A Quaresma representa para os cristãos um tempo de reflexão e de abstinência, durante os quarenta dias que antecedem a Páscoa, simbolizando o jejum que Jesus se impôs a Si próprio durante quarenta dias, no deserto, para descanso físico e espiritual. 

Em algumas localidades portuguesas, no primeiro dia da Quaresma, Quarta-feira de Cinzas, praticam-se alguns jogos tradicionais, como o jogo do Quartão, em que grupos de homens colocados nas imediações de alguma taberna lançam entre si um quartão de barro, e aquele que o não segurar convenientemente, deixando-o cair, tem de pagar uma rodada de vinho a todos os participantes na singela brincadeira. Na Chamusca e em Azambuja, pelo menos, ainda se mantém viva esta diversão.

A refeição deste dia é a primeira do tempo de jejum, consistindo, normalmente, em bacalhau cozido acompanhado com batatas e grelos, temperado com azeite, vinagre e alho. Desde logo, aqui se encontra a dimensão da Quaresma – tempo de abstinência.

Neste período, segundo os preceitos religiosos o povo deveria conter-se nas suas manifestações e atitudes, abstendo-se de cantar na rua ou nos campos e optando por refeições frugais, às quais era retirada a carne, e não deveria cometer actos que pudessem ser condenados pela moral pública.

Ora, é esta simbologia da Quaresma que nos interessa realçar, posto que, ao nível da vivência popular, este aspecto era seguido com imenso fervor e venerado respeito. Aliás, o que é confirmado por alguns hábitos ou costumes, como são as ladaínhas, a encomendação das almas, a procissão dos fogaréus e até o enterro do bacalhau.

Outro costume, que ainda hoje é muito guardado é o de não se comer carne em Sexta-feira de Paixão, por corresponder ao dia da morte de Jesus Cristo pregado na Cruz. Em muitas famílias, o jejum carnal ocorria em todo o período da Quaresma, mas mesmo quem não o respeitasse tão convictamente ao menos nesta Sexta-feira não comeria carne. Em bom rigor esta interdição era até uma redundância em relação ao povo mais pobre, que não tinha dinheiro para comprar carne… Os mais abastados pagavam a bula, e, claro, estavam livres do pecado. Então, comiam até fartar!

A Quaresma era, assim, um tempo de silêncio, de recolhimento, de oração e de penitência. Renunciava-se às diversões. Mesmo nos campos, durante os trabalhos ou no caminho entre a casa e os campos, os cantos profanos, alguns a roçarem mesmo a brejeirice, davam agora lugar aos cânticos penitenciais. Com o passar dos anos, e dada a generalizada iliteracia popular, muitos desses cânticos religiosos assumiram uma expressão mais profana, porém, sempre invocando a história da Paixão de Cristo e da Sua Ressurreição.

Aproximando-nos do Domingo de Páscoa anuncia-se o fim da Quaresma, este tempo de abstinência e de fé profunda durante o qual o povo agia no maior respeito pelo sacrifício de Cristo. Mesmo quem não fosse convictamente praticante era, pelo menos, “temente” a Deus. Vividos os excessos próprios do Carnaval, período de catarse e factor de coesão social nas comunidades rurais, vivia-se com a maior sobriedade a Quaresma, jejuando-se da carne e olvidando-se os folguedos, que não eram tolerados pela Igreja.

Em muitas regiões do nosso país a celebração dos dias das Comadres e dos Compadres ocorria durante a Quaresma, porém, mesmo se tal festividade ocorresse ainda em período carnavalesco acabava por ter reflexo na Semana Santa, posto que era no Domingo de Páscoa que os Compadres ofereciam as amêndoas às respectivas Comadres, gesto que estas retribuíam no Dia de Todos os Santos, oferecendo-lhes as broas.

 Mais ou menos a meio da Quaresma era vulgar realizar-se a Serração da Velha, festividade que sinalizava o final do Inverno, marcando o fim do tempo velho que antecedia a juventude simbolizada pela Primavera, fase em que a vegetação rebentava e as produções agrícolas medravam a olhos vistos. Por outro lado, esta festividade permitia também satirizar as pessoas mais “velhas” nas aldeias, que, por questões de mentalidade, reprovavam severamente a atitude dos mais jovens, esquecendo-se de que também elas já tinham sido jovens e, do mesmo modo, cometido algumas acções menos sensatas.

Outra celebração própria da Quaresma é o canto dos Martírios, que consiste na entoação de melodiosos cânticos, interpretados numa atitude de respeito e de profundo pesar, pois, está-se em véspera da morte de Jesus Cristo. Na vila de Boidobra, no concelho da Covilhã, ainda se realiza anualmente esta festividade. À noite, a iluminação pública apaga-se deixando as ruas apenas com a luz ténue das tochas, e duas pessoas colocadas nos pontos mais altos da vila – o campanário da igreja matriz e a janela mais alta – começam a cantar:

“Já o céu se cobria de luto / O campo de várias flores/
Já crucificaram Jesus / Por causa dos pecadores.”

O silêncio é absoluto, apenas se ouvindo as vozes num murmúrio pungente, chegando-se ao ponto de se evitar andar nas ruas para não fazer barulho. Esta é uma tradição cuja origem se perde na noite dos tempos. 

Os Martírios são um exemplo bem vivo do que eram os cânticos religiosos pela altura da Quaresma. Quadra a quadra evoca-se todo o sofrimento, toda a agonia, todo o martírio de Cristo na Cruz. Três badaladas do sino indicam o fim dos Martírios, após o que a população recolhe a casa, ciente de que a tradição foi cumprida um ano mais.

Estas são algumas das tradições associadas ao termo da Quaresma, revivendo-se ainda actualmente algumas delas, enquanto outras apenas subsistem apenas no imaginário das gerações mais antigas. 

Em sábado de Aleluia, terminado o tempo de jejum, fazia-se habitualmente o Enterro ou Julgamento do Bacalhau, através de um cortejo fúnebre em que participavam, simbolicamente, o padre, o doutor juiz, os advogados de defesa e de acusação, o oficial de diligências, o réu bacalhau e as testemunhas – azeite, salsa, alho, pimenta e outros condimentos.

Enquanto se encomendava a alma do defunto bacalhau ia-se anunciando o respectivo testamento, satirizando os beneficiados com algum legado, o que envolvia sempre uma crítica social, condenatória ou denunciante de alguns pecadilhos cometidos ao longo do ano. Esta festividade, num misto de paganismo e de religiosidade popular, está para o fim da Quaresma como o Enterro do Galo está para o Carnaval.

O sermão era lavrado em versos como este que foi cantado há alguns anos em Soutocico:

Batam sinos nas capelas / Bandeiras a meio pau / Moços velhos e donzelas /
Ponham luto nas panelas / Que morreu o bacalhau.

E eis que é chegado o Dia de Páscoa, que nos lembra o compasso pascal, a reunião da família e as amêndoas que neste dia se oferecem aos afilhados e a pessoas a quem se devam favores ou atenções. Porém, o mais relevante é o simbolismo desta data para os crentes, que acreditam que a Vida eterna começa após a morte terrena. Boa Páscoa!

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