O Centro Cultural Regional de Santarém (CCRS) assinalou, no passado sábado, 29 de Novembro, 45 anos de actividade com uma mesa-redonda que reuniu fundadores, dirigentes, técnicos e o vice-presidente da Câmara Municipal de Santarém.
Entre memórias do pós-25 de Abril, projectos pioneiros que marcaram o território e o percurso de uma instituição que sobreviveu a cortes estruturais de financiamento, o encontro evidenciou a persistência colectiva que permitiu ao Centro manter-se como referência cultural na cidade e no distrito.
“Estamos a sonhar uma coisa que não existia”, recordou Nuno Domingos ao evocar os primeiros anos do CCRS, enquanto Madeira Lopes, actual presidente, sublinhou que a casa “continua com uma actividade plena”, sustentada por voluntários e por uma programação diversificada.
Para Emanuel Campos, vereador da Cultura, o Centro é hoje “um dos motores do desenvolvimento cultural contínuo do concelho”, testemunhando a importância da cooperação entre instituições e comunidade.
Quase meio século depois da sua fundação, o CCRS voltou a reunir alguns dos rostos que definiram o seu percurso. A mesa-redonda, moderada por João Paulo Narciso, director do Correio do Ribatejo, juntou fundadores, dirigentes e agentes culturais que revisitaram o processo de criação, consolidação, crise e reinvenção do Centro Cultural. João Paulo Narciso abriu a sessão lembrando a ligação pessoal à instituição, onde iniciou a carreira profissional em 1985, antes de sublinhar que o encontro procurava “desenhar o passado, gerar o presente e projectar o futuro desta casa cultural”.
As raízes: o impulso pós-25 de Abril
Os testemunhos dos fundadores sublinharam a forte marca histórica do Centro. A instituição nasceu em 1980, no rescaldo da Revolução, num contexto em que a Secretaria de Estado da Cultura procurava descentralizar a actividade cultural através da criação de centros regionais. As conversas iniciaram-se no Círculo Cultural Scalabitano e na Oficina da Criança, envolvendo agentes culturais de vários concelhos. Em 1979, a cidade de Tomar acolheu um encontro promovido pelo grupo GAMIA — Grupo de Apoio ao Movimento Inter-Associativo da SEC — que ajudou a definir as bases estatutárias, o modelo organizativo e as linhas de actuação do futuro CCRS, incluindo a criação de um Conselho Consultivo e de uma equipa técnica de animadores culturais.
A escritura notarial realizou-se a 10 de Julho de 1980. “Foi um momento agradável, promissor”, recordou Oliveira Luís, um dos subscritores. “Ele [o Centro] passou por algumas dificuldades, mas hoje está vivo, está cheio de energia.” Já Nuno Domingos destacou a ambição regional do projecto inicial: “O Centro Cultural é uma estrutura que começa a ser discutida e imaginada no Círculo Cultural Escalabitano. Estamos a sonhar uma coisa que não existia, mas que viria a dar muitos frutos.”
Da aquisição do edifício à afirmação distrital
O edifício onde o CCRS funciona — um antigo armazém de lentes e, antes disso, espaço de manutenção militar — foi adquirido por 9 mil contos, financiados em partes iguais pelo Estado, pela Fundação Gulbenkian e pela Câmara Municipal de Santarém. A posse de um espaço próprio consolidou o Centro como plataforma para agentes culturais do distrito, que encontravam ali apoio técnico, formação e orientação.
Foi neste período que se deu a entrada de vários técnicos, entre os quais Nelson Ferrão, que se juntou à equipa em Outubro de 1981. Ao lado de António José Amaral, Ana Caria e Alberto Serra (“o Berto”), a equipa construiu um modelo de funcionamento que articulava propostas da direcção com directrizes nacionais da Secretaria de Estado da Cultura, reforçando a ligação em rede entre os Centros Culturais Regionais então existentes.
Projectos pioneiros que marcaram o território
Os primeiros anos do CCRS foram marcados por projectos estruturantes que deixaram uma marca profunda no distrito. Entre estes destacou-se o levantamento técnico-musical e antropológico das 54 filarmónicas da região, coordenado por Nelson Ferrão, um trabalho que permitiu caracterizar repertórios, necessidades e dinâmicas associativas. Embora inicialmente previsto como financiado pela SEC, o projecto acabou por ser suportado pelo próprio Centro.
