Estamos em Janeiro de 1973: a então pacata vila de Rio Maior andava em sobressalto, uma vez que se iam avolumando os relatos que davam conta do aparecimento de carcaças de animais, meio devorados, nas zonas rurais de Estranganhola e Cencal.
Cabras, jumentos e ovelhas estavam a aparecer mortas, largadas no meio do nada, e as carcaças iam sendo encontradas por populares, sem que houvesse uma explicação lógica: o mistério adensava-se, até porque a zona não era habitat conhecido de predadores de grande porte.
Contudo, um dia, um pastor que estava a apascentar o seu rebanho na Estanganhola, um lugar do concelho próximo de São Sebastião, garante, a pés juntos, ter avistado um leão.
Este relato e as evidências dos animais mortos são provas mais do que suficientes para as gentes de Rio Maior passarem as noites em claro, temendo pela segurança dos filhos.
As portas estão com ferrolhos nas portas e de noite ninguém sai à rua. Mesmo durante dia, só se sai de casa quando é preciso e sempre com as devidas cautelas: passo apressado, coração ao pé da boca e olhar atento.
Pior é para quem vive nas aldeias e lugares rurais rodeadas de montes e descampados sem vivalma e que ninguém ousa atravessar. Só os mais temerários se atrevem.
A notícia corre a pavio curto: jornais e televisão enviam repórteres para o local a fim de darem cobertura ao caso. Entre as inúmeras reportagens que se fizera à época, é famosa a de Fernando Pessa (ver caixa), jornalista da RTP, que se desloca à terra, percorrendo os campos para entrevistar pastores e agricultores que terão avistado a fera.
Munido de capote alentejano e bicicleta, Pessa, com marcada ironia, vai interrogando para a televisão nacional os aldeões, se viram o leão. E alguns: “Que sim, ali mesmo…”. Juram todos a pés juntos que o leão existe e anda pelos campos a esquartejar o gado, refugiando-se, depois, nas matas, sem deixar rasto.
Rio Maior, que nunca aparecia nas notícias, surge agora nas primeiras páginas dos jornais. A população está assustada e exige soluções. Nesse sentido, são organizadas batidas à fera, conforme testemunha um Edital publicado no Correio do Ribatejo, onde se lê: “A Comissão Venatória Concelhia, em colaboração com a Câmara Municipal de Rio Maior, com autorização da Comissão Venatória Regional do Sul, nos termos de despacho de sua Excelência o Secretário de Estado da Agricultura, promove nos próximos dias 20 e 21 do corrente [Janeiro de 1973] a realização de batidas aos lobos e às raposas no concelho de Rio Maior, onde consta vaguear uma fera que tem posto em sobressalto as populações da região”.
Com concentração marcada para o Largo do Município, junto aos Paços do Concelho, prometia-se, pela módica quantia de 100 escudos, um autêntico Safari com direito a caça grossa.
Foi nesta mesma Praça do Município que, meio século depois, o Correio do Ribatejo encontrou memórias vivas dessa época, como as de Ernesto Frazão, actualmente com 84 anos.
Então motorista numa empresa de transportes, Ernesto recorda esses tempos de alvoroço, em que centenas de caçadores se aperaltavam para dar caça à fera: “Era um pandemónio. Era gente que vinha de todo o lado, com as caçadeiras aos ombros”, relata.
As caçadas levavam centenas de voluntários que, armados com espingardas, varas, cacetes e tudo o que encontram à mão, partiam à procura do leão. Mas, de leão, nem sinal.
Manel Ferreira foi também testemunha desses tempos: “o Leão morreu, mas a história está bem viva”, afirma. Tanto que, um pouco por todo o concelho, a história do leão está presente, quer seja no nome de estabelecimentos comerciais, como a ‘Espingardaria Leão’, os ‘Estores Leão’ ou a ‘Tinturaria Leão’, quer seja na doçaria tradicional.
Na realidade, são célebres os ‘Leões de Rio Maior’, umas queijadinhas de amêndoa, criadas por uma confeitaria da cidade, a Pastelaria Alcides, em homenagem ao acontecimento que, durante algum tempo, lançou o pânico na zona e catapultou Rio Maior para o centro das atenções nacionais.
Efabulação ou história real?
Com as batidas a revelarem-se infrutíferas e a produzirem pouco mais do que um par de raposas, a história teve, ainda assim, pavio curto: o animal evaporou-se e os habitantes voltaram a pôr o pé na rua e a dormir sem sobressaltos.
