O bibliófilo Alberto Manguel lamentou, em Torres Novas, que as bibliotecas públicas desenvolvam uma “luta de formiga” ao procurar fomentar a leitura “num oceano de forças negativas” de uma sociedade marcada pelo consumismo e a falta de ética.
O ensaísta e bibliófilo de nacionalidade argentina e canadiana foi o conferencista convidado do III Encontro de Bibliotecas Associadas à Comissão Nacional da UNESCO que se realizou hoje no auditório da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes, em Torres Novas (distrito de Santarém), tendo por tema “A Felicidade”.
Em entrevista à Lusa, no final do encontro, falou do seu próximo projecto – uma “história das utopias” – e de bibliotecas, da leitura como subversão, e das dificuldades que a criação de leitores impõe, num contexto social mais amplo.
“Quando falamos de problemas das bibliotecas, da criação de novos leitores, de educação, de comportamento cívico, de violência, não são problemas isolados, são problemas da estrutura da nossa sociedade. Não podemos pedir que uma biblioteca funcione como um centro de criação de cidadãos éticos dentro de uma sociedade que não é ética”, disse Alberto Manguel à Lusa.
Contudo, apesar de todas as dificuldades, Manguel acredita que, “se a espécie humana vai sobreviver como criaturas com inteligência” – de que não tem grande esperança – “será em grande parte devido ao esforço do pequeno bibliotecário da pequena biblioteca da pequena cidade, que continua acreditando que a leitura é importante e que a inteligência tem valor”.
Quando foi director da Biblioteca Nacional da Argentina, Manguel deu início a um projecto de formação de professores a que chamou “apaixonados pela leitura”, por acreditar que as crianças aprendem por imitação, e que pessoas verdadeiramente apaixonadas pelos livros deixam transparecer essa paixão, conquistando aqueles que ensinam.
“Há que ser visivelmente apaixonado. É a única coisa que podemos fazer” para lutar contra os preconceitos de uma sociedade marcada pelos valores do consumo, disse à Lusa, salientando que, “na história da escrita, os leitores nunca foram a maioria, sempre foram a elite, mas é uma elite à qual todos podem pertencer, é como um clube elitista, mas com as portas abertas”.
Para Alberto Manguel, a tarefa de criação de leitores “é dificílima” na “sociedade suicida” em que vivemos, e a esperança está na “inteligência e na imaginação dos jovens”.
“Se conseguirmos dizer-lhes que a melhor forma de rebelião está na sua inteligência, que a leitura é a forma mais efectiva de subversão, quem sabe podemos conseguir algo”, declarou, salientando que “se cada leitor converter um leitor, imediatamente duplicamos o número de leitores”.
“Vimos ao mundo como criaturas capazes de reflectir, de imaginar, de ter um sentido ético e muito disto na sociedade da escrita passa pela literatura, aprendemos empatia através das personagens da ficção, aprendemos a comunicar uns com os outros, aprendemos a memória dos nossos antepassados, a experiência passada”.
“Se a esses leitores em potência se inculca desde muito cedo não confiar na sua inteligência, não deixar que a sua imaginação se exercite, seguir as restrições dos sistemas educativos, que actualmente são campos de treino para o escritório e a fábrica, gradualmente tornamo-nos em seres que não reflectem, porque os valores da reflexão e da leitura são o difícil”, declarou.
Sobre o tema do encontro que o trouxe a Torres Novas, Manguel citou José Luís Borges, de quem foi leitor na juventude, para dizer que a leitura não pode ser obrigatória, “porque a felicidade não pode ser obrigatória”.
O seu próximo projecto – depois do último livro, “Embalando a Minha Biblioteca” – é o de escrever uma “história das utopias”, passando em revista todas as tentativas de criação de sociedades utópicas que falharam “por cobiça, por ambição, por incapacidade política”.
“O paradoxo essencial da nossa espécie é que, desde que começámos a ter consciência de nós mesmos, desde o aparecimento do Neanderthal ou mesmo do Sapiens, nunca podemos imaginar uma sociedade medianamente justa e medianamente feliz. Nunca. Sócrates quando, na República, passa em revista as formas de sociedade, não há nenhuma que lhe pareça efectiva para a felicidade humana”.
“Não sei por que é assim. Porque conseguimos inventar as coisas mais extraordinárias (pôr uma pessoa na lua, derrotar doenças terríveis) e não conseguimos imaginar como viver juntos e ser mais ou menos honestos uns com os outros, e mais ou menos felizes”, disse.
“Uma História da Leitura”, “Todos os Homens São Mentirosos”, “Dicionário de Lugares Imaginários”, “O Amante Extremamente Minucioso”, “No Bosque do Espelho”, “A Cidade das Palavras”, “Uma História da Curiosidade”, “A Biblioteca à Noite” e “Embalando a Minha Biblioteca” são alguns dos títulos de Manguel publicados em Portugal, que também incluem “Com Borges: Um Livro-Homenagem ao Excepcional Escritor Argentino”.
Além das bibliotecas da rede Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (33 membros e seis em processo de adesão), o encontro de hoje, em Torres Novas, contou com a participação de outras bibliotecas públicas de todo o país, tendo abordado temas como os 25 anos do manifesto da UNESCO, as bibliotecas como centros de aprendizagem e o futuro das bibliotecas públicas.