A formação e divulgação cinematográfica constituíram outro eixo essencial. As equipas técnicas estabeleceram ligações com estruturas culturais francesas e com o circuito nacional de cinema não comercial, permitindo trazer ao território práticas de formação pouco acessíveis na altura fora de Lisboa. Durante a mesa-redonda foi recordada uma acção de formação realizada em França, bem como iniciativas regionais, incluindo uma formação no Cartaxo, que mobilizaram agentes culturais e contribuíram para a criação de novos públicos.
A estes projectos juntou-se o mais ambicioso trabalho do Centro: o Diagnóstico Sociocultural do Distrito de Santarém, desenvolvido entre 1984 e 1989. A equipa percorreu os 21 municípios do distrito, recolhendo dados, identificando lacunas e delineando prioridades culturais. O projecto resultou na criação das primeiras equipas municipais de cultura, no reforço da coesão territorial e na produção de um diaporama regional e de seis ou sete estudos temáticos que, pela primeira vez, ofereceram uma visão integrada das dinâmicas socioculturais do distrito. “As câmaras perguntavam: ‘O que é que eu ganho com isso?’”, recordou Nelson Ferrão, referindo-se às resistências iniciais. Apesar disso, o impacto foi evidente: “O diagnóstico abriu portas e fez com que as câmaras passassem a ter alguém que pudesse ser interlocutor para a actividade cultural”, sublinhou Nuno Domingos.
A crise: o fim do financiamento estatal e a reinvenção necessária
A meio da década de 80, os Centros Culturais Regionais sofreram cortes estruturais de financiamento. A Secretaria de Estado da Cultura retirou apoios regulares e transferiu responsabilidades para os municípios, o que alterou profundamente o modelo de funcionamento. “O Centro Cultural, enquanto casa-mãe que se pretendia para o território, nunca foi financiado como tal”, afirmou Nuno Domingos. A falta de financiamento levou à redução da equipa e a uma transição progressiva para um regime de voluntariado.
Entre as figuras que marcaram este período destacou-se António José Amaral, cuja dedicação foi várias vezes salientada durante a sessão. “O Amaral teve pelo menos uns três anos que não recebia ordenado e continuava a trabalhar”, recordou Madeira Lopes, sublinhando que a própria direcção da época procurou resolver gradualmente dívidas acumuladas.
Sem apoio estatal, o CCRS transformou-se numa associação de âmbito local, dependente de actividades próprias, quotas e voluntariado. Sucederam-se direcções presididas por José Niza, Graça Morgadinho, Lurdes Asseiro, Elias Rodrigues e, actualmente, Madeira Lopes, que tem procurado reforçar a vitalidade da casa, integrar novos voluntários e renovar públicos.
O presente e o futuro: continuidade, identidade e novos públicos
Hoje, o CCRS mantém uma actividade regular nas artes visuais, fotografia, cinema, cerâmica, música e tertúlias. O Fado de Coimbra tem presença contínua há quatro décadas e o Centro continua a ser espaço de acolhimento, formação e experimentação. “Continuamos com uma actividade plena”, afirmou Madeira Lopes. “Temos já novos voluntários a apoiar e estamos a integrar gente jovem. Esta casa tem muito trabalho e, às vezes, é diariamente.”
Da plateia, Carlos Cruz sintetizou o sentimento de várias gerações: “Valeu a pena. Chego aos quase 88 anos com memórias excepcionais. Esta casa foi ninho de muitas actividades e iniciativas.”
O vice-presidente da Câmara, Emanuel Campos, destacou a importância do CCRS na identidade cultural escalabitana. “As associações culturais são pilares da identidade local”, afirmou. “O Centro é um modelo de continuidade histórica, um dos motores do desenvolvimento cultural contínuo do concelho.” Defendeu ainda que as autarquias devem ser “mais do que financiadoras”, assumindo-se como parceiras estratégicas na renovação de públicos, no reforço técnico e na valorização da memória do território.
Um percurso colectivo que continua
Quarenta e cinco anos depois da escritura de 1980, o CCRS permanece como espaço de encontro entre gerações, guardião de memória e laboratório de criação cultural. “O Centro Cultural já faz parte da história da cidade”, sublinhou Oliveira Luís. “Importa conservar porque é nossa pertença.”
A mesa-redonda encerrou com troca de lembranças e com um apelo vindo da plateia: que o Centro continue a ser casa de acolhimento para outras associações e projectos culturais. Um desejo que sintetiza o espírito da instituição e o compromisso dos que a mantêm viva — que viva mais 45 anos.