Sem sinal do leão, dizia-se que o animal não passava de uma fantasia do povo de Rio Maior e o País riu-se da história mirabolante.
Afinal, o animal que deu sinais de vida em Janeiro e que foi visto por meia dúzia de pessoas da região, havia sido desmentido por muitas outras e descaradamente gozado ainda por mais.
Os jornalistas deixam de aparecer, as trancas foram desferrolhadas e as portas abriram-se em par: os habitantes foram perdendo o medo, seguindo com a vida, como de costume.
E assim foi durante uma década: o leão de Rio Maior não passava de uma historieta, de um rumor que ninguém sabe quem começou, de um delírio… mas, como todas as efabulações, há um quê de verdade que as sustém.
Tanto que, até hoje, há quem não saiba que a história do leão é verdadeira: José Santos Loureiro, conhecido simplesmente como José Diogo, um comerciante da zona do Cidral, uma aldeia nas imediações de Rio Maior, ganhou coragem e, em 1984, contou que durante quase um ano tomou conta da fera.
Naquela altura, tinha passado um circo por Rio Maior e uma das leoas teve uma cria e sem ninguém se aperceber, o filhote passou entre as grades da jaula e desapareceu.
Dias mais tarde, José Diogo viu o que lhe pareceu ser um cãozinho na berma da estrada e levou-o para casa. Era tão pequenino, que José Diogo julgou ser um cachorrinho de uma “raça esquisita”. O animal teve se ser alimentado com leite e restos de comida, pois estava muito fraco.
Para a alimentação, o seu dono vestia uma bata branca para não sujar o fato. O problema é que o animal cresceu, ficando cada vez maior, até o dono perceber que, de cão aquele animal não tinha nada. Mas José já não conseguia viver afastado da fera: afeiçoara-se a ele, como se de um animal de estimação se tratasse.
Só que o leão era grande de mais e José Diogo não podia mais tê-lo em casa. Levou-o, então, para um antigo forno. O local estava há muito abandonado e José Diogo julgou que o seu leão e os habitantes das proximidades estavam em segurança. Mas, um dia, o leão escapou do cativeiro, acabando por atacar um jumento, várias capoeiras e ovelhas. Devido ao terror que o animal estava a causar entre as gentes de Rio Maior, o próprio José Diogo vestiu a bata branca que o leão conhecia e, com a sua espingarda foi à caça do animal. Ao chamamento de José Diogo o leão respondeu e veio ter com ele, ao que o seu dono disparou à queima-roupa matando-o, acabando por queimar a carcaça para não deixar vestígios.
A história, verídica, foi confirmada ao Correio do Ribatejo pelo filho, Jorge Loureiro. “Eu tinha 12 anos na altura, já não era propriamente uma criança… lembro-me bem do animal. Tínhamos aqui ao pé uns fornos de carvão e foi lá que o animal ficou durante mais ou menos sete meses”, recordou.
“Eu ainda convivi com ele, mas eu vi logo que não era um cão… Mas quando são pequenos, não se sabe muito bem se são tigres ou leões, porque a pelagem é listrada”, descreveu Jorge Loureiro.
Sobre o alvoroço que toda esta história causou, Jorge é peremptório: “Foi uma autêntica loucura… vieram até homens dos safaris alemães e franceses, com o famoso Fernando Pessa a encabeçar toda esta história (risos)”.
“Todos os dias havia aqui jornalistas e a Polícia Judiciaria também veio para apurar a questão dos prejuízos, que o meu pai nunca assumiu. Passados uns anos é que ele contou a história”, afirmou.
José Diogo acabaria por colocar o ponto final na história, com uma bala certeira: “na altura, as Carnes Nobre não tinham zonas de reciclagem e tinham uma lixeira e o animal andava por ali. E foi nesse local que o meu pai o encontrou e teve que o matar, queimando depois a carcaça com gasolina. Ele ainda ficou com uma unha de recordação do animal, que, entretanto, desapareceu”, contou.
Foi assim que a história do leão de Rio Maior terminou, embora a fera continue a rondar a cidade, como nome de rua, de doce regional, como designação de casas comerciais, ou inspirando músicas, como o tema ‘Leão de Rio Maior’, editado em 1994, pela acordeonista Eugénia Lima.
A história do leão faz parte do passado, mas ninguém esquece o leão. “E esta hein?!”