar esta percentagem?

Apesar da redução geral no número de ocorrências, o relatório evidencia que, em 2024, as causas acidentais estiveram na origem de 71% da área total ardida na região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT).

Este dado revela que os comportamentos negligentes continuam a ter um impacto desproporcional, frequentemente originando incêndios que se descontrolam numa fase inicial e evoluem rapidamente para incêndios de grandes dimensões.

Por outro lado, em 2024, apenas 16% das ignições tiveram causa acidental, o que indica que persistem comportamentos de risco, sobretudo relacionados com: queimas e queimadas mal controladas; atividades agrícolas ou florestais com uso de máquinas em períodos de risco; e falta de cumprimento de normas básicas de segurança em zonas rurais e periurbanas. Estas acções, mesmo sem intenção criminosa, têm elevado potencial de gerar ignições em contextos de vegetação seca.

Assim, apesar dos bons resultados regionais, os dados indicam que há margem significativa para reforçar a educação para o risco, a fiscalização efectiva e o acompanhamento técnico das atividades humanas em zonas rurais.

O Programa Nacional de Ação já atingiu 62 Operações Integradas de Gestão da Paisagem aprovadas, mas o impacto prático na LVT ainda é pouco visível. Que operações específicas estão em curso na região e qual o calendário de execução?

Na região de LVT, estão aprovadas 11 Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP), todas localizadas no Médio Tejo (MT) e que totalizam cerca de 29 778 hectares de intervenção com um investimento de 42 444 801,05 € – valor que é proveniente do PRR e que constitui financiamento efectivo às entidades gestoras locais – decorrendo agora o prazo para que as operações se materializem. Os contratos-programa associados já foram celebrados, pelo que as primeiras intervenções práticas mais visíveis deverão iniciar-se em 2025.

Prevêem-se um conjunto de medidas para alteração da paisagem, como a diversificação do uso de solo, a redução da continuidade de combustível, a criação de mosaicos agro-florestais, a remuneração de serviços de ecossistemas e a valorização do capital natural e a recuperação das estruturas tradicionais na paisagem, como os socalcos agrícolas.

Em termos de prevenção, a AGIF sublinha a necessidade de melhor gestão da vegetação na interface urbano-rural. Como está a ser feito este trabalho na LVT e quais são as prioridades para este ano?

A gestão da vegetação na interface urbano-rural é uma prioridade crítica para a prevenção de incêndios. O trabalho nesta frente tem evoluído, mas com desafios persistentes especialmente na fiscalização e na sensibilização. Persistem desafios estruturais, como o incumprimento de obrigações legais (40% de situações de incumprimento não regularizadas), e temos que priorizar a execução de projetos em larga escala, nomeadamente de soluções como o pastoreio e implementação de mosaicos.

O projeto da Rede Secundária de Faixas de Gestão de Combustível (Rede Secundária de FGC) materializa grande parte destas obrigações legais e pretende reduzir os efeitos da passagem de incêndios, protegendo de forma passiva vias de comunicação, infra-estruturas críticas e equipamentos sociais, aglomerados populacionais, áreas florestais e agrícolas com valor especial e o isolamento de potenciais focos de ignição de incêndios. As FGC são planeadas e executadas pelas entidades responsáveis, sendo que na prevenção, e nos períodos apropriados é essencial que os cidadãos realizem a gestão de vegetação em torno das suas habitações e propriedades.

As prioridades para este ano centram-se assim em aumentar a eficácia das intervenções, replicar boas práticas e acelerar a implementação de soluções sustentáveis e adaptadas ao território.

A campanha Portugal Chama e os programas de sensibilização junto das comunidades têm tido resultados positivos a nível nacional. Que avaliação faz do envolvimento da população na LVT e quais os maiores desafios comportamentais?

O envolvimento da população da região de LVT em campanhas de sensibilização como “Portugal Chama” e “Floresta Segura” tem registado progressos relevantes, mas também evidencia desafios comportamentais persistentes. Na região, as campanhas têm-se focado especialmente na redução do uso negligente do fogo.

As populações demonstram maior compreensão das restrições e das boas práticas em períodos de risco elevado, utilizando menos o fogo nos dias de maior risco, o que nos indica que as campanhas e as medidas que se têm vindo a implementar, têm conseguido fazer passar as suas mensagens, sendo evidente que as pessoas têm ouvido e respondido com responsabilidade. Isto reflete-se numa menor taxa de ocorrências.

De facto, a maior contribuição individual é precisamente optar por não utilizar o fogo nos dias críticos e recorrer a métodos alternativos, como a incorporação no solo ou a compostagem, pois sabemos que qualquer ignição, em condições meteorológicas extremas, pode rapidamente evoluir para um incêndio de grandes dimensões e é isso que queremos evitar ao máximo. Se há risco, não arrisque.

