Não se sabe ao certo quantos foram, mas foram muitos milhares e instalaram na sociedade portuguesa o clima de medo que todos sentiram, nos anos da ditadura.

Segundo a historiadora Irene Flunser Pimentel, houve informadores em toda a sociedade portuguesa, desde operários a assalariados rurais, a escriturários, comerciantes, proprietários, médicos que traíram o seu juramento, jornalistas, fotógrafos, presidentes de Câmara e directores de empresa, militares e civis, homens e mulheres, jovens e de meia-idade, padres, que transmitiram o que ouviam na confissão, professores dos vários graus de ensino que denunciaram alunos e estudantes. Viu-se também que quase todos, além de ganhos financeiros e de partilha

 poder em ditadura, utilizaram o velho hábito da “cunha” para arranjar um emprego melhor ou subir na carreira da Administração Pública. “Tudo isto fez um mal terrível a Portugal”, considera Irene Pimentel, para quem o País não fez, ainda, o devido processo de catarse: “tentou-se varrer para debaixo do tapete esta circunstância de haver pessoas que denunciavam outras”.

A historiadora Irene Flunser Pimentel traçou, na passada sexta-feira, na sede da Sociedade Recreativa Operária de Santarém, um retrato dos informadores da PIDE, “a figura mais odiada” no pós-25 de Abril.

Prémio Pessoa, Irene Pimentel foi convidada para uma tertúlia inserida nas Comemorações Populares do 25 de Abril para falar de um aspecto da ditadura do Estado Novo que tem ficado na penubra: “os bufos e informadores da PIDE”.

Nesta conversa, Flunser Pimentel apresentou alguns dos resultados recolhidos pela sua investigação neste domínio e que estão coligidos no livro ‘Informadores da PIDE – A Tragédia Portuguesa’, que demonstra que a rede de grandes dimensões montada pela polícia política do Estado Novo é ainda uma realidade escondida que marcou a sociedade portuguesa do século XX.

“Curiosamente, quando lemos os jornais publicados logo após o 25 de Abril, a figura mais odiada é a do informador. É absolutamente revoltante a figura do delator, do ‘bufo’ ou do denunciante”, disse Irene Pimentel, confessando ter-se surpreendido, nesta sua pesquisa, com o aperfeiçoamento, ao longo dos anos, “do sistema de recrutamento de informadores em virtude da longevidade do regime e da existência de elementos da PIDE peritos na captação de informadores ou delatores”.

“Ser informador era, de um modo geral, por interesse próprio. Por isso, a delação é tão malvista. O problema é que havia sempre algo a ganhar”, disse a investigadora. Outros dos aspectos apontados pela historiadora é o facto de a PIDE também se ter infiltrado no seio de pessoas da chamada ‘situação’, ou seja, de pessoas que até eram do Estado Novo “para saber se seriam sempre fiéis”.

A investigadora revelou, ainda, que aquilo que a polícia política de Salazar “mais queria”, era conseguir informadores clandestinos dentro do PCP.

A investigação histórica demonstra que a PIDE infiltrou todos os “grupos” que se mostravam contra o regime, desde os “reviralhistas” até aos republicanos, monárquicos ou militares descontentes e ainda o PCP, “que foi o principal alvo”, sendo que muitos militantes comunistas foram “virados” depois de serem presos.

O “perfil” do informador começa por ser o de pessoas de baixa condição social, “como a Polícia Judiciária” fazia, mas a polícia política também foi buscar pessoas às classes mais privilegiadas da sociedade portuguesa.

“Havia médicos, jornalistas, padres, advogados…

Claro que muitas pessoas que pertenciam aos cargos do próprio Estado Novo, como os Governadores Civis, presidentes da Câmara, elementos de outras polícias, por exemplo, da PSP, da GNR, todos esses campos contribuam com informadores e isso foi algo que se verificou depois do 25 de Abril, porque havia a ideia de que eram só aqueles que estavam nas estruturas mais baixas da sociedade”, transmitiu.

Verifica-se também – ao longo dos 48 anos de regime ditatorial – a colaboração no “trabalho sujo” de muitas pessoas que não o faziam directamente, como os administradores de empresas que pediam à própria PIDE para estabelecer redes de informadores nas próprias companhias.

“A PIDE era muito importante para a obtenção do emprego porque era a polícia política que dava oficialmente a qualificação dos empregados da Função Pública e o Estado era o maior empregador do país”, recordou Irene Pimentel, referindo-se à penetração dos métodos da polícia política no mundo do trabalho.

“Com as empresas privadas é a própria empresa que utiliza a PIDE para a introdução de uma rede de informadores, para evitar a presença de eventuais agitadores, e isto já não era oficial. Neste caso era a troco de dinheiro”, refere Irene Pimentel, que dedica um longo capítulo aos “informadores no mundo do trabalho” e que incluiu a “folha” com os valores de pagamentos efectuados.

