A vida de Maria Serrano deu um livro. Intitulada “Órfã de Pais Vivos”, a obra, lançada em Abril de 2015 – e reeditada recentemente – é um retrato contundente, onde a autora resgata memórias e, ao mesmo tempo, (re)constrói a sua identidade.

Colaboradora, primeiro, no Centro João Paulo II da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) e, agora, na Unidade de Cuidados Continuados Bento XVI, ambas em Fátima, com a mesma função – Actividades Ocupacionais dos utentes – Maria de Jesus tinha apenas 17 meses quando foi entregue, juntamente com a irmã, Manuela, aos cuidados de uma instituição de acolhimento.

Fruto de um relacionamento entre um homem cigano e uma mulher que não tinha ligações com aquela etnia, as irmãs sentiram, bem cedo, as consequências de uma cultura que preza a transmissão dos seus valores, por vezes de uma forma demasiadamente rígida e proteccionista.

Nascidas em Coimbra – rejeitadas por ambas as famílias – viveram com o pai, António, na rua, durante alguns meses, na zona de Moscavide: dormiam em caixas de peixe. A mãe, perdeu-lhes o rasto.

Acabariam por ser entregues na Fundação Obra Nossa Senhora da Purificação, em Lisboa. Com apenas dois anos, veio para Fátima e foi aí que criou raízes e encontrou uma nova família. O pai, só o viria a conhecer com 11 anos. Depois, apesar das promessas de que as visitas se tornariam mais frequentes, só o reencontrou, em França, há cerca de três anos, já António estava na fase final da sua vida.

“Um encontro com serenidade e sem dramas”, que lhe permitiu fazer as pazes com a sua história pessoal: “já o tinha desculpado. Foi uma espécie de epílogo deste capítulo, um ciclo que se fechou”, revela, sem esconder alguma emoção por detrás dos seus olhos verdes.

Ao longo de quase 200 páginas, Maria Serrano põe a nu o amor – ou a falta dele – no relacionamento materno, paterno, filial e fraterno, num registo autobiográfico que não se refugia em meias verdades nem em exercícios semânticos, ousando assumir, com franqueza e determinação, cada episódio da sua vida, em todas as dimensões, sem receio de pôr os nomes nas coisas.

Num livro que se lê de um só fôlego, com uma escrita cativante, pela sinceridade, sem subterfúgios, percebemos como a vida, em alguns momentos, lhe foi adversa.

Concluiu o curso técnico-profissional em Educação Social, em Lamego, trabalhou, depois, Mangualde, mas nunca perdeu de vista a enorme vontade que tinha de regressar a Fátima.

Aos 30 anos, conta, passou umas férias de Verão inteiras à procura de trabalho e as portas abriram-se no Centro João Paulo II da UMP: “uma grande escola de vida”, segundo afirma. Já lá vão 20 anos.

Na geografia da sua vida, Maria Serrano, conhecida carinhosamente como ‘Ju’ faz, nesta obra, as contas com a própria memória, mas fá-lo de uma forma elegante, porque não traz amarguras para o livro.

“A verdade, normalmente, é muito difícil, não só de se assumir, como de transmitir aos outros. A vida faz-se caminhando, ou aprendendo e construindo sempre, com alicerces solidificados, firmes de esperança alargada, compreensão e aceitação. Este livro foi pensado e escrito com o coração ao longo de dois anos. Durante esse período, recordei a dor e as angústias, mas também muitas alegrias e vitórias. Este é um livro pleno de gratidão, que foi escrito, sobretudo, com sentimento de superação, amor e saudade”, afirma Maria Serrano.

“Esta é uma simples obra, não me tomando escritora, longe disso. Sem conhecimento e pretensões literárias, quis escrever memórias de felicidade e alegrias tão memoráveis, jamais inesquecíveis; outras que tantas vezes sinto que não alcancei toda a libertação da carga mais pesada que me causou angústias”, afirma a autora sobre o seu livro, que serve um outro propósito: é uma tentativa de ajuda a crianças e jovens que viveram, e vivem, institucionalizadas.

“Todos os anos dezenas de crianças são abandonadas nas instituições portugueses. A grande maioria são casos sociais, sem retaguarda familiar, e ficam internadas anos a fio…. sem critérios sociais afectivos…. à espera de respostas …de sua família”, diz.

“E estas experiências marcam. Deixam uma ferida aberta e profunda, que dificilmente cicatriza. Mesmo quando parece sarada, diria que tem uma pele tão fina e sensível que rasga ao mais ínfimo toque. Mas temos que seguir em frente”, revela.

Por isso, este é também um livro de gratidão, de reconhecimento: “o livro são detalhes de mim. A minha vida não está aqui toda, estão alguns episódios que me marcaram e que, espero, tenham o condão de dar esperança. As coisas mais negativas conseguem ultrapassar-se” afirma, com um sorriso, concluindo: “é um livro sobre uma pessoa resiliente. Apesar das estradas sinuosas e dificuldades gigantes, conseguimos vencer, se tivermos coragem”.

E coragem não tem faltado a Maria Serrano: desde cedo tem contornado obstáculos e tem sabido fazer das contrariedades força de vencer. Essa força permitiu-lhe ultrapassar uma doença oncológica e, aos 50 anos, considera-se “uma pessoa feliz”, que precisa de estar constantemente a reinventar-se.

“O importante é a resiliência, saber contornar os problemas. Olho muito para a minha infância. O meu passado foi aquilo que me fez crescer e ser. O futuro ainda não estou lá”, afirma Maria Serrano que guarda, como um mapa, as palavras que o Papa Francisco lhe escreveu depois de ela lhe ter enviado uma cópia do seu livro : “Nunca estamos sozinhos, Jesus nos carrega aos ombros… Jesus nos acompanha”, concluindo: “por favor não vos deixeis que roubem a Esperança”.

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