07“Mãe, não chores mais; tudo se vai resolver. O meu professor, aquele que é o protetor das crianças, não disse que nos vai ajudar? Brevemente estaremos juntas de novo.”
Situações atentatórias contra os direitos das crianças e dos jovens são, diariamente, tratadas pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (cpcj) do país que constituem uma rede protetora. E são cada vez mais os atropelos aos seus direitos que os fragilizam e poem em causa a sua saúde física e mental. Negligência parental, violência doméstica, discriminação e demais situações que poem em perigo os mais novos são trabalhadas e intervencionadas com o objetivo de serem resolvidas ou minimizadas por equipas multidisciplinares, sendo os professores elementos fundamentais deste sistema de promoção e proteção.
As Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (Cpcj) surgiram em Portugal em 1999 com a entrada em vigor da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro. Embora o conceito de comissões de proteção de menores já existisse desde 1978, a nova legislação reorganizou-as, renomeou-as para CPCJ e reforçou o seu papel como centros operacionais do sistema de proteção de crianças e jovens em perigo.
Armando Acácio Gomes Leandro, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, ju- bilado, é, indubitavelmente, o nome maior do Direito das Crianças e Jovens em Portugal. No ano letivo 2005/2006, esta figura maior, então presidente da Comissão Nacional das cpcj, decidiu percorrer o país de lés a lés, visitando todos os governos civis, para reunir com os professores representantes do Ministério da Educação nas cpcj. Preferiu olhar-nos a todos nos olhos para que entendêssemos melhor a profundidade de sua mensagem: exortar-nos a nós, professores, a ter um papel diferente dos demais comissários. Alegava que os docentes poderiam ter uma ação mais eficaz na promoção e proteção dos direitos dos mais novos, porque passavam com eles grande parte das horas de sol que o dia tem. Esse facto, dizia, traduzir-se-ia, naturalmente, num melhor conhecimento e, consequentemente, numa intervenção mais precoce e atempada. O seu objetivo era que os comissários-docentes redobrassem a sua atenção nas escolas e resolvessem, em contexto escolar, tudo o que conseguissem resolver, no superior interesse dos mais novos.
Saí do governo civil de Santarém com os olhos a brilhar e a cabeça a fervilhar de ideias. Pouco tempo depois, era criado, no Agrupamento de Escolas de José Relvas, em Alpiarça, o “Gabinete de Apoio ao Aluno e à Família”, tal como veio a acontecer em muitas outras escolas do país. Estava dado o mote para uma das missões mais bonitas da minha vida profissional: ser o tal protetor das crianças, trabalhando sempre em equipa, porque ninguém faz nada sozinho.
Os professores são comissários que têm o privilégio de estar presentes e acompanhar de perto o percurso escolar e pessoal das crianças e dos jovens, conseguindo ir para além daquilo que os olhos conseguem ver, não se deixando iludir pelas aparências; que conseguem ler nas entrelinhas e perceber estados de espírito ou mudanças de humor por falta de cuidado, atenção e amor.
Sempre considerei que havia um potencial de evolução enorme nestes organismos que promovem a proteção das crianças e dos jovens. As comissões são compostas por comissões alargadas – representantes de todas as forças vivas dos concelhos – e por comissões restritas que são os operacionais. Defendi em diversos fóruns, durante anos, que poderia haver uma evolução significativa se os elementos destas comissões restritas pudessem estar a tempo inteiro nas cpcj, procedendo-se a uma gestão diferente dos recursos humanos. Faço notar que, nalgumas comissões, o volume processual é enorme e que nem que os dias tivessem 48 horas seria possível aos comissários desenvolverem o trabalho a contento das necessidades. Muitos casos transitam para os tribunais de família e menores porque, decorridos seis meses, é humanamente impossível trabalhá-los nas cpcj.
Sendo este o estado da arte no que diz respeito à promoção e proteção, em vez de se evoluir, na minha opinião, regrediu-se. Não só porque não se afetaram mais recursos humanos, a tempo inteiro, às cpcj do país, mas também porque se retiraram professores experimentados das comissões.
De acordo com o despacho normativo nº 10-B/2018, “de forma a garantir uma gestão racional e estratégica dos recursos humanos, determinou-se que o docente representante da área da educação na Cpcj, deveria ter “o perfil adequado à natureza da função”. Mas, mais adiante, porque há falta de professores nas escolas – porque já ninguém quer seguir a carreira docente, vá-se lá saber porquê… – condiciona-se o perfil adequado, impondo que se “deve privilegiar docentes a quem não tenha sido possível atribuir componente letiva ou com dispensa de componente letiva/funções docentes”. Realmente, o perfil adequado passou a ser, somente, uma ideia, não tendo aplicabilidade prática; talvez porque o que importa é arregimentar todos para o regresso às escolas para suprir a falta de professores, realidade cada vez mais preocupante. Em bom rigor, isto pode significar um hiato na proteção de muitas crianças, e isso é hipotecar o futuro.
No dia 20 de novembro comemora-se a assinatura da Convenção dos Direitos das Crianças e não há muitos motivos para regozijo e comemoração. Vivemos num tempo em que não se respeitam nem se promovem os direitos humanos fundamentais; se isso é grave, intolerável é adotarem-se medidas que obstaculizem e sejam um entrave ao processo de promoção e proteção dos direitos das crianças e jovens, pelas repercussões sociais futuras.
Proteger os direitos das crianças é garantir-lhes o espaço e o tempo para crescerem livres, seguras e respeitadas. Mas é também ensiná-las que a liberdade anda de mãos dadas com a responsabilidade e, por isso, devem reconhecer que têm obrigações e deveres. Uma infância plena constrói-se quando se aprende, desde cedo, que ter direitos implica reconhecer os deveres que sustentam a convivência; a educação é o fiel. Os miúdos gostam de regras e dos seus limites, ao contrário do que se pensa; e que se importem com eles. Só com o respeito pelas regras de convivência social se forma uma cidadania consciente, plena de direitos, onde o respeito mútuo se torna a base de uma sociedade mais justa e humana.