Quase cinco décadas após a Revolução, ainda não se sabe, ao certo, quantos informadores colaboraram com a polícia política, que recorria a métodos violentos, como a tortura, de que foram vítimas os presos políticos.

Contudo, Irene Pimentel estima que a dimensão da teia de informadores da polícia política aquando da Revolução de Abril, em 1974, seria na ordem dos de 20 mil: “a eficácia dos informadores acabava por ser maior, do que o seu número, devido à desconfiança que provocava e à apatia política.”

“O número atingiu os milhares, sendo que a rede de informadores se torna essencial para o trabalho da polícia política, muito mais do que a intercepção postal ou a escuta telefónica”, afirma Irene Pimentel.

A historiadora sublinha que a “PIDE conseguiu transmitir a ideia de que “meio mundo” informava sobre o resto da população portuguesa, que escutava toda a gente e que interceptava toda a correspondência: “a PIDE não estava por todo o lado, mas conseguiu passar precisamente essa imagem”.

“A eficácia dos informadores acabava por ser até maior, do que o seu número, devido à desconfiança que provocava e devido à apatia política que fazia com que muitos não interviessem politicamente, porque tinham medo também que os informadores estivessem por todo lado”, afirmou.

Ao longo da sua pesquisa, Irene Pimentel disse ter percebido que havia muitos candidatos a informadores: o Ministério do Interior, que tutelava, não só a PIDE, mas várias polícias, excepto a PJ, recebia permanentemente cartas de candidatos a informadores da PIDE.

“Era a própria PIDE que muitas vezes dizia: ‘Não, este não interessa nada, porque não tem conhecimentos no seio da oposição, toda a gente sabe que ele é a favor do Regime’. Portanto, eles também elaboravam um perfil para os que recrutavam”, contou.

“Tudo isto fez um mal terrível a Portugal”, disse Irene Pimentel, considerando que o País não fez, ainda, o devido processo de catarse: “tentou-se varrer para debaixo do tapete esta circunstância de haver pessoas que denunciavam outras, às vezes por motivos mesquinhos.”

Apesar de terem passado quase 50 anos desde o fim da ditadura, a historiadora, confrontada com as identidades dos informadores, decidiu manter, no livro, os nomes “sob reserva” porque os filhos e os netos “não têm de sofrer por causa dos pais e avós que foram informadores ou torturadores”.

Assim, os nomes referidos no livro são as identidades que já tinham sido tornadas públicas, sobretudo, na imprensa após 1974 ou em processos judiciais.

Neste encontro, Irene Pimentel, autora de uma vasta obra sobre a polícia política portuguesa, alertou ainda que, actualmente, várias democracias introduziram ou estão a estudar a introdução da “delação premiada” que beneficia “um criminoso que trai os seus cúmplices de crime”.

“O “bufo da PIDE”, como era pejorativamente nomeado o informador, era um delator premiado, ao fim e ao cabo. Mesmo que não recebesse dinheiro ao fim do mês, que era quase sempre, tinha alguns benefícios. Estava próximo do poder, podia utilizar a chamada “cunha”, e por aí fora”, defendeu.

“Pode afirmar-se que, além de provocar a desconfiança, a divisão e a polarização nas sociedades democráticas, à semelhança do que acontece em ditaduras, a delação não deve ser incentivada em democracia”, concluiu.

Irene Flunser Pimentel é mestre em História Contemporânea (Século XX) e doutorada em História Institucional e Política Contemporânea, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigadora do Instituto de História Contemporânea (FCSH da UNL), é autora de História das Organizações Femininas do Estado Novo (2000), que obteve o Prémio Carolina Michaëlis em 1999, de Fotobiografia de Manuel Gonçalves Cerejeira (2002), de Judeus em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Em Fuga de Hitler e do Holocausto (2006), Prémio ex-aequo Adérito Sedas Nunes, atribuído pelo Instituto de Ciências Sociais em 2007, de A História da PIDE (2007), que mereceu o Prémio Especial Máxima em 2008, de Tribunais Políticos. Tribunais Militares Especiais e Tribunais Plenários durante a Ditadura e o Estado Novo, em coautoria (2009), de Fotobiografia de José Afonso (2009), de A cada um o seu lugar (2011), que recebeu o Prémio Ensaio 2012 da Máxima, e de Salazar, Portugal e o Holocausto, em coautoria (2013). Foi distinguida com o Prémio Pessoa em 2007 e com o Prémio Seeds of Science, na categoria «Ciências Sociais e Humanas», em 2009, e condecorada com a Ordem Nacional da Legião de Honra pelo Governo de França em 2015.

Filipe Mendes

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