Na prevenção, e nos períodos apropriados é essencial que os cidadãos realizem a gestão de combustível (limpeza de terrenos) em torno das suas habitações e propriedades. Ao fazê-lo, não só estão a proteger-se a si e às suas famílias, reduzindo aquilo que sabemos serem os trágicos impactos dos incêndios, como também estão a contribuir para a diminuição da quantidade de combustível (vegetação) disponível, que potencia a propagação dos incêndios, criando assim melhores oportunidades para um combate efectivo. É importante prevenir durante o Inverno, para reduzir o risco no Verão. E todos temos um papel ativo na prevenção. É importante não esquecer que – a prevenção começa em si!

Os maiores desafios comportamentais na LVT relacionam-se com: i) a alteração de comportamentos negligentes – com muita área ardida atribuível a descuidos em queimas, queimadas ou uso de maquinaria; ii) aumento da adesão a programas comunitários estruturados – gestão de aglomerados e programas como “Aldeias Seguras, Pessoas Seguras”, o que revela que temos que promover o aumento da organização comunitária para lidar com o risco rural, especialmente nas interfaces urbano-rural; e iii) continuidade e repetição das acções – muitas acções são pontuais, com seguimento regular ou envolvimento contínuo das populações locais deficiente. Isto limita o impacto de longo prazo na mudança de atitudes e hábitos.

Por outro lado, o bom desempenho recente da região pode gerar falsa sensação de segurança, reduzindo o nível de vigilância e o cumprimento voluntário das medidas de autoprotecção.

A região revela um comportamento ainda frágil face ao risco, exigindo mais educação prática, continuidade e reforço das campanhas, e programas comunitários mais enraizados. Os maiores desafios são a percepção reduzida do risco, a negligência em atividades rotineiras e a baixa organização colectiva para a prevenção.

Os incêndios de 2024 voltaram a expor falhas na coordenação estratégica e na antecipação dos riscos, mesmo com alertas emitidos com antecedência. Que melhorias concretas estão a ser implementadas para corrigir estas fragilidades?  

O relatório SGIFR 2024 destaca várias acções em curso e previstas a nível nacional e regional que se aplicam diretamente a LVT, desde logo: a utilização da plataforma digital de interoperabilidade (www.sgifr.gov.pt), que permite a partilha de informação entre entidades operacionais, técnicas e decisores políticos, reduzindo falhas de comunicação e redundâncias; o estudo de redimensionamento dos meios, iniciado em 2025, um estudo nacional para alinhar recursos terrestres e aéreos com as necessidades operacionais regionais, incluindo a LVT; e, em termos de comunicação, o relatório de apoio ao planeamento para a vigilância e detecção, focado nos incêndios de grande dimensão em florestas e matos, elaborado pela Célula de Apoio à Vigilância da Floresta (CAPVI) – estrutura de coordenação e apoio operacional criada com o objetivo de reforçar a vigilância, dissuasão de ignições e resposta rápida no âmbito da prevenção de incêndios rurais, especialmente durante o período crítico de risco. Este relatório é também disponibilizado aos técnicos das CCDR e das Entidade Intermunicipais.

Estas medidas visam contribuir para melhorar a coordenação e antecipação. A efectividade destas soluções dependerá da sua conclusão e da capacidade de articulação entre os vários actores – autarquias, CCDR, ANEPC, ICNF e forças de segurança.

O relatório indica que 84% da área ardida em 2024 teve origem em actos de incendiarismo. Mesmo com números absolutos mais baixos, esta continua a ser uma realidade preocupante. Há medidas específicas para dissuasão e acompanhamento de reincidentes na LVT?

Apesar de ter havido uma diminuição do incendiarismo nos últimos anos, a sua representatividade relativa aumentou, dado o muito significativo decréscimo das causas relacionadas com o uso do fogo. A elevada percentagem de área ardida atribuída a actos de incendiarismo é, não obstante, uma realidade preocupante, sobretudo porque revela que, apesar da redução de área ardida total, a intencionalidade criminosa continua activa.

O incendiarismo continua fortemente associado a factores sociais e psicológicos, como o alcoolismo, a exclusão social e perturbações mentais, com destaque para comportamentos miméticos induzidos por imagens televisivas (influência da cobertura mediática).

No caso de Lisboa e Vale do Tejo, estão em curso algumas medidas específicas para dissuadir e vigiar, com foco na prevenção criminal e vigilância activa, especialmente em períodos de maior risco, nomeadamente: Reforço de patrulhas móveis em zonas de risco; Instalação de sistemas de videovigilância florestal, posicionadas em pontos estratégicos.

Apesar destas medidas, o incendiarismo é um crime de difícil prevenção, muitas vezes imprevisível e silencioso, pelo que o sucesso da estratégia depende também da participação activa das comunidades locais na denúncia e vigilância informal. 

Em paralelo, outro grande desafio é regionalizar e operacionalizar com o apoio das Comunidades Intermunicipais (CIM) e Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) – de forma mais ajustada aos contextos sociais e urbanos específicos da LVT – projetos transversais para integrar saúde mental e justiça criminal no combate ao incendiarismo.

O reforço do financiamento para a prevenção foi assinalável em 2024. A LVT já conseguiu captar verbas suficientes para implementar as medidas prioritárias, ou sente que ainda há um desfasamento face às necessidades?

