Há algumas semanas publiquei um texto sobre o culto de São Gonçalo em Benavente. revelando, no Ribatejo, a existência de um culto bem peculiar mais frequente no norte do País. Hoje vamos caracterizar o excêntrico culto gonçalinho em Portugal e no Brasil para onde transitou em inícios do século XVIII.

Aliás, para o investigador nacional centrado na ótica da mudança, a transferência de certos fenómenos culturais, nomeadamente públicos, para o Novo Mundo, constitui um campo de abordagem e análise social inestimável.

Sabe-se, por exemplo, como o culto do Divino no fim da Idade Média chegou as ilhas atlânticas e, dois séculos depois ao Brasil, onde irá encontrar, tal como nos Açores, condições especialmente propicias ao seu desenvolvimento.

No caso gonçalino, desde cumprir funções de coesão social e administrativa, cruzando-se com tradições amazónicas e latino africanas e dando origem, ainda hoje, a grandes festejos como acontece em Santarém do Pará [cidade geminada com Santarém] com a exótica, mas grandiosa, Festa do Cairé.

O mesmo fenómeno se passou com o culto de São Gonçalo.

Surgido no século XIII-XIV, e irradiando a partir de Amarante para o norte e centro do país, através do impulso devocional e do fomento conferido pelos dominicanos, tal culto, casamenteiro e não só, evidenciava-se pelo hábito peculiar de cantar e dançar para o santo, condição de prometimento e, especialmente, pagamento das graças recebidas!

Até inícios de novecentos, pelo menos, o pagamento de promessas a São Gonçalo de Amarante era, em Amarante e noutras zonas do país, efetuado no interior dos templos através de rocambolescas danças e cantos acompanhados de abundantes refeições.

No Porto e em Lisboa, as raparigas solteiras e as viúvas que pretendiam noivo, entravam em grandes ranchos pela igreja dentro e, em frente ao altar, punham-se a cantar em coro” casai-me, casai-me / São Gonçalinho / Que hei de rezar-vos / amigo santinho”.

No dia do santo, 10 de janeiro, havia foguetes em profusão, bailavam-se e saltavam-se as fogueiras invernais. Risos, ditos e desafios, davam origem a saborosas improvisações no português mais vernáculo. Situação, esta, que decorria durante a tarde e era, significativamente, conhecida pela “Festa das Regateiras”.

A dança, realizada no interior da igreja, constituía ocasião em que participavam velhas e novas, bonitas e feias. Afinal, todas aquelas que desejavam casar; anseio, como se sabe, intemporal.

Situação insólita, esta, [enquanto prática operativa] na culturalidade tradicional portuguesa e que em muitos Estados do Brasil, permanece ainda, dando origem ás tradicionais danças de São Gonçalo.

Por exemplo, em Sergipe, no Nordeste, o grupo é conduzido por um “mestre” tocador de viola, um “contramestre” que toca a “meia-cuia” e dois guias. A dança é executada em nove rodas divididas em treze partes, apresentando coreografias diferenciadas. A indumentária é livre.

Em Minas Gerais participam as moças casadouras da cidade, que em pares e vestidas de branco empunham um arco ornamentado de flores e fitas. Após a missa matinal, saem da igreja pelas ruas em cortejo, cantando loas ao santo casamenteiro, acompanhadas de músicos tocando violas, rabecas, violões e pandeiros. A dança se estende pela noite, defronte das igrejas ornamentadas com arcos de flores, iluminados por velas acesas.

Em Ribeirão Branco- São Paulo, a dança é dividida em rodeadas, que são sequencias de coreografias, comandadas pelos violeiros. Cada rodeada pode durar mais de uma hora, dependendo sempre do número de participantes e o número de sequências de coreografias que vão sendo criadas pelos violeiros, sempre aumentando a dificuldade, e aqueles que estão atrás da fila tem que seguir os que estão na frente.

Estas, como muitas outras, nestes ou noutros estados, mais ou menos formalizadas. Não institucionalizadas, mas popularizadas. Quase sempre frente a um altar improvisado onde avulta uma imagem gonçalina muito diferente da clássica iconográfica dominicana. Um personagem jovem, tocando viola, roupa colorida, chapéu, calções, capa e botas altas a fazer lembrar um trovador provençal. Aquilo a que os brasileiros chamam o santo de viola.

 E porque dançar para o santo para pagar as promessas, pode perguntar-se?

Atentemos, a propósito, numa peculiar lenda gonçalina [burlesca como tudo neste culto] que descreve a estratégia mítica que o santo se servia para casar as prostitutas.

Diz a mesma, que encontramos não só em Amarante como noutras localidades no nosso pais onde se sabe existir ou ter existido o respetivo culto [bem aliás ainda hoje um pouco por todo o Brasil], que no seu tempo Gonçalo costumava realizar um baile aos sábados com as prostitutas [em que se vestia de mulher] e com elas dançava, e dançava deliberadamente, até as extenuar.

Extenuadas, as ditas, aos domingos estavam de tal maneira exaustas que não conseguiam prostituir-se. Portanto, iam deixando de ser prostitutas. Algumas vinham até a converter-se e, êxito dos êxitos, acabavam mesmo por se casarem.

Mais milagroso que isto é difícil de encontrar.

Do ponto de vista antropológico, o que se pode concluir é que tal lenda popular refletia [de uma forma pitoresca] o fantástico como o santo era visto popularmente enquanto intérprete de um assunto que era, afinal, o mais problemático para um santo casamenteiro que se preze, especialmente se dito e considerado das situações casamenteiras especialmente difíceis.

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