Embora o financiamento nacional para a prevenção tenha aumentado significativamente, a LVT deve continuar no esforço de captar verbas disponíveis e incrementar a sua capacidade de execução plena, para estar à altura das suas necessidades e prioridades.

O Relatório de Atividades do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais de 2024 evidenciou que, apesar do reforço no combate, este revela-se insuficiente, na ausência de uma gestão ativa do território e valorização dos recursos florestais que reduzam a matéria combustível disponível para arder. Para reduzir o perigo de incêndio, a mobilização dos agentes privados, associativos e municipais deverá ser a prioridade da ação, revendo e reforçando os estímulos económicos e fiscais, mas também o financiamento, através de contratos-programa plurianuais estabelecidos para o alcance de objetivos claros, ambiciosos e mensuráveis, assentes num compromisso político forte, que garanta a articulação operacional e financeira entre as instituições. 

A região de LVT tem vindo a identificar claramente as suas necessidades: as CIM e os municípios têm feito um grande esforço financeiro, tanto na gestão de combustível, como no reforço de meios de combate a incêndios, no entanto, continua a existir um desfasamento entre as necessidades no terreno e os recursos efetivamente disponibilizados. Embora existam mecanismos de financiamento, tem-se verificado que os critérios de elegibilidade nem sempre se adequam à realidade da LVT.

Um dos desafios apontados no relatório é a percepção de menor risco por parte das populações, à medida que os incêndios diminuem. Sente que isso já se faz notar na LVT? Que estratégias estão a ser preparadas para manter a vigilância comunitária activa?

Sim, a menor percepção do risco por parte das populações e uma dessensibilização face ao problema é um desafio real e crescente – e esse fenómeno já se começa a fazer notar também na região de LVT.

À medida que há menos incêndios ou ausência de grandes ocorrências, é natural que a percepção de risco por parte das populações diminua. Esta é uma resposta humana comum, quando não há eventos marcantes no presente recente – tende-se a baixar a guarda, mesmo que o risco real continue elevado.

Contudo, menos incêndios não significa menos risco, e, portanto, a prevenção continua a ser a melhor resposta. É por isso importante continuar a transmitir mensagens de comunicação pública que podem ser usadas em campanhas de sensibilização locais, redes sociais, outdoors ou eventos comunitários, com o objetivo de aumentar a percepção do risco e manter a vigilância activa.

Em resposta, estão em marcha estratégias que combinam comunicação mais próxima, educação contínua (por exemplo, o projeto infantojuvenil “Raposa Chama”, dirigido a crianças e jovens dos 5 aos 12 anos, que se encontra em fase de expansão e visa criar literacia de risco desde a infância) e ferramentas digitais para manter a vigilância comunitária viva e relevante, mesmo em anos de menor severidade aparente. O desafio é manter o engajamento voluntário sem depender do choque de grandes incêndios para reactivar o alerta coletivo. O sucesso passado não é garantia de segurança futura. 

Por fim, olhando para a meta de manter a área ardida decenal abaixo dos 660 mil hectares a nível nacional, que contributo espera que a LVT dê nos próximos anos para esse objetivo?

No âmbito nacional, o Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais/Programa Nacional de Ação 20-30 (PNGIFR| PNA) define as metas nacionais para alcançar a Visão de um “Portugal protegido de incêndios rurais graves”, onde são potenciadas acções consistentes no tempo para a necessária alteração e valorização da paisagem e gestão de combustível em elevada escala.

O Programa Regional de Ação de Lisboa e Vale do Tejo (PRA-LVT) definiu como principais metas 2023-2030: A perda de vidas humanas em incêndios, embora sendo possível, seja um acontecimento considerado raro; A área ardida acumulada no período da década seja inferior a 73 000ha (i.e. redução de 43%); A percentagem dos incêndios com mais de 500 ha se fixar abaixo de 0.3% do total de incêndios; Um Programa de Reordenamento e Gestão da Paisagem; 225 000 ha com gestão de combustível efectiva e acumulado 2030: 820 000ha; 11 Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP) constituídas e com registo predial em territórios vulneráveis; Face à média (2010-2019) registam-se menos 80% de ignições (intencionais e negligentes) nos dias de elevado risco de incêndio; Adopção de melhores práticas por 70% da população das áreas com maior risco.

Importa referir que o PRA-LVT conta com 48 projetos, que são transpostos do nível nacional e que se articulam numa constelação, cada um à sua medida, para o cumprimento das metas definidas ao nível regional.

A região de LVT tem condições para dar um contributo significativo e sustentável para o cumprimento das metas nacionais, mantendo e reduzindo o nível de ignições, executando as OIGP e contribuindo com soluções inovadoras de gestão do risco. Dada a sua geografia mista (urbana, periurbana e rural), pode desempenhar um papel importante para estratégias de interface urbano-rural, com boas práticas passíveis de replicação noutras zonas do país.

A região de LVT está assim bem posicionada para continuar a ser uma aliada na meta nacional de manter a área ardida abaixo dos 660 mil hectares até 2030 e nas demais metas. Se conseguir manter a sua trajectória de baixa ignição e área ardida, e desbloquear a execução dos seus programas estruturais, poderá cumprir o seu papel.

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